Tramita no Congresso Nacional, no Senado, projeto de lei (de nº 226, de 2006) que incrimina as condutas de fazer afirmação falsa ou negar a verdade, na condição de indiciado ou acusado, em inquérito policial, civil ou administrativo, processo judicial ou admininistrativo ou perante Comissão Parlamentar de Inquérito, sob o nomen juris de perjúrio.
A justificativa do projeto aponta sua origem nos trabalhos da CPMI dos Correios e, na prática, insurge-se contra o que denominou de “regime especial” concedido pelo Supremo Tribunal Federal aos investigados – ainda que travestidos da condição de testemunhas por aquela Comissão – pelo qual a Corte Suprema assegurou-lhes o direito de depor sem assinatura do termo de compromisso de dizer a verdade. Por outras palavras, a justificativa do projeto em foco opõe-se à interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao direito ao silêncio e ao princípio da presunção de inocência, considerando-as “dilatadas”. Desse modo, claramente, o projeto objetiva tolher a atividade daquela Corte na interpretação da Constituição.
Apesar do parecer favorável à sua aprovação, emitido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, o projeto em tela é flagrantemente inconstitucional.
Historicamente, na persecução penal, registra-se a tendência a se pretender obter do investigado ou do acusado elementos probatórios e provas de culpabilidade, seja por seu interrogatório ou por sua participação em provas que dependam de sua colaboração. Tal tendência está ligada à consideração do acusado como objeto da prova.
Atrela-se a essa orientação o mito da verdade real, bastante enraigado no processo penal, segundo o qual é preciso perseguir, a todo custo, a verdade dos fatos, como se possível fosse reproduzir, no processo, a verdade histórica.
Contudo, o maior respeito ao homem, as consequentes limitações impostas ao poder estatal frente ao indivíduo e a construção e consolidação de direitos e garantias fundamentais, ao longo do tempo, produziram importantes reflexos na persecução penal. Foi no Iluminismo que emergiu o princípio de que ninguém é obrigado a se autoincriminar (refletido na expressão latina nemo tenetur se detegere – ninguém é obrigado a se descobrir), assim como outros tantos princípios penais e processuais penais. O Marquês de Beccaria, na clássica obra Dos delitos e das penas, já combatia o juramento de dizer a verdade ao acusado, considerando-o antinatural, na medida em que entendia impossível que o homem pudesse jurar, contribuindo para sua própria destruição(1).
Na Constituição Federal, que cuidou de organizar o Brasil como Estado Democrático de Direito, o princípio de que ninguém é obrigado a se autoincriminar é extraído do devido processo legal, do princípio da ampla defesa, da dignidade humana, da presunção de inocência, bem como da incorporação, ao direito nacional, de diplomas internacionais de direitos humanos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu art. 8º, § 2o., alínea “g” e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu art. 14, nº 3, alínea “g”)(2).
Entretanto, o projeto de lei em comento colocou-se na contramão da construção humanística que redundou nos direitos e garantias fundamentais acolhidos na Constituição. Foi bem além das posições doutrinárias que, no passado, sustentaram a existência de dever testemunhal por parte do acusado(3) ou impunham a ele o ônus de dizer a verdade(4), prevendo crime no qual incorrerá o investigado ou o acusado que faltar com a verdade. Por ele impõe-se cruel dilema ao acusado: autoincriminar-se ou então praticar delito. Evidentemente, tal previsão normativa atinge a liberdade moral do acusado, que será compelido a se autoincriminar.
De outra parte, o projeto faz uma leitura equivocada do princípio de que ninguém é obrigado a se autoincriminar. Isto porque, pelo que se extrai da justificativa do projeto e do parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, sustenta-se que, para não ferir a Constituição, é bastante que se respeite o direito ao silêncio. Em outras palavras: defende-se que a incriminação da conduta do acusado que faltar com a verdade em inquérito, processo ou perante Comissão Parlamentar de Inquérito não é inconstitucional, porque o direito ao silêncio não foi vulnerado.
Efetivamente essa leitura do princípio de que ninguém é obrigado a se autoincriminar é equivocada e bastante míope. É que o direito ao silêncio é uma das diversas decorrências do princípio em questão. Outra delas é a inexistência do dever de dizer a verdade, por parte do investigado ou acusado. Note-se que não se sustenta a existência do direito à mentira nesse caso, porque é inadmissível que qualquer direito a ser exercido apresente conteúdo antiético. Na realidade, o acusado não tem direito a mentir, mas se faltar com a verdade em seu interrogatório, tal conduta não pode ser sancionada, assim como o seu silêncio. Tampouco se pode de tal postura extrair consequências negativas, como indícios de autoria e de culpabilidade, ou mesmo aumento de pena.
No Estado Democrático de Direito, considerando o princípio da ampla defesa, o investigado e o acusado poderão dizer a verdade, faltar com ela ou silenciar, sem que nenhum desses comportamentos possa sofrer qualquer censura. Nenhuma coerção deve ser exercida contra o acusado para compeli-lo a se autoincriminar. Veja-se, a propósito, o conteúdo dos dispositivos que espelham esse princípio no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que estabelecem que é direito do acusado não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado. Tal proteção decorre do princípio nemo tenetur se detegere em toda a sua plenitude. Por isso, não basta a tutela do direito ao silêncio para que o mencionado princípio não seja violado. E, sem dúvida alguma, a repressão penal que o projeto cria, impõe ao acusado o dever de autoincriminar-se, porque obrigá-lo a dizer a verdade, em certas circunstâncias, implicará forçosamente que o acusado se declare culpado, ferindo de morte uma das faces do princípio em questão.
Desse modo, assim como é inconstitucional a supressão do direito ao silêncio, o mesmo se pode dizer da imposição do dever de dizer a verdade ao acusado.
Destaque-se que a incriminação contida no projeto, dirigida ao investigado e ao acusado, colide até mesmo com disposição expressa do Código de Processo Penal que, em seu art. 208, dispensa do compromisso de dizer a verdade o ascendente, o descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que separado, o irmão e o pai, a mãe e o filho adotivo do acusado. Ora, como sustentar, harmonicamente, no ordenamento jurídico, que possam tais pessoas eximir-se do dever de dizer a verdade, enquanto o acusado, no mesmo processo, estará obrigado a declará-la, sob pena de cometer crime?
E não se argumente que, em outros ordenamentos nos quais também se tutela o princípio nemo tenetur se detegere, se impõe, em determinadas situações, ao acusado o dever de dizer a verdade, v.g., no ordenamento norte-americano. Primeiramente, de se observar que no referido ordenamento não há o dever irrestrito de o acusado dizer a verdade. Por força da amplitude do direito de defesa, pode ele tornar-se testemunha de defesa no próprio processo. Vale dizer, o acusado só abrirá mão do direito ao silêncio e da inexistência do dever de dizer a verdade se assim quiser. Habilitar-se como testemunha de defesa, no processo em seu desfavor, significa, pois, uma estratégia da defesa, para incrementar o valor probatório das declarações do acusado. Todavia, inexiste, mesmo no direito norte-americano, o dever irrestrito de o acusado dizer a verdade. Além disso, tão antinatural é a imposição desse dever ao acusado que, mesmo nos Estados Unidos, estatisticamente, é raro submetê-lo a processo penal por perjúrio.
Por outro lado, é digno de registro que, como todo direito fundamental, o princípio nemo tenetur se detegere pode admitir restrições, sempre calcadas no princípio da proporcionalidade. Porém, nenhuma delas poderá conduzir ao completo esvaziamento do seu conteúdo, como é o caso do que se propõe no projeto em discussão.
Não se pode descurar, de outra parte, que o projeto vulnera igualmente o direito à ampla defesa, impondo ao acusado o dever de dizer a verdade, sob pena de cometer crime. Uma das muitas estratégias da defesa – e não manobras, como impropriamente se refere o parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado – pode ser a não revelação da verdade, pelos mais variados motivos que, inclusive, podem abranger a não incriminação de terceiro.
Em suma: o projeto é inconstitucional e representa severo retrocesso na árdua consolidação dos direitos e garantias fundamentais no processo penal.
Por fim, tão absurda é a incriminação da conduta do acusado que faltar com a verdade que, para além da inconstitucionalidade da lei, mesmo que fosse o projeto aprovado, incidiria, na espécie, inarredavelmente, a inexigibilidade de conduta diversa, excludente da culpabilidade do acusado, a impedir juízo condenatório.
Seja como for, em face da gritante inconstitucionalidade apontada e da necessidade imperiosa de impedir qualquer tentativa de supressão de direitos e garantias fundamentais, como é o caso do direito de não produzir prova contra si mesmo, o projeto não merece prosperar e se, por hipótese, ele frutificar, a solução será o veto presidencial ou a futura declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, Corte cuja jurisprudência tem contribuído imensamente para os contornos do princípio em foco em nosso ordenamento(5).
NOTAS
(1) BONESANA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Roma: Garzanti Libri, 2000, p. 44.
(2) Em obra de nossa autoria, publicada em 2003, intitulada O direito de não produzir prova contra si mesmo (O princípio ‘nemo tenetur se detegere’ e suas decorrências no processo penal) (São Paulo, Saraiva), já sustentávamos, antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45, de 8.12.2004, que os direitos fundamentais oriundos da incorporação de diplomas internacionais de direitos humanos tinham envergadura constitucional (p. 64-66). Depois da referida Emenda, tornou-se inafastável tal entendimento, em face do disposto no art. 5o,§ 3o da Constituição Federal.
(3) CARNELUTTI, Francesco. Principi del processo penale. Napoli: Morano,1961, p. 185.
(4) FOSCHINI, Gaetano. Imputato. Milano: Giuffè, 1956, p. 52.
(5) Com relação ao tema tratado no presente artigo, o STF já decidiu que o nemo tenetur se detegere assegura ao acusado negar, perante a autoridade policial ou judiciária, ainda que falsamente, a prática de crime (v.g., HC nº 68929, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.10.1991, DJ 28.8.92, p. 13453).
Maria Elizabeth Queijo
Advogada, mestre e doutora em processo penal pela USP
Advogada, mestre e doutora em processo penal pela USP
QUEIJO, Maria Elizabeth. Nova tentativa de supressão de direito fundamental: a pretendida imposição do dever de dizer a verdade ao acusado sob pena de cometer perjúrio. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 9-11, set. 2009.
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