Preso em flagrante no aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, em maio de 2008, ao desembarcar de um vôo de Amsterdã, Holanda, transportando 11 quilos de comprimidos de ecstasy, 290 gramas de ácido lisérgico e 302 gramas de skunk, tudo avaliado em cerca de R$ 4 milhões, o comportamento do universitário José Luiz Aromatis Netto, de 26 anos, tornou-se alvo de um longo debate na Justiça Federal do Rio de Janeiro.
A quantidade e o valor dos entorpecentes apreendidos em seu poder viraram motivo de debate na hora em que juízes e desembargadores federais foram definir a dosimetria da pena do rapaz. Para uns, o montante e o preço das drogas não são suficientes para considerá-lo como membro de uma organização criminosa. Com isto, decidiram enquadrá-lo apenas como mula, com direito a atenuantes que lhe reduziram o tempo de prisão e permitiram recorrer da condenação em liberdade.
Outros, porém, consideram que a nenhuma “mula” é dada a responsabilidade de transportar mais de R$ 4 milhões em entorpecentes, o que lhe daria status de participante da organização, permitindo agravar sua situação com o respectivo aumento da pena e sem direito ao recurso em liberdade. Uma tese que se reforçou pelo fato de Aromatis, em momento algum ter indicado com precisão quem o contratou para o “serviço”.
No Tribunal Regional Federal da 2ª Região, prevaleceu o entendimento de que, para ser enquadrado como integrante de organização criminosa, não bastam apenas a quantidade e o valor das drogas apreendidas.
No caso, o réu confesso, na Polícia e em juízo, ter ido à Holanda em busca da droga, encomendada, segundo disse, por terceiros, jamais por ele devidamente identificados. No interrogatório, justificou sua atitude pelas “circunstâncias sociais e psicológicas que o cercavam: de há muito era usuário de drogas; sua mãe passava por dificuldades financeiras e seu pai não podia mais ajudá-lo tendo em vista seu falecimento; trancamento de sua matrícula na faculdade de publicidade por falta de condições financeiras”, como descreve a sentença do juiz Erik Navarro Wolkart, da 7ª Vara Federal Criminal, que o condenou em julho daquele mesmo ano.
Discórdia na pena
Foi, porém, ao definir o tempo de condenação que teve início a discussão. Wolkart estabeleceu a pena base acima do mínimo legal, em nove anos de reclusão e 900 dias multa. Majorou-a em seis meses e 100 dias multa, por ter sido o crime cometido mediante pagamento e promessa de pagamento. Tratando-se de tráfico internacional, determinou novo aumento em um sexto, atingindo 11 anos e um mês de reclusão e 1.166 dias multa.
Mas, ao reconhecer a “primariedade do acusado e a completa ausência de maus antecedentes ou de indícios que indiquem o seu envolvimento com organizações criminosas”, aplicou a redução máxima prevista no artigo 33, parágrafo 4º da Lei 11.343/2006: dois terços. Chegou então a uma condenação definitiva de três anos, oito meses e 10 dias de reclusão e 388 dias multa.
Decidiu ainda pelo regime aberto para o início do cumprimento da condenação, destacando que “já é hora de o estado atentar que o direito penal não é vingança social, luta de classes e muito menos a solução para séculos de equívocos administrativos. Muito pelo contrário, há que se considerar não somente a natureza do crime, cuja gravidade já está imantada no montante da pena fixada, mas também a personalidade do réu, a finalidade da pena e infelizmente as condições da escola do crime, mais conhecida como sistema carcerário”.
A decisão fez o procurador da República Fabio Seghese ingressar com um Mandado de Segurança no Tribunal Regional Federal da 2ª Região reivindicando a suspensão da parte da sentença que permitia o recurso em liberdade. Alegou que como o artigo 44 da Lei 11.343/06 impede a concessão de liberdade provisória para estes crimes, havendo uma condenação “a coerência intrínseca do sistema conduziria à proibição da soltura”, a condenação é o “reconhecimento da existência do crime imputado na denúncia”
Ao concordar com o procurador e conceder a liminar suspendendo a liberdade do preso, o juiz convocado Aluísio Gonçalves de Castro Mendes deu início à discussão em torno da questão da quantidade de drogas apreendidas. “A considerável quantidade de entorpecente apreendida em poder do réu, avaliada em cerca de R$ 4 milhões, seria, segundo as matérias jornalísticas acostadas às fls. 16/17 a maior apreensão do ano no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, elementos que demonstram a gravidade da conduta e destoam do entendimento externado pela autoridade impetrada no sentido de que o réu não representaria maiores perigos à sociedade, o que recomenda a manutenção da custódia que até então se manteve”, disse.
O advogado Carlo Luchione bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça com um Habeas Corpus para cancelar a liminar do TRF-2 que impedia seu cliente de recorrer em liberdade. Ao atender ao pedido restabelecendo liminarmente a íntegra da sentença, o ministro Nilson Naves entendeu que “não tem o Ministério Público legitimidade para impetrar mandado de segurança com a finalidade de que seja dado efeito suspensivo a parte de sentença. O Superior Tribunal tem entendimento segundo o qual o princípio do devido processo legal preconiza que o parquet não pode restringir garantias dadas aos acusados além dos limites estabelecidos pela legislação".
Recursos ao tribunal
Defesa e MPF recorreram ao TRF-2. A defesa, pelo advogado Luchione, pediu a redução da pena base, entendendo-a exagerada diante da personalidade e conduta social favoráveis. Quis ainda o afastamento da causa de aumento relativa a transnacionalidade e o reconhecimento da atenuante da confissão.
Já o procurador Seghese reivindicou a majoração da pena base para, no mínimo, 10 anos de reclusão, diante dos parâmetros estabelecidos na Lei 11.343/06; a exasperação do aumento dado por conta da transnacionalidade do crime para, no mínimo, 1/3 da pena (e não o 1/6 aplicado pelo juiz); o afastamento da redução relativa à primariedade do réu, bem como a suspensão do regime aberto no cumprimento da pena e o direito ao recurso em liberdade.
Seghese apegou-se à tese de que tamanha quantidade e diversidade de drogas são indícios fortes — não os únicos — da participação do réu em uma organização criminosa, por isto não fazendo jus às atenuantes aplicadas na dosimetria da pena.
“Considerando que sua conduta social não milita em seu favor, uma vez que não se pode reputar como adequado o uso manifesto de entorpecentes, conduta capitulada como crime no ordenamento jurídico pátrio; e, por fim, considerando o motivo do crime, consubstanciado no exclusivo propósito de obter lucro rápido e fácil; merece ser aumentada a pena-base fixada para, no mínimo, 10 anos de reclusão”, expôs.
E acrescentou: “Pelas circunstâncias da apreensão e notadamente pelos valores envolvidos, não é dado afirmar que o réu se ajusta ao papel de simples e eventual ‘mula’ do tráfico internacional, aleatoriamente recrutada para uma aposta de risco. Pelo contrário, os indícios trazidos aos autos apontam para pessoa que, no mínimo, gozava de expressiva confiança das pessoas integrantes da estrutura de introdução dessas drogas na cidade do Rio de Janeiro”.
Frequência no crime
No julgamento da apelação, a tese do MPF foi abraçada pelo relator, o desembargador Abel Gomes. Ele votou pela improcedência da apelação da defesa e não acolheu o pedido de majoração da pena mínima, como defendeu Seghese. Concordou, porém, com “o MPF quando raciocina com um dado muito objetivo e que está inserido na instrução criminal como prova da materialidade do crime, e que foi encontrada com o acusado, que é a quantidade de unidades de drogas, somada ao valor estimado da carga — milhões de reais — o que bem revela que o acusado, se fosse apenas um esporádico transportador de drogas, não teria sido objeto da confiança de tão vultosa carga, nem estaria no foco de tal transporte”.
Mais adiante, Gomes insistiu: “tal contexto revela que o transporte da droga pelo acusado, naquelas circunstâncias, não se compatibiliza com a posição de quem não se dedicasse, com certa frequência e anterioridade a atividades delituosas, no seio dos objetivos de uma organização criminosa”.
Presunção
Ao discordar desta posição, o revisor, juiz convocado Julio Emílio Abranches Mansur, afirmou ter dúvidas quanto à participação do réu em organização criminosa. “[Pela análise da] prova colhida durante a instrução processual, verifico existir relativa dúvida se o acusado integra ou não organização criminosa. Tal dúvida não decorre do simples fato do mesmo ter sido qualificado como ‘mula’, pois a lei fala em ‘integração’ à organização criminosa, não em grau de importância na estrutura desta. Assim, uma ‘mula’ pode integrar ou não a entidade criminosa, conforme atue de forma ocasional ou rotineira no bojo da mesma”, disse.
Para ele, a dúvida decorreu de não se demonstrar na instrução processual “de forma segura, ser o acusado membro da aludida organização criminosa”. Considerou a quantidade e o valor da droga apreendida como um “indício de que o mesmo gozaria de certa confiança da organização criminosa” mas não o suficiente “para demonstrar a condição de integrante da organização criminosa. Há sim uma presunção relativa de integração, mas que, em obediência do princípio do in dubio pro reo, não é suficiente para caracterizá-lo como tal. Para considerá-lo integrante de uma organização criminosa é preciso mais do que uma presunção, por mais razoável que seja”, considerou.
De qualquer forma, Mansur votou a favor da majoração da pena por entender indevida a redução em um terço. No seu entendimento, ela deveria ser de apenas um sexto.
Prevaleceu, porém, a vontade da maioria e, por dois votos a um — o juiz Castro Mendes acompanhou o relator —, a pena passou dos três anos e oito meses para 12 anos e três meses de reclusão e 1166 dias-multa.
Gomes, entretanto, não decretou a prisão do réu, uma vez que “a necessidade da prisão provisória do apelado/apelante foi matéria bastante controvertida no bojo dos presentes autos, inclusive com posição do STJ, em sede de liminar concedida nos autos do Habeas Corpus 115.280”.
A discussão prosseguiu na 1ª Seção Especializada do TRF-2 durante a apreciação de Embargos Infringentes interpostos pela defesa. Ao relatá-lo, a desembargadora Liliane Roriz perfilou-se com o entendimento do voto vencido “visto que a presunção, no presente caso, não pode ser interpretada em desfavor do acusado”.
Para ela, “ainda que a quantidade de drogas apreendidas tenha sido muito elevada, atingindo o vultoso valor de quatro milhões de reais, não podemos olvidar que as pastilhas de ecstasy e os selinhos de LSD são mínimos. Assim, se verificarmos essa quantidade dentro de uma mala, não seria como 10 quilos de cocaína pura, que, ao revés, seria um volume muito grande. Portanto, acredito que uma mula pode, de fato, ser aliciada para levar uma parcela de cocaína para o exterior e voltar com essas drogas sintéticas nessa quantidade, mormente porque, em termos de volume, não é nada absurdo”. Roriz disse que tal circunstância não é suficiente para demonstrar a condição de integrante da organização criminosa.
Na dosimetria da pena, porém, discordou do juiz Mansur, alegando que o Ministério Público Federal não postulou “a diminuição do percentual aplicado, mas o afastamento da causa de diminuição de pena” o que a fez entender que “o percentual a ser aplicado é o da sentença condenatória, notadamente por também estar mais consentâneo com o que é usualmente aplicado para os acusados reconhecidos como mulas, devendo a mesma ser fixada em três anos, oito meses e 10 dias.
A relatora dos embargos foi acompanhada por mais três desembargadores: Paulo Espírito Santo, Nizete Lobato Carmo e Messod Azulay Neto. O voto vencido foi do desembargador Ivan Athiê, pronunciado oralmente durante o julgamento e não transcrito no acórdão. Como este só foi publicado no último dia 10 e a Procuradoria Regional da República ainda não foi intimada da decisão, ainda pode haver recursos levando o debate sobre a questão para o STJ.
Clique aqui para ler o voto da desembargadora Liliane Roriz.
Clique aqui para ler o voto do desembargador Abel Gomes.
Marcelo Auler é jornalista.
Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2012
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