Se eu te dissesse que amanhã você vai receber na sua casa, como visita, uma mulher que virá de longe, sem mala, sem absolutamente nada, quais são as primeiras coisas que você compraria para ela no supermercado? Se algum de vocês incluiu “absorventes íntimos” na sua lista, parabéns, você é mais inteligente do que muitos dos gestores das penitenciárias e demais carceragens femininas do Brasil.
Parece tão óbvia a associação mulher = menstruação que é difícil acreditar que o Estado esqueça de algo tão básico. Mas isso ocorre. Nos quase quatro anos em que pesquiso o sistema carcerário feminino, já ouvi histórias de mulheres que usavam papel higiênico, jornal e até miolo de pão para contornar o problema.
Depois de muita reflexão, cheguei à conclusão de que só há uma explicação para que isso ocorra: as presas acumulam duas características que as tornam socialmente invisíveis.
São elas:
- cometeram crimes;
- são mulheres.
Sobre a característica de número um, sinto que não preciso argumentar muito. Se você não acha que “bandido bom é bandido morto” aposto que tem ao menos um amigo que defenda essa máxima. Não tenho ambições de esgotar aqui essa polêmica, que talvez tenha nascido quando o ser humano decidiu se organizar em sociedade. Só deixo uma reflexão: será que esse argumento faz sentido em um país cuja Constituição garante a inerente dignidade da pessoa humana? Além disso, há um doce risco em perseguir esse princípio. Quando entramos em contato com a humanidade de nossos infratores, podemos encontrar, no caminho, a nossa própria humanidade.
Acerca do segundo item, há quem acredite que não faz diferença. Afinal, uma prisão que recebe bem um homem não poderia receber uma mulher com dignidade? A resposta é: de maneira alguma.
Por quê? Cabe lembrar aqui de outras especificidades das mulheres: elas têm câncer de mama, doenças sexualmente transmissíveis que exigem prevenção contínua e específica, engravidam, dão à luz e amamentam. Peraí… amamentam?! Exatamente, meu caro adepto do “bandido bom é bandido morto”, os filhos das presas não cometeram nenhum crime e, assim mesmo, pagam a pena com elas.
Até pouco tempo atrás, a lei brasileira nem sequer obrigava as penitenciárias a permitir o aleitamento materno. Esses bebês nasciam com suas mães algemadas a macas, eram retirados como um apêndice que estuporou e, sem que as mães pudessem sequer conferir se eles tinham todos os dedos das mãos, eram levados para parentes e instituições. Em 2010, uma lei deu a essas crianças o direito de mamar e usufruir do convívio da mãe por seis meses – mas isso é raramente respeitado.
Não precisa ter muita imaginação (nem sensibilidade) para vislumbrar que tipo de consequências isso pode ter. Uma das mulheres que entrevistei, a quem chamo de Gardênia, deu à luz exatamente como descrevi acima. Só dias após o parto ela pôde conhecer o rosto da filha. Nem o nome da bebê ela escolheu. Virou Ketelyn porque algum parente entendeu que assim combinaria com o nome da outra irmã, Karen.Hoje, essa garota tem 18 anos e uma maneira bem peculiar de adormecer: ela bate a cabeça na parede até mergulhar no sono. Olha que impressionante: as detentas não são apenas “presos que menstruam”. Elas são mães.
Aliás, a maternidade é uma das razões pelas quais elas violam a lei. Explico: a maioria dos crimes cometidos por mulheres, hoje, serviria como complemento de renda em uma família monoparental. São delitos como tráfico de drogas, roubo, furto e outros crimes contra o patrimônio. Há uma tese vigente entre ativistas da área de que, depois que as mulheres assumiram a liderança da casa, elas se sentiram pressionadas a recorrer ao crime como uma maneira de melhorar o nível de vida de seus filhos. Afinal, mulheres ganham menos que os homens no Brasil, principalmente aquelas sem escolaridade. Uma das detentas que conheci, a Cristal, personalizava este caso. Ela havia começado a roubar porque os filhos passavam fome. Com o tempo, convenceu-se de que valia mais a pena sair para dois assaltos no mês e sustentar seus meninos do que gastar 12 horas por dia embrulhando compras no supermercado e vê-los chorar de fome ao fim do mês.
Outro surpreendente atrativo para o crime é o amor. Levantamentos da Pastoral Carcerária mostram que a mulher raramente é a protagonista dos delitos, adota mais o papel de cúmplice. Muitas delas relatam ter se envolvido com a criminalidade por influência de maridos, filhos e namorados. A maioria (que surpresa!) é abandonada pelo parceiro assim que é presa. Por último, quero lembrar das presas que têm não dois, mas três “problemas”. Além de terem o azar de nascerem mulheres e terem optado por desobedecer a lei, há aquelas que incorrem no “defeito” de serem gays. A essas não é dado o direito à visita íntima e, mais, se são pegas em trocas físicas de afeto com suas parceiras, recebem castigos.
‘Orange is the new black’ Brasileira
O sistema carcerário feminino tem ganhado mais atenção desde o surgimento da série Orange is The New Black, do Netflix. Muitas pessoas têm me perguntado se o que a série mostra tem alguma conexão com a realidade brasileira. Ao que eu, normalmente, respondo: “Se fosse sobre o nosso sistema, seria bem, bem mais obscuro.”
As presas brasileiras têm mais acesso a drogas dentro do sistema carcerário. Elas não dormem naquelas caminhas ajeitadas de concreto com colchões por cima, mas no chão, em muitos casos – e, às vezes, acompanhadas de bebês recém-nascidos. Elas não podem fazer ligações para seus familiares com a facilidade das presas norte-americanas e nem têm tratamento médico da mesma qualidade. Em vez de banheiros sem porta, algumas frequentam banheiros sem descarga.
No lugar de paredes de cores pastel, paredes cobertas de musgo e mofo. Um ambiente escuro em que o preconceito da sociedade brasileira é visível e gritante: há muito mais negras e mulatas do que brancas presas no Brasil. Talvez sua realidade esteja mais próxima das séries de terror, na verdade, algo como umaBrazilian Horror Story. Eu não passei nenhum tempo detida como a autora da série, mas sou filha de uma advogada que ainda acredita em uma ideia ousada: a maneira como tratamos os nossos infratores diz muito mais sobre nós do que sobre eles.
Nana Queiroz se formou em jornalismo pela ECA/USP em 2010. É especialista em Relações Internacionais, com ênfase em direitos humanos, pela UnB. Estudou R. I. Também em Nova York e na Finlândia. Trabalhou nas revistas Época, Galileu e Veja e no Jornal Correio Braziliense. Hoje, é editora de cultura do Jornal Metro de Brasília e trabalha no livro Presos que Menstruam, que será lançado pela editora Record em 2014.
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