A sexualidade de crianças e adolescentes tem sido frequentemente abordada pelo direito a partir de sua violação. Neste sentido, embora constitua um grave problema, a questão do abuso e da exploração sexual tem determinado a discussão sobre a temática.
Tal situação revela a existência de dificuldades na sociedade brasileira de aceitação e discussão do conteúdo afirmativo da sexualidade de crianças e adolescentes. Tratam-se de obstáculos decorrentes de concepções morais, bem como de um processo de socialização centrado nas crenças e interesses dos adultos.
A violência sexual foi eleita como assunto prioritário na década de 90 e, inobstante sua legitimidade e pertinência, ressaltou sobremaneira a condição de vítima de crianças e adolescentes, o que determinou um processo de verdadeira caça e responsabilização do autor do abuso sexual. “Paralelamente, tentou-se colocar em pauta a discussão sobre os direitos sexuais da população infanto-juvenil como direitos humanos inalienáveis” (MATTA; CORREIA, 2008, p. 4). No entanto, essa discussão não foi estabelecida e a questão da violência sexual, frequentemente explorada pelos mass media, tem legitimado hodiernamente o emprego de aportes teóricos como o do direito penal do inimigo no contexto da pedofilia, bem como “novas” tecnologias inquisitórias elaboradas para o público infanto-juvenil com vistas à extração da “verdade” como o “depoimento sem dano”.
Esther Arantes ressalta a “complexidade da questão que envolve a discussão sobre os contornos do direito à sexualidade e a (in)capacidade das crianças e dos adolescentes para a sua prática” (ARANTES, 2009, p. 2). Trata-se de discussão que extrapola os limites desse breve artigo, mas que aponta para a inadequação de um marco legal (des)autorizador de seu exercício.
A legislação penal brasileira, desde o período do Império até o Código de 1940, criminalizou condutas consideradas atentatórias à honra e à moralidade sexual. O objeto da tutela penal não era a liberdade, no particular aspecto do exercício da sexualidade, mas a moralidade com vistas ao considerado aceitável em matéria de comportamento sexual.
A Lei n. 12.015/2009 alterou o Código Penal brasileiro no tocante aos crimes sexuais. Embora aparente uma certa evolução, na medida em que sob o aspecto formal a questão da moralidade foi substituída pela tutela da dignidade e da liberdade sexual, a legislação penal continuou refletindo uma postura proibitiva e de natureza moral sobre a sexualidade infanto-juvenil.
A figura típica do “estupro de vulnerável” prevista no art. 217-A é exemplar manifestação dessa postura. Trata-se de dispositivo legal de manifesta influência norte-americana que criminaliza o sexo consensual com menores de 14 anos, com pena mais severa do que a correspondente ao crime de estupro convencional, em afronta ao princípio da proporcionalidade. Partindo do pressuposto de que crianças e adolescentes menores de 14 anos não têm capacidade jurídica para consentirem na prática de atos sexuais, a legislação penal proibiu-os de se autodeterminarem sexualmente, transformando a natural experiência sexual em crime. A justificativa para tal proibição está assentada no discurso da necessidade de proteção do “desenvolvimento regular da sexualidade da criança e do adolescente”. Tal proteção foi posta a partir da consideração de que o exercício da sexualidade pelos menores de 14 anos é irregular, desviante e deve ser objeto de proibição.
A concepção de proteção subjacente à norma penal remonta a ideologia do Código de Menores que tem o viés da tutela, do controle dos menores desajustados sociais e que devem ser objeto de intervenção. A proteção que se quer dar a partir da proibição do exercício da sexualidade ignora como inerente a própria constituição humana, insuscetível de uma abordagem legalista de regulação.
Sobre a questão da regulação, Michel Foucault aponta que a relação entre a sexualidade e a norma assume importância estratégica, pois, enquanto comportamento corporal, a sexualidade depende de um controle disciplinar, individualizante, por outro lado se insere e adquire efeito em processos biológicos amplos que concernem não mais ao corpo do indivíduo, mas à população. “A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 303).
Partindo do cotidiano da 12ª Promotoria Criminal de Fortaleza, Matta e Correia constataram que parte dos inquéritos lá existentes foram determinados pela família que tinha como objetivo cercear a liberdade sexual do adolescente por escaparem ao modelo culturalmente aceito, seja por envolverem a homossexualidade ou diferenças pertencentes à classe, raça ou religião do parceiro. Conclem então que, em muitos casos, “as reais motivações dos representantes legais em levarem o caso ao Judiciário deve-se a tentativa de controle da sexualidade destes” (MATTA; CORREIA, 2008, p. 15).
Pensar a Proteção Integral afirmada no Estatuto da Criança e do Adolescente implica no reconhecimento de que crianças e adolescentes estão em condição peculiar de desenvolvimento, o que não as reduz à condição de objeto de intervenção. Assinalar a questão da responsabilidade no seio do direito à sexualidade não significa adotar uma perspectiva repressiva, calcada em juízos de natureza moral ou na sua negação, contrario sensu, implica em disponibilizar o acompanhamento e a orientação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MATTA, E. L. C., CORREIA, V. de M. Direito penal e direito sexual e reprodutivo de crianças e adolescentes: contradições e antagonismos. In: Castanha, N. (Org.). Direitos sexuais são direitos humanos. Brasília: Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, 2008.ARANTES, Esther. Proteção integral à criança e ao adolescente: proteção versus autonomia? Rio de Janeiro: [s.n.], 2009.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Klelia Canabrava Aleixo
Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ);
Mestre em Ciências Penais (UFMG);
Especialista em Docência no Ensino Superior (PUC Minas);
Professora de Direito Penal da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ);
Mestre em Ciências Penais (UFMG);
Especialista em Docência no Ensino Superior (PUC Minas);
Professora de Direito Penal da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Fonte: ALEIXO, Klelia Canabrava. Problematizações sobre o estupro de vulnerável em face do princípio da proteção integral. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 08-09, abr., 2010.
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