O território da liberdade de expressão é vizinho do território tenebroso da injúria, da difamação e da ameaça. Aparentemente, ninguém sabe exatamente onde fica a fronteira entre um e outro. Nos casos que chegam aos tribunais, cada juiz tem um entendimento diferente. Por isso, a comunidade jurídica americana esperou ansiosamente por uma definição da Suprema Corte em um caso que discutia a questão: uma ameaça musical a um juiz foi um exercício da liberdade de expressão ou um delito punível com cadeia? Mas a corte simplesmente se recusou a examinar o caso. Assim, prevalece a lei popular: cada cabeça uma sentença.
Na petição de 34 páginas (fora apêndices) que chegou à Suprema Corte, oito foram dedicadas a esclarecer esse ponto. Os advogados de defesa usaram um capítulo inteiro só para demonstrar que "Os tribunais de recursos estão profundamente divididos sobre a questão apresentada". O caso se refere a uma ameaça de matar um juiz, contida em uma música gravada em vídeo pelo autor e postada no YouTube. O vídeo foi retirado pelo autor logo que se transformou em um problema, mas foi republicado, com edição de áudio, por terceiros.
A petição também apresenta as discussões em torno das teses sobre ameaça. Parece óbvio, para alguns, que a legislação vê como delito apenas uma "ameaça verdadeira" — aquela que "expressa uma intenção séria de infligir danos físicos a outra pessoa", com o propósito de intimidar, por exemplo. Assim, diz a defesa, a letra da música do autor não poderia ser vista como ameaça, porque ele estava apenas expressando suas frustrações com a Justiça. Mas há quem argumente, com base em interpretações jurídicas, que a "ameaça verdadeira" é aquela que a pessoa ameaçada assim a interpreta.
Na verdade, o ex-sargento do Exército dos EUA, veterano de guerra, Franklin Jeffries "pegou pesado" em seu vídeo musical intitulado "Amor à Filha". A música expressa a inconformidade do autor diante da possibilidade de perder o direito de ver a filha. Ele estava envolvido em uma longa disputa judicial com a ex-mulher sobre custódia, visitas e direitos dos pais. Segundo a petição, a Justiça decidiu em primeira instância que o "vídeo emocional" contém expressões "banais, fanfarronas e ameaçadoras", embora tenha sido muito "doce" em alguns trechos — um delito qualificado por adjetivos.
Em outras palavras, a letra da música ultrapassou a fronteira da liberdade de expressão e entrou no território do delito. Entre outras coisas, a música dizia: "Se eu tiver que matar um juiz, um advogado ou uma mulher, eu não me importo. Já matei um homem na guerra"; "Tire minha filha de mim, juiz, e eu tiro sua vida"; "Eu não estou brincando, juiz, é melhor me escutar. Eu não tenho nada contra você, mas estou lhe dizendo, é melhor que essa seja a última vez que eu vou ao tribunal".
Culturalmente, a expressão "Eu te mato" ("I kill you") é uma ameaça relativa entre os americanos, assim como entre os brasileiros. Pode fazer parte, por exemplo, da intimidade de um casal: "O que você faz se eu a trair?"; "Eu te mato", pode ser a resposta. Mas ambos sabem que a intenção de matar não é séria.
O sargento não tinha intimidade com o juiz para se expressar dessa forma. Mas ele não mandou o vídeo para o juiz. Enviou links do vídeo apenas para amigos e para uma associação de defesa dos pais separados. Sua "obra" não o teria colocado na cadeia, se ele não se empolgasse com o sucesso do vídeo entre os amigos e cometesse o erro supremo de postá-lo no Facebook. A ex-cunhada do sargento viu o vídeo na rede social e informou o juiz que presidia o julgamento da ação movida pela irmã sobre ele.
O juiz não achou graça e processou o sargento. Jeffries foi condenado a 18 meses de prisão em primeira instância. A sentença foi mantida por um tribunal de recursos e, finalmente, ignorada pela Suprema Corte dos EUA. O tribunal federal decidiu, com base em uma legislação segundo a qual "transmitir em comércio interestadual ou internacional qualquer comunicação contendo qualquer ameaça de causar dano físico a outra pessoa" é um delito.
O tribunal rejeitou o pedido do réu para o juiz instruir o júri de que "só poderia condenar o réu se ele quis, subjetivamente, ameaçar o juiz" que presidia o processo de família. Em vez disso, o juiz deu a seguinte instrução ao júri: a intenção subjetiva do réu em fazer a comunicação é irrelevante.
"Diferentemente da maioria das leis criminais, o governo não tem de provar a intenção subjetiva do réu. Especificamente, o governo não tem de provar que o réu intencionou, subjetivamente, para que o juiz entender a comunicação como uma ameaça, nem o governo tem de provar que o réu teve a intenção de cumprir a ameaça".
De acordo com a petição da defesa, o juiz prolongou a instrução nesses termos: "Ao avaliar se uma declaração é uma ameaça verdadeira, vocês devem considerar se, à luz do contexto, uma pessoa razoável acreditaria que essa declaração foi feita como uma expressão séria de intenção, para infligir danos físicos ao juiz Moyers [o juiz "ameaçado" na música] e se a comunicação foi feita para efetivar alguma chance ou atingir algum objetivo através de intimidação. A comunicação tem de ser vista sob a perspectiva objetiva ou razoável de uma pessoa".
O ponto mais importante da defesa na petição ao tribunal de recursos foi o da contestação das instruções que o juiz deu aos jurados. O tribunal de recursos rejeitou esse argumento, mantendo o entendimento de que, nesse tipo de comunicação, "o observador razoável a interpreta como uma ameaça séria a outrem". E completa: "Uma vez que o governo mostra isso, "não importa o que o réu pretendia com a comunicação, em oposição a como um observador razoável a interpreta".
Veja abaixo o vídeo:
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2013
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