A
advocacia sempre foi a profissão liberal por excelência. O advogado
presta um serviço profissional especializado em um regime de confiança. O
cliente do advogado não entende bem o que o advogado faz: não sabe que o
correto é mandado – não mandato – de segurança. Não sabe que não é
possível entrar com uma liminar: é preciso primeiro pedi-la. (E o juiz
pode, inclusive, negar o pedido). E o cliente, incauto, não tem a menor
idéia das suas chances de êxito numa ação antes de propô-la; aliás, às
vezes nem sabe o que a palavra êxito quer dizer.
No
imaginário coletivo, o advogado figura muitas vezes como o malandro ou o
enrolador. E não há aqui nenhuma novidade. O açougueiro Dick,
personagem de Shakespeare em Henrique VI, teve uma idéia que já cruzou a
mente de muitos: "a primeira coisa a se fazer é matar todos os
advogados!”. Mas não é só o ódio ou desprezo que povoam o imaginário
coletivo sobre o advogado. O advogado é também visto como alguém com uma
capacidade de reflexão diferenciada sobre o mundo. Não só porque ele
(ou ela, para sermos justos) possui educação superior, terceiro grau
completo, algo ainda incomum no nosso país. É também porque o advogado
estuda as leis. E as leis cristalizam a história humana em sintaxe.
A
seguinte situação já me ocorreu pelo menos uma centena de vezes.
Encontrar alguém que me diga: "um dia ainda vou fazer faculdade de
Direito”. Essas pessoas se explicam assim: vou fazer faculdade de
Direito para ter uma nova profissão mais interessante, vou fazer
faculdade de Direito para não ser enganado de novo, vou fazer faculdade
de Direito por puro diletantismo já que o Direito é tão interessante.
Verdade que só uma pequena minoria dessas pessoas de fato algum dia
decide ir aos bancos do bacharelado em Direito. Às vezes porque não têm
tempo; às vezes porque o curso é caro; às vezes porque o curso é árido.
Mas
seja lá qual for a imagem que as pessoas constroem dos advogados, o
fato é que esta imagem está, de alguma forma, freqüentemente ligada a um
sujeito de classe média-alta, que usa paletó e gravata e que trabalha
em um ambiente de relativa calma. De plano, há aqui um equívoco: calma, a
atividade do advogado nunca foi. Mas de qualquer forma, hoje ela é
ainda mais agitada do que fora no passado. A competição entre os
advogados hoje é muito intensa. E além disso, na grande maioria dos
casos o advogado já não está mais nas classes privilegiadas, como
ocorria antigamente. É claro que ainda existem muitos advogados de
destaque, mas como um todo a profissão se proletarizou.
Em parte,
isso se deu por razões políticas. O fim da ditadura marcou uma aposta no
direito e nas profissões jurídicas como um mecanismo decisivo para uma
transformação social pela via evolutiva, ao invés da via revolucionária.
Por um lado, os tribunais (e o STF em particular) foram alçados à
condição de poder moderador, como bem observou Oscar Vilhena Vieira. E
por outro, a Constituição de 1988 está inspirada pela crença de que o
direito permitirá à sociedade a um só tempo preservar as liberdades e
ampliar os meios de acesso; garantir a eficiência e encetar a
distribuição de renda; garantir os direitos humanos, os direitos
sociais, e os direitos difusos; mudar o mundo, senão mesmo refundar o
homem. Este é o sonho.
Uma das repercussões práticas desse sonho
foi investir-se pesadamente no Poder Judiciário. Um relatório intitulado
Judiciário e Economia, disponibilizado pela Secretaria de Reforma do
Judiciário Ministério da Justiça em meados da década passada, mostrava
que o Brasil gastava nos anos 1990 o equivalente a 3,66% de seu
orçamento com a manutenção do sistema judicial. Esta despesa era a mais
alta em comparação com outros 35 países analisados pelo Banco Mundial.
Além disso, naquele período o Brasil teria gasto também, em termos
proporcionais, o triplo da média das despesas com o Judiciário de outros
países. O relatório não está mais disponível no site da Secretaria, e
não se duvida de que o Banco Mundial possa ter se equivocado em parte na
coleta e análise de dados. Mesmo assim, ficou a certeza de que, no
arranjo político brasileiro, mas não necessariamente no arranjo político
de outros países, o Poder Judiciário tem um papel muito importante; e a
importância deste papel se mede também em cifrões.
Outra
repercussão importante do pacto político de 1988 foi a abertura de
muitos cursos de Direito pelo Brasil afora. A idéia de ampliar o número
de estudantes de Direito – hoje são mais de 500 mil, uma marca
verdadeiramente impressionante – uniu diversos interesses convergentes. O
interesse do estado de educar a população; o interesse da população de
estudar de direito (especialmente por conta do sonho de conseguir-se um
emprego público); e o interesse das escolas e faculdades de abrir novos e
lucrativos cursos jurídicos.
O maior número de advogados tem um
efeito benéfico e outro maléfico. Por um lado, gera uma pressão política
constante para manutenção de pelo menos algum nível de estado de direito.
Se voltássemos a ser uma ditadura, milhares de pessoas provavelmente
perderiam o seu ganha-pão. A sustentação de um regime é também uma
matéria de interesse político. O grande número de advogados preserva uma
estabilidade mínima (ainda que imperfeita) das regras do jogo, e nesse
sentido a aposta constitucional de 1988 parece ter dado certo. Quando se
diz que a OAB é fiadora da democracia, está-se dizendo a verdade. Por
outro lado, o grande número de advogados faz cair o nível do
profissional médio porque deselitiza a profissão. E por isso, o serviço
advocatício ofertado ao cliente médio pode piorar também. Se bem que a
competição pode fazer com que os advogados precisem estudar mais,
atualizem-se com mais freqüência, lutem nos processos com ainda mais
garra: as coisas não são tão óbvias assim.
No passado, o pequeno
número de advogados e de faculdades de direito freava a competição entre
os advogados. O baixo nível de competição também era garantido por
restrições legais como a vedação à propaganda, à propriedade das firmas,
regras para o custo mínimo da hora trabalhada, exames de ordem, etc.
Sob o sacrossanto manto da não mercantilização da profissão, tudo isso
garantia o antigo status do advogado como um membro da elite. Mas à
mudança política no Brasil somaram-se outras duas mudanças radicais que
fizeram com que a profissão de advogado também mudasse de maneira
radical.
A primeira foi a evolução tecnológica. Emails,
computadores, processos eletrônicos, depoimentos online, tudo isso deu
novo ritmo ao dia-a-dia do advogado. A mudança tecnológica impactou a
todos. Até mesmo as firmas maiores que antes dispunham da vantagem
competitiva de possuírem, por exemplo, grandes bibliotecas privadas,
viram-se diante de pressões competitivas de toda ordem. Todas as leis
estão online: não é mais preciso assinar as caríssimas coleções
legislativas de antigamente. Os livros de direito ainda são caros, mas a
revolução digital também mudará este quadro nos próximos anos. E, de
todo modo, os artigos, teses e minutas de peças processuais espalhados
pela internet já são bem mais efetivos do que a maioria das boas
bibliotecas privadas de antigamente.
A segunda mudança foi a
globalização econômica, e na esteira, a massificação da advocacia.
Advogar para multinacionais deixou de ser privilégio das mais renomadas
bancas de advocacia. Bancos, empresas de telefonia, prestadores de
serviço e fornecedores dos mais variados produtos passaram a demandar os
serviços do profissional jurídico médio. Com isso, o cliente deste
profissional médio muitas vezes deixou de ser o pacato cidadão com
problemas pessoais, para se transformar em um gerente jurídico. E o
gerente jurídico, ao contrário do incauto cliente de antigamente,
conhece o direito, é cobrado internamente por resultados, e simplesmente
não pode ser enganado facilmente. E mais do que isso: o gerente
jurídico mede seu desempenho, em grande parte, pela capacidade de
reduzir as despesas com advogados externos.
Ao mesmo tempo
criou-se mundo afora, e no Brasil também, uma certa elite jurídica para
quem o conceito de profissional liberal passou a fazer cada vez menos
sentido. Para as grandes firmas, a competição é cada vez mais global. A
sobrevivência depende cada vez mais da substituição de uma estrutura
interna de poder – o sócio manda, o resto da turma obedece – por um
verdadeiro plano de negócios com carreiras, incentivos e toda a
quinquilharia das consultorias de RH. Estas grandes firmas são
verdadeiros players em um mercado de negócios. São
administradas profissionalmente, competem pelos melhores talentos e
sofrem com as oscilações de ciclos econômicos pelas quais passam seus
clientes.
E para aonde vai a advocacia? Primeiro, a cobrança por
hora trabalhada deve se tornar cada vez mais incomum. A cobrança por
hora pressupõe um nível de confiança no advogado que no ambiente de hoje
é cada vez mais impensável. Além disso, a cobrança por hora traduz
precificação como reflexo do custo – aquilo que os americanos chamam de cost-plus. É portanto contrária a idéia de negócio, de business, em que os preços devem depender de quanto o cliente está disposto a pagar e do preço estabelecido em mercado.
Segundo,
não há por que imaginar-se que a profissão de advocacia possa voltar a
ser o cartel de cavalheiros que fora no passado. O direito é hoje cada
vez mais uma indústria – a indústria jurídica. Isso quer dizer que a
vida do advogado será tão dura quanto a dos outros profissionais. Por
exemplo, cada vez mais a rapidez com que o advogado responde ao cliente
será um fator decisivo no seu sucesso. Estar online, responder emails,
tudo no ritmo alucinante dos nossos dias. Nos escritórios, especialmente
nas grandes firmas, acredito que a aproximação com um modelo de
negócios deve tornar cada vez mais claro o compromisso com o mérito –
sob pena de transformar-se em desvantagem competitiva para a firma. E
trazer clientes e receitas é, evidentemente, uma dimensão do mérito,
coisa que o jovem estagiário aprende rapidamente.
Terceiro, o
espaço para o generalista será cada vez menor, mas também a
especialização não será o único caminho. Com a comoditização, a
advocacia de massa oferece um refúgio (a baixos salários) para muito
profissionais. E oferece, também, uma enorme oportunidade para advogados
com espírito empreendedor que desejem montar grandes plataformas de
prestadores de serviços que lucram na quantidade. Isso, para não falar
do engenheiro jurídico, o formulador de plataformas de software para
serem operadas por clientes corporativos cujos advogados não fazem senão
preencher lacunas. O futuro é incerto, mas as oportunidades
aparentemente estão em toda parte.
Bruno Meyerhof Salama é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2012
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