Tenho uma aluna intercambista,de Portugal, cursando a disciplina de Processo Penal na UFSC. Interessada e estudiosa, após ler os dispositivos do CPP e da Constituição de 1988, decidiu comprar livros de processo penal. Então, um tanto quanto assustada, perguntou-me: “professor, tenho a impressão de que os autores não falam do mesmo texto normativo. E como funciona na prática? Quais regras valem nos foros brasileiros?”
Ora pois. Expliquei da seguinte maneira: se você é jogador de xadrez sabe que poderá chegar em qualquer lugar do mundo e compartilhar as regras. O cavalo anda em “L” de Moscou ao Rio de Janeiro. Assim é que o jogo pode acontecer justamente porque se compartilham as regras.
No julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, discutiu-se, com apertada vitória, o cabimento dos Embargos Infringentes, tendo-se como foco a recepção ou não do Regimento do STF. Quando se trata de controle de constitucionalidade difuso, recepção do CPP em face da Constituição, há confusão generalizada. Arrisquei dizer a ela que não temos um processo penal. Mas, sim, vários. Em cada sala de aula, comarca, unidade, Tribunal e eventual composição dos órgãos julgadores, as regras mudam.... É verdade que também mudam conforme o status social do acusado — falarei disso em outra oportunidade. Conforme Lenio Streck, a compreensão inautêntica prevalece e caímos na selvageria do realismo. Diante da multiplicidade de jogadores, julgadores, regras reconhecidas, precisamos de novo instrumental para enfrentamento da questão das regras do jogo, de acordo com o entendimento do jurista Aury Lopes. O ideal seria, por evidente, que houvesse a consolidação das normas, para que assim, e somente assim, pudéssemos articular um jogo coletivo e democrático. Entretanto, essa pretensão é ilusória, além de a norma não segurar o sentido. Daí que permanecer na noção contemplativa e idealizada de um possível processo penal, desconsidera o caos dos foros.
O jogo como categoria universal está presente no processo penal
Entender o processo penal como jogo não é novidade, aponta o jurista italiano Piero Calamandrei. Embora o processo penal exija racionalidade dos jogadores, o exercício do jogo mostra que as decisões são tomadas para além da racionalidade. Daí que a metáfora do Teoria dos Jogos pode ser invocada para modelar, de alguma maneira, a matriz teórica de como as decisões podem ser tomadas, partindo-se do estudo dos comportamentos dos jogadores, julgadores, estratégias, táticas e recompensas.
A noção de jogo é antiga e, com Johan Huzinga (em Homo Ludens), pode-se dizer que “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”. Daí a pretensão de integrar o jogo no campo do processo penal. O regozijo da vitória, um gol de mão aos 47 do segundo tempo, enfim, as sensações de prazer e decepção estão inseridas no cenário dos jogos, queiramos ou não! A vitória em Embargos Infringentes, pelo placar de 6 votos a 5, depois de toda a batalha processual, representa, aos jogadores, já na prorrogação, a sensação de vitória! E a partida continua.
O jogo fascina, excita, preenche o tédio do cotidiano. O vazio da disputa, está para além do que se pode racionalizar. Qualquer um de nós ao jogar um jogo qualquer (futebol, vídeo game etc.) extravasa, em maior ou menor grau, a irracionalidade. Xinga-se, grita-se, briga-se, comemora-se! No processo penal também! No jogo processual penal joga-se com a antecipação e a recompensa da vitória, por meio da linguagem e suas sutilezas. O processo penal é o mito pelo qual, com a decisão, a ordem das coisas, o acusado e a punição, devolveriam ao ambiente coletivo, mesmo que imaginariamente, a paz! Daí que se pode falar no aparente e no manifesto, a saber, por detrás do jogo público, as motivações, as recompensas, as pretensões, devem vasculhar outros lugares, para além da seriedade de fachada. Daí ser cômico — e temos que segurar o riso — as empoladas regras de tratamento e lições de moral quer atravessam os procedimentos judiciais.
O feitiço cativante do jogo processual
No jogo do processo penal brasileiro, contudo, nem mesmo temos normas compartilhadas. Esse problema torna o jogo dependente do “dono da bola”. Ou seja, em cada unidade jurisdicional, diante da ausência de sentido compartilhado das normas processuais, o jogo apresenta variáveis. E isso é antidemocrático, conforme demonstra Jacinto Coutinho.
O jogador de xadrez sabe que se chegar em qualquer lugar do mundo, mesmo sem falar o idioma, pode jogar com o adversário que se encontra sentado na frente de um tabuleiro. Basta sentar-se e jogar. As regras são compartilhadas. No processo penal o déficit normativo torna o jogo mais complexo, dado que antes do jogo, para que se possa ter êxito, é preciso conhecer o julgador da partida. Saber quais as regras irá aplicar/desconsiderar.
A Teoria dos Jogos pressupõe que a vitória depende da tomada de decisões em cadeia. No decorrer do procedimento judicial, em cada sub-jogo, é necessário o cotejo da estratégia da adversário e do “dono da bola”. Antecipar a melhor jogada possível, os ganhos e prejuízos, a cada momento, parece ser o caminho adequado para tomada de decisões estratégias. Não se trata, necessariamente, de matematizar o Direito — de acordo com o ensinamento de Calvo González —, mas de lançar mão de outra caixa de ferramentas teórica, dada a manifesta insuficiência do Direito para tal. Até porque não se trata de verdade verdadeira, ou seja, opera-se longe da possibilidade da reconstrução do caso penal.
A obtenção da vitória no jogo processual depende de uma série de decisões em cadeia, cuja subsequente vincula-se, necessariamente, ao êxito na anterior. Há uma interdependência das jogadas. Exemplificativamente e do ponto de vista meramente formal: a condenação depende de uma denúncia apta e de defesa existente. Cabe dizer que o êxito de um dos jogadores depende do contendente. Não se trata de um jogo individual, em que o resultado decorre exclusivamente das jogadas individuais. As jogadas, articuladas legalmente, são sempre dialéticas, em contraditório. Daí a importância do contraditório na compreensão do processo penal. Talvez não seja arriscado afirmar que no exercício tedioso do Direito Processual Penal falte emoção. Entendido pela metáfora da teoria dos jogos, quem sabe, possamos entender melhor seu funcionamento, até porque no plano das regras processuais não dispomos de sentido compartilhado. O CPP é de 1941 e a Constituição não convivem harmonicamente. A aluna intercambista perguntou, ao final: “então é um jogo em que a sorte impera?”. “Talvez”, respondi. E isso é democrático? Absolutamente não!
A Criminologia Cultural aponta, desde outro lugar, que o tédio, diante das condições da modernidade, nos diz Jeff Ferrel (e no Brasil Álvaro Oxley da Rocha e Salo de Carvalho), passou a compor a vida cotidiana, fazendo com que o sujeito encontre momentos ilícitos de excitação, ou seja, condutas efêmeras cometidos contra o próprio tédio, dentre eles, arrisca-se, as jogadas processuais ilícitas, as formas de doping processual. O processo penal acaba, pois, transformando-se num grande mecanismo de superação do tédio, mediante a prática de jogadas ilícitas, “jeitinhos processuais”, com as quais o leitor, se tiver paciência, poderá tomar conhecimento na próxima coluna. No momento, basta dizer que as recompensas de descargas de adrenalina que o jogo processual enseja quebram, não raro, o tédio do cotidiano, diante do inesperado. A questão é: isso torna real o absurdo kafkiano?
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 28 de setembro de 2013
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