Uma das vertentes do princípio da proporcionalidade no direito penal diz respeito à diretriz constitucional no sentido de que a cada conduta há de ser prevista a sanção que mais se adequa ao desvalor do fato praticado, considerados aí tanto o valor do bem jurídico tutelado, como a intensidade da agressão sofrida.
De um lado, não é fácil avaliar a proporcionalidade entre o delito e a sua pena tendo-se exclusivamente, como ponto de partida, as características gerais e os atributos constitucionais desta, numa tentativa de identificar os limites ético-jurídicos da resposta sancionatória e também o âmbito dentro do qual é permitido perseguir a finalidade intimidatória(1). Embora difícil, poderia o legislador, tendo como pressuposto a delimitação de qual seja a ofensa ao bem jurídico que faz jus a uma proibição de caráter penal, identificar qual é a quantidade de pena necessária para fazer com que os indivíduos abstenham-se de praticá-la, não apenas considerando a natureza do bem jurídico sob tutela e a sua forma de agressão mas, sobretudo, balanceando-os com a restrição à liberdade ameaçada com a cominação da pena criminal. Observa-se, contudo, que a inexistência de um valor ontológico dos bens jurídicos, fundado na “natureza das coisas”, assim como a diferença da natureza dos crimes e das penas, fazem com que não haja critérios naturais capazes de apontar a medida da pena necessária para cada delito(2).
De outro lado, contudo — e justamente porque de um ponto de vista absoluto ninguém pode estabelecer qual seja, ou possa ser, a pena “proporcional” ao furto, ao roubo, à violência carnal, por exemplo —, o juízo de proporcionalidade apresenta-se como ferramenta constitucional voltada para a busca generalizada pela íntima harmonia de todo o sistema jurídico penal. É que, segundo Papa, a pena, ao expressar em termos numéricos uma ordem das relações entre os vários tipos incriminadores, constitui uma referência para se verificar a observância da regra arquitetônica que deve guiar o legislador na construção de uma “constelação de delitos”(3). Significa, portanto, que a tarefa constitucional do legislador consiste em comparar as diversas condutas incriminadas e apreender, a partir da importância dos bens jurídicos analisados e das diferentes agressões por estes sofridas, uma possível diferença entre a gravidade dos comportamentos proibidos, de modo que a quantidade de pena cominada para cada infração deve se diferenciar de acordo com os diversos graus de afrontas aos vários bens jurídicos constitucionais.
Sob esse enfoque, a proporcionalidade entre as penas e os delitos justifica-se pelo princípio constitucional da igualdade, segundo o qual o legislador ordinário está proibido de efetuar discriminações arbitrárias, de modo que a situações iguais deve corresponder um tratamento igual, ao passo que a situações diferentes cabe um tratamento diferenciado.
Em outras palavras, na construção dos tipos penais devem ser valoradas as diferenças e semelhanças entre as hipóteses a serem disciplinadas, e a razoabilidade da escolha quanto ao tratamento normativo dispensado assume um caráter relativo, posto que não se encontra relacionada ao conteúdo que devem conter as leis por si sós, mas à coerência e harmonia que deve haver entre elas.
Nesse contexto, ganha relevância a análise da Lei 11.923/09, que inseriu em nosso Código Penal a figura do “sequestro relâmpago”. Trata-se, como bem evidenciado no editorial do Boletim de maio, de uma incriminação evidentemente desproporcional e, portanto, afrontosa aos valores constitucionais tão caros ao Estado brasileiro.
A essa conclusão é possível chegar uma vez que, comparando o novo tipo penal inserido no art. 158, § 3º do CP com outros crimes pertencentes ao próprio Código ou à legislação extravagante, é visível a desigualdade de tratamento penal e o consequente desrespeito aos direitos fundamentais proclamados constitucionalmente.
Uma vez que um crime considerado mais grave deve ser apenado de maneira mais intensa do que delitos tidos como menos graves, a primeira comparação que pode ser feita é justamente com o tipo penal descrito no art. 159 do CP, qual seja, a extorsão mediante sequestro. Embora não esteja claro no § 3º do art. 158, entende-se por “sequestro relâmpago” a extorsão praticada por meio de uma restrição de curta duração da liberdade de locomoção, em contraposição à extorsão mediante sequestro que pode, inclusive, durar por vários dias, meses ou até mesmo anos. Sendo assim, não parece que ambas as condutas, quando viessem a causar lesões corporais graves ou a morte da vítima, deveriam receber o mesmo tratamento sancionatório. Ao contrário, assim como se deu com as previsões contidas no caput dos respectivos artigos, o grau de intensidade das lesões descritas deveria ter sido igualmente considerado no momento da cominação penal das suas formas qualificadas. No entanto, o que se percebe é que em ambos os casos, a pena cominada é de 24 a 30 anos de reclusão.
Além dessa, outras comparações também podem ser feitas a fim de questionar a proporção que o legislador supôs existir. Antes, porém, deve ser lembrada outra importante diretriz da relatividade que caracteriza o juízo de proporcionalidade: é que, para se identificar o valor da pena a ser cominada para cada espécie típica, deve ser proibido que o ataque a determinado bem jurídico venha a ser sancionado com uma pena maior do que aquela prevista para a proteção de um bem jurídico de grau hierárquico superior(4).
O fato de no “sequestro relâmpago” haver a tutela de dois diferentes bens jurídicos indica, desde logo, que certa cautela há de ser tomada no momento de efetuar as comparações aqui propostas. Assim, embora a localização dos tipos penais na legislação não possa ser desprezada e muitas vezes é até mesmo relevante para a melhor compreensão acerca do significado social que a conduta contém, o fato do novo dispositivo legal encontrar-se inserido no CP dentro do Título relativo aos crimes contra o patrimônio não significa que este seja o único bem jurídico ali protegido. Ao contrário, a extorsão é um caso exemplar de crime em que mais de um bem jurídico encontra-se sob proteção, de modo que ao lado do patrimônio também a liberdade individual encontra-se ali tutelada.
Ainda assim, ou seja, mesmo considerando que no art. 158, § 3º do CP dois importantes bens jurídicos estejam sendo objeto de proteção, inegável a desproporção ali contida quando se compara tal dispositivo com o art. 129, § 2º do mesmo diploma legal. É de se questionar, portanto, se o legislador agiu segundo os preceitos do princípio da igualdade ao prever a punição com uma pena variável entre 6 e 12 anos de reclusão para a conduta de quem obriga outrem a dirigir-se ao banco e sacar determinada quantia em dinheiro ao mesmo tempo em que prevê uma pena de 2 a 8 anos de reclusão para quem causa a outrem enfermidade incurável ou deformidade permanente. Mais ainda, e continuando a comparar o “sequestro relâmpago” com a lesão corporal, se desta conduta resultar a morte da vítima, a pena prevista é de 4 a 12 anos de reclusão, ao passo que se o mesmo resultado decorrer da primeira, a pena será de 24 a 30 anos de reclusão. E apenas para que não reste nenhuma dúvida acerca da desproporção recém-inserida no CP, é injustificável que o sequestro relâmpago ostente a mesma pena mínima prevista para o homicídio simples.
Diante desse quadro, resta concluir que, outra vez, está nas mãos do Poder Judiciário a possibilidade de decidir pela inconstitucionalidade de um novo dispositivo penal. Se a opinião pública exerce forte influência sobre os Poderes Legislativo e Executivo, diferente deve ser o comportamento daqueles que são técnicos quando o que está em jogo há muito deixou de ser a questão da segurança pública (até porque já tínhamos a previsão do art. 157, § 2°, V do CP), sendo essencialmente o respeito à Constituição.
Notas
(1) Papa, “Considerazioni sul controllo di costituzionalità relativamente alla misura editale delle pene in Italia e negli U.S.A.”, in L’influenza dei Valori Costituzionali Sui Sistemi Giuridici Contemporanei, a Cura di Alessandro Pizzorusso e Vincenzo Varano, Tomo I, Milano: Giuffrè, 1985, p. 688.
(2) Ferrajoli, Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale. Editori Laterza, 1996, p. 395 e 396.
(3) Papa, op. cit., p. 688 e 689.
(4) Álvarez Garcia, Consideraciones Sobre los Fines de la Pena en el Ordenamiento Constitucional Español, Granada: Editorial Comares, 2001, p. 209.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Professora doutora de Direito Penal da USP
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. A Lei nº 11.923/09 e outra vez a desproporcionalidade no ordenamento jurídico penal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 199, p. 8-9, junho 2009.
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