O Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), em seu art. 56, determina a atenuação de pena cominada ao indígena no caso de sobrevir-lhe uma condenação pela prática de infração penal. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas em regime especial de semiliberdade, quando possível, em estabelecimentos havidos no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos povos indígenas mais próximo à sua habitação. Ademais, atenderá o juiz, quando do cálculo da pena, ao seu grau de integração à “sociedade nacional”.
Pois, conforme dispõe o art. 4º do mesmo Estatuto, considerar-se-ão os indígenas, em relação à comunhão nacional (ou seja, em relação a nós, brasileiros, vistos como descendentes, principalmente, da civilidade europeia ocidental), enquadrados em um dos três possíveis graus que seguem: a) isolados– quando reunidos estiverem em grupos pouco conhecidos e sequer travarem contato intermitente com indivíduos da comunhão nacional; b) em vias de integração – quando, em contato intermitente ou permanente com demais indivíduos alheios ao seu grupo, aceitarem certas práticas que nos cabem, conservando em maior ou menor grau os seus costumes; e, finalmente, c) integrados – como indígenas assimilados à comunhão nacionale no gozo de seus direitos civis (cabendo-nos ressaltar, conforme o próprio artigo o faz, que poderão, ainda nesta circunstância, conservar seus usos, costumes e tradições).
Embora o Estatuto não tenha feito a distinção dos indígenas conforme seu grau de integração à comunhão nacional ao determinar, expressamente, como um dever ao juiz, que se atenue a pena cominada àquele que incidir numa conduta tipificada em lei penal, é fato que desta tarefa incumbiram-se nossos doutrinadores. Como exemplo, afigura-se-nos o ensinamento de Nucci, ao afirmar que o dispositivo supracitado “deve ser interpretado com cautela”, pois: “(...) Sob outro prisma, não vemos sentido algum em aplicar qualquer atenuante ao silvícola considerado integrado. Possuindo plena noção das leis nacionais, não há razão plausível para obter atenuação da pena” (1). A mesma crítica deve reportar-se, segundo o eminente professor e magistrado, ao cumprimento da pena, posto que o indígena integrado “deve ser equiparado, completamente, até por uma questão de isonomia, ao cidadão comum” (2) (grifo nosso).
Essa diferença de estágios de desenvolvimento já a havia salientado Pierangeli, ao apontar que, quando do descobrimento(ou invasão, para Darcy Ribeiro) do Brasil, “os nossos indígenas não ostentavam um grau de desenvolvimento cultural semelhante a outros povos que habitavam o continente americano, como os incas, os astecas e os maias, cujo grau cultural chegou a impressionar favoravelmente aos conquistadores” (3) – circunstância que não lhes poupou o assassínio, a bem da verdade.
Algumas considerações, desde já, impõem-se-nos.
A primeira delas é a necessidade que a doutrina antevê de distinguir os indígenas conforme seu grau de integração com a sociedade nacional para contemplação ou não de atenuante no cálculo de sua pena. A lei a concede a todos, sejam ou não indígenas integrados, muito embora considere o indígena integrado como alguém no pleno exercício de seus direitos civis. Vedamos a interpretação in malem partem.Devemos, sim, enaltecer o princípio da isonomia e não suprimir as diferenças havidas e considerar indígenas integrados e civilizados como iguais. Isonomia não se limita à igualdade material entre indivíduos. Propugnemos por uma igualdade que se funda na lei – eis o teor de um tratamento isonômico. O próprio Estatuto prevê que o indígena integrado mantenha seus costumes, usos e tradições. Falaremos, então, em plena integração e igualdade com o “civilizado”?
A segunda consideração reporta-se à visão que, em geral, perpetua-se dos povos indígenas como os primitivose selvagenstão caros ao evolucionismo do século XIX. Os indígenas e seus povos são detentores de uma História própria, que com a nossa funde-se e realiza-se dialeticamente; não estão estacionados e sequer representam nossa infânciaou barbarismo. São sujeitos de direitos e devem ser respeitados em suas diferenças.
Querendo suprimir o que determina o art. 56 do Estatuto do Índio, o senador Edson Lobão Filho (PMDB-MA) submeteu ao Senado Federal, em maio de 2008, o Projeto de Lei 216/2008, atualmente sob os cuidados da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. As alterações que se fariam ao art. 56 considerariam os indígenas isolados como inimputáveis(cabendo-lhes, pois, medida de segurança) e imputáveis os indígenas integrados e em vias de integração (respondendo nos exatos termos da lei penal). Justifica seu projeto tendo por base a decisão proferida pelo ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas-Corpus nº 85.198/MA – em que se deferiu o regime de semiliberdade em favor de indígena acusado de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma. “Na tentativa de evitar que episódios como estes voltem a ocorrer, a presente proposta visa alterar a redação do art. 56 da Lei 6.001/73 para definir o grau de imputabilidade dos silvícolas isolados, em vias de integração e integrados. Os isolados – aqueles que não mantêm qualquer contato com a civilização – seriam considerados inimputáveis. Por sua vez, os índios em vias de integração e os integrados, não fariam jus a benefício algum, respondendo, assim, de acordo com as leis vigentes no país” (4).
Busca, assim, o legislador definir a capacidade penal dos indígenas, conforme o grau de integração destes com a sociedade nacional – critério amplamente questionado na atualidade, principalmente após a adesão do Brasil à recente Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da ONU, em 2007. O legislador não se atém à razoabilidade e sequer ao fato de legislar sobre exceção. Ademais, qual o fundamento de considerar os indígenas em vias de integraçãoimputáveis quando o contato intermitente se dá por premência econômica e não cultural? Os próprios indígenas considerados integrados mantêm seus costumes, usos e tradições, não sendo possível conceber uma integração plena, como quer o Estatuto. Enfim, qual o critério usado para legislar sobre matéria penal: nosso mero etiquetamento do outro – do “indígena perigoso”?
Se o Projeto de Lei visa transpor as dificuldades no que toca à interpretação da imputabilidade de indígenas acaba por criar dificuldades muito maiores, pois desconsidera por completo a necessidade constitucional e supralegal de respeito às diferenças étnicas em nosso Estado. Como poderíamos tão facilmente determinar a priori a imputabilidade de indígenas, tendo por base tão-somente uma classificação destes indivíduos e povos que sequer é benquista na atualidade? O Estatuto do Índio foi formulado numa época em que se acreditava na extinção dos povos indígenas e representa um anseio de transição, de assimilação dos povos “residuais”, que, felizmente, não ocorreu, nem ocorrerá. Não cabe o afoitamento no ato legislativo, principalmente em matéria penal, sob pena de pormos em risco direitos e garantias fundamentais que nos são tão caros. Pois o “afoitamento”, aqui, é visível, uma vez que o Estatuto com tais disposições vige há trinta e seis anos sem questionamentos maiores até o presente momento. Parece-nos até uma resposta penal do Estado aos avanços recentemente conquistados na temática indígena, como um contrafluxo indesejável – bastando-nos rememorar o processo de demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Referências Bibliográficas
Nucci, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
Pierangeli, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
NOTAS
(1) Nucci, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. pág. 641.
(2) Ibidem, pág. 641.
(3) Pierangeli, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. pág. 41.
(4) Projeto de Lei 216/2008 (senador Lobão Filho). (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/13340.pdf). Último acesso realizado em 17.09.2009.
Tédney Moreira da Silva, Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
SILVA, Tédney Moreira da. A inimputabilidade do indígena e o projeto de Lei nº 216/2008. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 18-19, out., 2009.
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