quinta-feira, 16 de agosto de 2012

As vinhas da ira do Direito ou "quando o réu não se ajuda"


Tenho feito críticas ácidas ao modelo de concursos públicos (MP, PJ, Defensoria, etc.) e da prova da OAB. Já escrevi sobre isso. E muito. Aliás, faço isso há mais de 15 anos. Já nas primeiras edições do Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Mas parece que o réu não se ajuda. As pérolas continuam surgindo e se multiplicando. Não faz muito, critiquei a prova da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que versava pela relevante questão do homem-lagarto (ver aqui). Também a prova da Defensoria do Rio Grande do Sul, que perguntou sobre gêmeos xifópagos (ver aqui).

Afinal, em um país de descamisados e desdentados, o que será de um defensor público que não saiba defender o interesse de quem queira se parecer com um réptil? Isso faz parte da crise de paradigmas que venho denunciando. Ainda na década de 90 do século passado, eu chamava a isso de “crise de paradigmas de dupla face”, que não vou reproduzir neste espaço.
Pois bem. Não bastam as duras críticas que se faz a esse modelito standard e fast food. Não basta criticar exemplos do tipo “fulano se veste de cervo e vai brincar no mato; Tício, metido a caçador, vendo apenas a galhada do “engraçadinho”, acerta-lhe um tiro”. Acreditem: esse é um exemplo para explicar “erro de tipo”. Hum, hum. Por que será que alguém se vestiria de cervo, pondo uma galhada da cabeça? Bom, deixa para lá. Caio e Tício são personagens incríveis, agora acompanhados, como verão na sequencia, de Zenão e Górgias. O que acham de “Mévio está pendurado à beira do abismo; vem Plotino (coitado do filósofo) e pisa na mão do infeliz”. Qual é o tipo penal? Tipo “o quê”, cara pálida? Tipo “assim”... causa independente?
O professor de Direito Penal diz para os alunos, buscando explicar o estado de necessidade: Caio e Tício embarcam em um navio. Ficam na mesma cabine. O navio naufraga. Há apenas uma tábua. Caio mata Tício em estado de necessidade. Genial. Bingo. Alvíssaras. O mundo vai mudar. Pensa que é só isso? Pois entra na sala o professor de Processo Penal, que, pegando o “gancho” (odeio essa palavra), pergunta aos alunos (aqueles mesmos que estavam no programa do Jô e riram da nossa Constituição... se não eram eles, alguém parecido): “Caio, ao matar Tício, responde em qual foro”? Grandes elucubrações. Céus! Diz o docente: se a tábua for do navio naufragado, o foro é o da bandeira do navio... blá, blá, blá. OK, mestre. Apenas uma pergunta: que outra tábua estaria passando em alto mar, para que dois idiotas nela subissem e um matasse o outro? Deve ser muito comum que tábuas passem perto de navios naufragados... Já vejo o Datena chamando: ponham essas tábuas na tela; foi nela que Caio matou Tício. Imagens: Close nela! Devem ser como linhas de ônibus, do tipo “tábua L1”, “tábua L2”...! Caio e Tício devem ter gritado: táxi! Só que, na tábua, cabia apenas um deles... E eu vou estocar comida. E tábuas. Para construir um bunker. Quero me proteger contra essa barbárie verbal.
Mas, não estou satisfeito. Isso é pouco. Tem mais coisa. Recente, inclusive. Vejamos. Como dizia o velho Barão do Itararé, de onde menos se espera... dali mesmo é que não sai nada.
Vejam esta pergunta em prova da OAB:
Zenão e Górgias desejam matar Tales. Ambos sabem que Tales é pessoa bastante metódica e tem a seguinte rotina ao chegar ao trabalho: pega uma xícara de café na copa, deixaa em cima de sua bancada particular, vai a outra sala buscar o jornal e retorna à sua bancada para lêlo, enquanto degusta a bebida. Aproveitandose de tais dados, Zenão e Górgias resolvem que executarão o crime de homicídio através de envenenamento. Para tanto, Zenão, certificandose que não havia ninguém perto da bancada de Tales, coloca na bebida 0,1 ml de poderoso veneno. Logo em seguida chega Górgias, que também verifica a ausência de qualquer pessoa e adiciona ao café mais 0,1 ml do mesmo veneno poderoso. Posteriormente, Tales retorna à sua mesa e sentase confortavelmente na cadeira para degustar o café lendo o jornal, como fazia todos os dias. Cerca de duas horas após a ingestão da bebida, Tales vem a falecer. Ocorre que toda a conduta de Zenão e Górgias foi filmada pelas câmeras internas presentes na sala da vítima, as quais eram desconhecidas de ambos, razão pela qual a autoria restou comprovada. Também restou comprovado que Tales somente morreu em decorrência da ação conjunta das duas doses de veneno, ou seja, somente 0,1 ml da substância não seria capaz de provocar o resultado morte. Com base na situação descrita, é correto afirmar que
A) caso Zenão e Górgias tivessem agido em concurso de pessoas, deveriam responder por homicídio qualificado doloso consumado.
B) mesmo sem qualquer combinação prévia, Zenão e Górgias deveriam responder por homicídio qualificado doloso consumado.
C) Zenão e Górgias, agindo em autoria colateral, deveriam responder por homicídio culposo.
D) Zenão e Górgias, agindo em concurso de pessoas, deveriam responder por homicídio culposo.”

Qual é a resposta correta? Sei lá. Deve haver milhares de casos como esse por aí, na cotidianidade das práticas jurídicas. Do mesmo modo que os gêmeos xifópagos, que, na minha rua, andam armados... Há um sindicato deles. Eles são terríveis! Diz o gabarito que a alternativa correta seria a “A”; mas também se diz que a “B” poderia estar certa. E, mais do que isso, há uma terceira corrente que sustenta que ambos deveriam responder por tentativa de homicídio. Cartas e e-mails para esta Coluna. Não consigo dormir sem que este dilema seja decifrado.
Poderia trazer outras questões. Aliás, há uma que não posso deixar de agregar ao rol. Um sujeito vai ao cemitério e pretende furtar os ossos de um túmulo. Acontece que a viúva lá estivera antes e levara os ossos para casa, porque queria dormir com o finado (isto é, com seus ossos). A pergunta de uma das provas da OAB: houve ofensa a algum bem jurídico? Respondo: a ofensa que houve foi ao aluno. A pergunta é absolutamente ofensiva. Indago: onde queremos chegar com isso? É uma gincana? É um quiz show? Vamos chamar o marido da Luciana Gimenez, que tem uma espécie de show do milhão, em que os candidatos têm de responder perguntas do estilo “pegadinhas”. Volto ao “dilema Tostines”: os concursos e provas da OAB são assim por causa dos cursinhos e das faculdades ou as faculdades e os cursinhos são assim por causa das pegadinhas dos concursos e provas da OAB? Cartas para esta Coluna!
Zenão e Górgias, juntamente com Caio e Tício, entram no rol dos grandes assassinos. Penso que os elaboradores também podem ser enquadrados em algum tipo “acadêmico de penalização”. O que Górgias de Leôncio diria disso, ele que foi o mais famoso sofista? E o que Zé-Não responderia (perdoem-me o trocadilho absolutamente infame...)?
Mas, se de um lado existem esses exageros dogmático-manualísticos, já começam a aparecer “adaptações darwinianas”, tentando “superar” o modelo “em vigor”. No Concurso para a Defensoria do Paraná, exageraram na dose “antitética”, ao perguntarem se a filosofia torna livre no Defensor o seu “Ser”... Em outra questão indagaram sobre Baumann e Bourdieu (não sei qual é a relação entre eles, mas, enfim...). OK. Tudo bem que tenhamos que mudar os concursos. Mas há que se ter cuidado para não “espantar o freguês”. Filosofia do Direito não é “capa de sentido”. E nem Sociologia é isso. Não basta “colar” conceitos. Essa questão sobre o “Ser” do Defensor (sic) foi demais. Aliás, se a questão queria ter tido algo a ver com o “Ser” (ou a questão do “Ser”) de que fala, por exemplo, Heidegger, é bom lembrar que ele dizia que “o ser não é um ente”; “o ser não é uma capa de sentido” (o ser não pode ser visto; ele só serve para dar sentido aos entes). Complicado, não? De todo modo, “uma no cravo, outra na ferradura”. Vejamos: o mesmo concurso pergunta sobre a hipótese de um presídio estar sem segurança e se, mesmo assim, as presas tinham direito ao sexo. Mesmo sem segurança, a resposta pedida era “sim”. Bom, direito todos tem a uma porção de coisas... mas isso a questão não definia. Outra questão era sobre um executivo do mercado financeiro que, demitido, estressado, atropelou pessoas, agrediu um motoqueiro, além de subtrair a sua motocicleta. Os meios de comunicação noticiaram o fato com “fervor”. O que foi perguntando? Que o candidato identificasse a teoria que melhor explica o caso: o labbeling approach, a teoria crítica, a Escola de Chicago, a associação diferencial ou a teoria da anomia... Uau. Não joguemos fora a água suja com a criança dentro. Sair de um modelo fast food para um modelo de perguntas desse tipo é não inovar em nada. Lamento informar, mas, com esse tipo de prova corremos o risco de retroceder, além de reforçar o lado tradicional. É mais ou menos como o professor de Filosofia do Direito que chega na aula e, como é doutor em Hegel, manda os alunos de primeiro ano lerem a obra de Hegel. Ele passa todo o semestre falando em Hegel, sem liga-lo à especificidade jurídica. Resultado: os alunos não só odiarão Hegel, como também o professor e a Filosofia do Direito. Ou seja, espanta-se a clientela.
Olhando as provas em geral, há que se perguntar: qual é o “tipo ideal” de advogado, promotor, juiz, defensor, etc., que queremos? Já nos perguntamos sobre isso? Já falei aqui da prova do MPF, concurso feito para pessoas treinadas em resolver charadas. É bom para a República que um profissional (agente político ou não) seja especialista em charadas à la Sherlock Holmes? O problema é que ele tropeçará na primeira causa que exija reflexão. Bom... basta ver como anda o nosso sistema jurídico para constatarmos os erros do passado, a persistência neles no presente e a falta de perspectivas para o futuro. Se os concursos fossem adequados, já estaríamos melhor, pois não? Mas, insisto: não é simplesmente substituindo um modelo por outro, sem critérios, meio “a la loca”, que mudaremos o estado da arte do fenômeno “concursos públicos”.
De todo modo, temos que levar em conta que o Brasil, conforme o último Censo, possui 27% de analfabetos funcionais (mais de 50 milhões de almas). Neste mesmo país de dimensões continentais, o canal de TV SBT está buscando os 100 maiores brasileiros..., para, daí, tirar o “maior brasileiro de todos os tempos”. O resultado da busca do SBT reflete bem a “homem médio” de terrae brasilis: estão nessa lista o zagueiro Dedé do Vasco, o Reynaldo Gianecchini, a Xuxa, o Luciano Huck e, não poderia deixar de estar, o grande filósofo contemporâneo Michel Teló. Pronto. Se fossem brasileiros, certamente Caio, Tício, Mévio, Gorgias e Zenão estariam nela. Sem dúvida. Corremos o risco de Rodrigo Faro ou Teló ganharem a disputa ganhar a disputa. Se fôssemos fazer uma lista, hoje, dos 10 ou 15 maiores juristas de todos os tempos do Brasil, correríamos o risco de a malta apontar um autor de algum compêndio simplificado ou de um polígrafo utilizado para resolver questões de concurso ou algum site “especializado” em debater essas “perguntas” (como essa do Gorgias, do Zenão, dos gêmeos xifópagos, do “princípio da ponderação” — sim, tem concurso que já perguntou isso...).
Depois se queixam quando faço essas ácidas críticas. O problema é que “o réu não se ajuda”. Com tanta gente fazendo mestrado e doutorado, com tantos livros sendo escritos, não dá para sair desse imaginário dogmático-tecnicizante? Invoco, novamente, T.S. Eliot: onde está o saber que se perdeu na informação? E onde está a sabedoria que se perdeu no saber?
Perdemos a capacidade de indignação e a capacidade crítica (embora Luc Ferry, para vender livros aos montes e ser diferente, diga que não devemos nos indignar)... Perdemos a capacidade de refletir sobre a problemática do Direito em uma sociedade complexa como a de terrae brasilis. Emocionamo-nos com as ficções; mas somos indiferentes à dura realidade. Confundimos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Choramos nos filmes e maltratamos o primeiro mendigo que encontramos.
Emocionamo-nos com o drama do personagem de Victor Hugo, que furtou um pão e foi perseguido pelo resto da vida; mas não estamos nem aí para o sujeito que fica preso meses por furtar um sabonete... Por isso, um pouco de literatura vai bem, pois não? Precisamos de grandes narrativas no Direito. De que modo Machado de Assis ou Victor Hugo relatariam “uma tarde nos Juizados Especiais”? Imaginemos o meirinho gritando: quem quer conciliar, fique do lado direito; quem não quer conciliar, poste-se no lado esquerdo. Um dos personagens de Germinal, de Zolá, quando tosse, faz verter um líquido escuro, mostrando como as minas de carvão deixaram seus pulmões. Lendo isso, a gente parece que está ali, assistindo aquele sofrimento daquela triste alma. O realismo da literatura poderia nos ajudar muito para fazer relatos sobre o Direito.
Talvez, assim, pararíamos a fazer questões do estilo “pegadinhas” ou absolutamente ficcionais. Se não quisermos ir para a literatura, porque cansa um pouco, quem sabe lemos Paulo Freire? Lembram de suas duras críticas ao ensino alienante, que ensinava aos alunos que “Olavo e Élida tomavam um gostoso café, escovavam os dentes e depois um de seus pais os levavam à escola...”? Só que a grande maioria das crianças não tinha isso. Nem café gostoso e tampouco dentes para escovar (no meu caso, tinha dentes, mas meu pai não me levava à escola). E “Ivo viu a uva...”. Pois: há lugares em que não tem Ivo e nem tem uva. E nem Caios e Tícios. Tampouco Zenões e Górgias... Compreendem? Ficções da realidade... realidade das ficções.
Quem nos ouve? Quem nos lê? Vale a pena? Vejo as sustentações orais no Supremo (caso “mensalão”) e me deparo com discursos que, no mais das vezes, repetem chavões e reforçam estereótipos, afora alguns crimes contra o vernáculo (além disso, não entendi, em uma das recitações musicais de plenário, por que o procurador-geral da República teria inventado a escuridão e se esquecido de inventar o perdão...; devo ter perdido um pedaço da exposição do causídico ou não entendi a letra da música do Chico Buarque; também não entendi qual é a piscina que estaria cheia de ratos, na voz de um dos defensores...; teria ele filosofado, na parte em que “as ideias não correspondem aos fatos”, tentando mostrar a inadequação da tese aristotélica-tomista da adeaquatio intelectum et rei? Mistério; muito mistério). A expertise de outro advogado foi a de atirar em todo o mundo, do ex-presidente da República ao PGR. Pior: parcela da imprensa achou “brilhante” a performance. Pois é. Há um antigo livro de Irving Copi (Introdução à Lógica) que deveria ser lido por alguns dos causídicos que fizeram as sustentações, mormente no capítulo “das falácias”, principalmente aquela chamada “ad hominem” (procurei na biblioteca, mas não achei; cito de cor; mas lembro que tem capa amarela).
Voltando. Quem, hoje em dia, quer saber de teoria crítica? Lembro, então, de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. O bebê nascido morto e prematuro. Tio John leva o caixote em que jaz o pequeno cadáver para longe do acampamento. Mas, ao invés de enterrá-lo, deposita-o sobre as águas revoltas de um riacho que a enchente tornou violento. Ao ver o caixote — usado para o transporte de maçãs — sendo levado pelas forças das águas, ele, tão calado e contido, incapaz de se queixar das agruras do cotidiano, grita ao bebê morto, como em um “desabafo fundamental e transcendental”:
Vai, vai rio abaixo e diz aquilo para eles. Vai descendo e estaca na estrada e apodrece e diz pra eles como é. É o único jeito de tu dizeres as coisas. Nem sei se tu és menino ou menina, mas nem quero saber. Vai descendo e apodrece na estrada. Talvez, então, eles fiquem sabendo”.

Sim — acrescento — talvez então “eles” fiquem sabendo... Na metáfora dos caixotes navegam para o apodrecimento os restos da ciência jurídica... Talvez o apodrecimento nas margens seja o único modo de dizer “coisas” para eles!
Fim do ato!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2012

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog