sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Justiça alemã erra ao proibir circuncisão de criança


O Tribunal do Distrito de Colônia (Landegericht Köln –Az. 151 Nºs 169/11) [1]proferiu, no dia 7 de maio de 2012, decisão cujos fundamentos vêm gerando intensos e controvertidos debates na Alemanha. A Corte, ao apreciar o recurso do Ministério Público contra decisão que absolveu determinado médico por lesão corporal (§§ 223 Abs. 1, 224 Abs. 1 Nº. 2, Alternative 2 StGB), o qual a pedidos dos pais praticou o procedimento de circuncisão em um garoto de quatro anos de idade, de religião mulçumana, confirmou o provimento absolutório anterior, atendo-se basicamente à justificativa de que o médico, ao realizar a intervenção cirúrgica teria agido de boa fé, uma vez que acreditava que a sua própria conduta seria lícita, portanto, legal. No caso em apreço, preponderou a tese do inevitável erro de proibição (Unvermeidbar Verbotsirrtum — § 17 StGB).
O tribunal, sem hesitar, manifestou-se no sentido de que os direitos constitucionalmente assegurados de educação parental e de liberdade religiosa dos pais da criança não podem prevalecer sobre o direito do menor à integridade física. Apesar de a decisão não possuir caráter vinculativo, abre-se um enorme precedente, tendo em vista que outros tribunais podem adotar posição semelhante em caso de novas denúncias.
Diante de tal circunstância, inarredável parece ser a seguinte indagação: poderia o Estado intervir na capacidade de autodeterminação de algumas religiões a ponto de considerar o procedimento da circuncisão como ilícito penal? De antemão, é salutar esclarecer que o presente artigo não tem a pretensão de exaurir o tema e muito menos de imergir em assuntos de caráter religioso, mas, sim, de realizar breves reflexões sob a ótica do Direito Penal e Constitucional.
Em primeiro plano, necessário se faz consignar que a Constituição Alemã, no artigo 4°, assegura a liberdade de religião como direito fundamental do cidadão. Sem embargo, não é de hoje que os tribunais alemães se deparam com questões polêmicas relacionadas ao exercício desse direito de envergadura constitucional. A título ilustrativo, oportuno recordar o histórico caso do “Véu” (Kopftuch — BVerfGE 108, 282), em que a professora Fehresta Ludin, também de religião mulçumana, teve a sua solicitação de emprego rechaçada pela repartição de ensino escolar de Sttutgart porque utilizava o Hijab (véu que envolve a região da cabeça da mulher). Depois de seu pleito ser denegado por todas as instâncias inferiores, o Segundo Senado do Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht), em decisão tomada por cinco votos a três (5x3), reformou a decisão do Tribunal Administrativo Federal (Bunsdesverwaltungsgericht), inadmitindo o argumento de que o uso do véu estaria ligado ao objetivo de desintegração cultural. No caso, de acordo com a Corte Constitucional, a decisão infringiu o direito de todo cidadão ao acesso a qualquer cargo público (Art. 33 Abs. 2 und 3 GG) combinado com o pleno exercício de liberdade religiosa (Art. 4 Abs. 1 und 2 GG).
Celeuma à parte, é de se considerar que qualquer Estado que se julgue democrático tem o dever de zelar e proteger a liberdade de crença dos seus cidadãos. Nesse mister, inclui-se obviamente a liberdade do exercício de culto e de não intervenção em suas liturgias. Contudo, sublinhe-se que se houver tensão com outro valor equivalente, que, no caso em concreto, tenha maior densidade constitucional, nada impede que o princípio da liberdade de religião venha a sucumbir nesse conflito de natureza axiológica. Afinal, é nesse momento que a laicidade do Estado desempenha papel fundamental em uma democracia, justamente para que não haja um desequilíbrio desproporcional quando houver choques entre princípios envolvendo diretamente a liberdade de religião.
É nesse terreno arenoso que a decisão proferida pelo Tribunal de Colônia ganha verdadeiros contornos de um hard case. Se de um lado a Lei Fundamental Alemã assegura que o direito de liberdade de crença é inviolável (Art. 4 Abs. 1 und 2 GG) e que o cuidado e a educação dos filhos é uma obrigação dos pais (Art. 6 Abs. 2 GG), por outro, na mesma seção dos direitos fundamentais, encontra-se previsto o mandamento de que toda pessoa tem o direito à integridade física (Art. 2 Abs 2 GG). No Brasil, a Carta da República assegura os mesmos direitos no artigo 5° VI e XLIV. Este último inciso, por razões óbvias, não se limita à aplicação somente à situação do preso.
Pode-se ver que nesse conflito de valores existem entendimentos, inclusive do Supremo Tribunal brasileiro (RHC 62.240), no sentido de que a invocação da liberdade religiosa não tem o condão de legitimar práticas de atos considerados como ilícitos penais. De acordo com o Supremo, a prática de curandeirismo não encontra abrigo no âmbito da liberdade de religião. Na mesma linha, a 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, no ano de 2010, determinou que os pais de uma adolescente e um médico fossem julgados pelo júri popular por terem impedido que a jovem, a qual sofria de leucemia grave, se submetesse à transfusão de sangue. O ato praticado pelos pais, seguidores da religião de Testemunha de Jeová, somado ao consentimento do médico em não realizar o procedimento, terminou por culminar na morte da garota[2]. No caso, entre o direito de exercício da liberdade de religião e o direito à vida, de acordo com a decisão da câmara, prevaleceu o último.
Contudo, a questão se revela mais sensível a partir do momento em que o direito à liberdade de religião entra em rota de colisão com o direito à integridade física do indivíduo. Apesar das críticas em torno da decisão, o Tribunal de Colônia perfilha o entendimento no sentido de que o direito de liberdade de religião não deve preponderar quando da prática da conduta ocorre o ilícito penal. Isto é, por mais que se trate de matéria relativa à liberdade de crença e de íntima convicção do indivíduo que segue determinada religião, o Estado possui legitimidade ativa para interferir no seio das liturgias, pouco importando se o ato questionado é fator essencial ou não para o desenvolvimento, o exercício e a profissão da fé.
Na decisão, o Tribunal alemão foi categórico em declarar que a conduta praticada pelo médico não se enquadraria no âmbito da chamada “adequação social do delito”, teoria entabulada por Hans Welzel, ex-professor das Universidades de Göttigen e Bonn, a qual pugna pela atipicidade material do delito quando o ato perpetrado pelo agente é socialmente admitido. É bom que se esclareça que a Corte, em nenhum momento vedou a realização do procedimento da circuncisão. Pelo contrário, fez questão de deixar consignado que, tendo em vista a irreversibilidade da medida, nada mais razoável do que deixar a própria criança, quando ela possuir capacidade de discernimento, optar em sã consciência pela adoção do procedimento. O ato de circuncisão poderia ser a estigmatização de uma criança contrariada no futuro, haja vista que a operação seria realizada sem o seu natural consentimento, lesando a autonomia da vontade de escolher o seu próprio destino. Afinal, hão de se considerar os argumentos de sorte que nada impeça que a criança posteriormente se incline por religião diversa da elegida pelos pais ou até mesmo venha a se propender pelo ateísmo.
Esse foi o meio-termo encontrado pelo tribunal para que se pudessem conciliar e, sobretudo, salvaguardar ambos os princípios constitucionais — liberdade de religião e integridade física — sem sacrificar um ou outro de modo definitivo. Insta frisar, uma vez mais, que, de acordo com o veredicto, somente se postergaria o momento da feitura da circuncisão, jamais vedando a sua realização. O que de fato poderia legitimar a cirurgia de modo extemporâneo seria a hipótese de que a operação fosse justificada por prescrição médica indicando a imprescindibilidade do procedimento — o que não foi o caso.
Não obstante, muito se argumentou sobre a medida profilática da circuncisão, no sentido de que a operação não acarretaria em nenhum prejuízo para a criança. Ocorre que nem mesmo a comunidade médica possui um consenso a respeito das benesses da circuncisão. Os defensores do procedimento alegam que os homens circuncidados tendem a possuir a genitália mais higiênica pelo fato de impedir a acumulação da secreção denominada esmegma, responsável pelo acúmulo de bactérias e pelo mau cheiro, caso não seja realizada a devida assepsia no local. Ademais, a circuncisão auxiliaria na prevenção de infecções pela via sexual, reduzindo, inclusive, as chances de contágio do vírus HIV[3].
Em direção contrária, é de se salientar que existe corrente garantindo que a circuncisão remove de forma definitiva o prepúcio, o qual é considerado uma pele rica e enervada, modificando a estrutura do pênis ao corromper as funções desempenhadas por cada uma das partes que compõem o órgão masculino. Dentre os malefícios, os especialistas alegam que a circuncisão geraria: a) dor/choque; b) cicatrizes à glande ou à haste; c) oclusão do sistema venoso do pênis; c) perda da sensibilidade e impotência (disfunção erétil); d) volume reduzido do pênis, já que diversos vasos sanguíneos foram subtraídos; e) reabertura da ferida na idade adulta, entre outros danos[4].
Feitas essas considerações, em que pese os argumentos ventilados pelo Tribunal de Colônia e as eventuais consequências que podem acarretar a realização da circuncisão, haveria espaço do ponto de vista jurídico, utilizando-se de sólidos argumentos, para reverter à decisão proferida? Em países como o Brasil e a Alemanha, em cujas raízes as Constituições estão arraigadas em princípios de ordem democrática, seria razoável admitir intromissão de natureza tão profunda no âmago de liturgias que desempenham condição sine qua non para o pleno exercício da liberdade de crença e da profissão da fé?
De antemão, necessário se faz esclarecer que ambos os países garantem aos seus indivíduos o direito fundamental à pluralidade. Como é cediço, o princípio do pluralismo é consectário lógico e natural de um Estado democrático de Direito. Em sua vertente de índole religiosa, possui a atribuição constitucional de assegurar a todos que habitam na polis o direito à diferença, sendo este o predicado único e indispensável de acreditar a determinadas minorias a sua dignidade como espécie, sem macular a sua própria existência ou identidade, outorgando a elas o perfeito cumprimento da liberdade para a exata satisfação de sua crença.
Portanto, estipular o momento no qual se deve realizar a circuncisão seria negar a própria existência do árabe ou do judeu como condição de povo na sua mais profunda acepção. Em linhas gerais, de acordo com a tradição, a criança que vem a falecer sem ser circuncidada perecerá pela eternidade. Sem a pretensão de fazer qualquer incursão de caráter religioso, curioso salientar que a circuncisão é uma parte integral da cultura judaica e mulçumana, sendo o procedimento respeitado em todos os países do mundo. A Torah, livro sagrado dos judeus, exige que a circuncisão do recém-nascido seja realizada antes do oitavo dia. Já o Alcorão, por seu turno, não prescreve o momento, mas a tradição é forte no sentido de que se realize o ato ainda quando criança. A circuncisão, assim como o batismo para os católicos, tem exatamente o mesmo significado, isto é, ambos os cultos têm a finalidade de assegurar a própria salvação da alma. Em outras palavras, a essência da circuncisão é exatamente a mesma realidade do batismo, e muito embora os sinais possam parecer diferentes, tanto um como o outro simbolizam a mesma verdade espiritual[5].
O ato de circuncidar passa a integrar, portanto, o dever de tolerância das maiorias, sendo o apanágio indispensável do direito de alteridade, que nada mais é do que se relacionar com outras pessoas e grupos, respeitando e conhecendo as suas diferenças, tradições, crédulos e cultos, considerando o próximo na sua inteireza como ser psicossocial. Significa dizer que a ideia de tolerância se encontra inveterada no conceito de obediência aos traços característicos de cada indivíduo, não devendo ser vistos como estigmas, mas, antes, como expressão de sua metafísica singularidade[6].
Em síntese, é dever do Estado assegurar o exercício do direito de circuncisão em qualquer momento da vida, que, diga-se de passagem, é um procedimento praticado há milhares de anos, não permitindo que os valores culturais dominantes de uma determinada maioria sobrepujem a profissão de fé de algumas minorias. Sobreleva anotar que somente agindo dessa forma, sem intromissões indevidas e inoportunas, é que o Estado conseguirá atingir na sua plenitude a desejada harmonia social, garantindo a liberdade e a pluralidade como valores supremos de seu próprio povo.
No que tange à dogmática penal, a nosso ver, o Tribunal alemão se equivoca a partir do momento em que não acata a tese da adequação social do delito como forma de atipicidade material da conduta. Apesar de a ação subsumir-se ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando estiver de acordo com a ordem social. Segundo a Corte, o réu somente foi agraciado com o decreto absolutório porque não tinha a real consciência de que a sua própria conduta seria reprimida pelo Direito, incidindo na espécie o inevitável erro de proibição (Unvermeidbar Verbotsirrtum — § 17 StGB). Tal fundamento não poderia prosperar, tendo em vista que o procedimento da circuncisão, em crianças, é uma medida reconhecida, universalmente, por todas as culturas, povos e nações democráticas. Não por acaso, a decisão do tribunal foi objeto de sérios questionamentos não só na Alemanha, mas em todo o mundo civilizado.
Em conclusão, o presente artigo sai em defesa do direito da realização da circuncisão, em crianças, como elemento primordial à dignidade do povo árabe e judeu, por mais que o procedimento se trate, em tese, de ilícito penal. A laicidade do Estado não pode ser confundida com o direito de intervenção em tradições milenares, e, sobretudo, em liturgias que se referem à própria condição de autodeterminação dos povos que acreditam na potestade da circuncisão. Afinal, a inteligência de uma democracia reside justamente em saber concretizar a unidade onde há diversidade, pois somente dessa forma é que se poderá construir uma sociedade livre, fraterna e plural.

[1] http://openjur.de/u/433915.html
[2]CONSULTOR JURÍDICO – http://www.conjur.com.br/2010-jan-30/tj-sp-manda-medico-pais-adolescente-morta-juri-popular
[3]JORNAL A FOLHA DE SÃO PAULO –http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u16184.shtml
[4]http://www.circumstitions.com/Works.html
[5] HANKO, Ronald, Doctrine according to Godliness – Reformed Free Publishing Association, p. 269-70.
[6]MENDES; Gilmar Ferreira, Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco.– 4.ed.rev.eatual – São Paulo: Saraiva, 2009 – página: 179.

Luis Henrique Alves Sobreira Machado é advogado, pós-graduado na Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal. Atualmente mora em Munique, na Alemanha.
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2012

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