No ano de 2008, o Grupo de Pesquisa “Política Criminal”(2) acompanhou a campanha feita na Capital Federal para a implantação dos controles eletrônicos de liberdade nas saídas temporárias de presos do regime semiaberto. Não há de fato uma discussão, e sim uma campanha feita há alguns anos com os seguintes pressupostos:
a) o baixo custo deste tipo de controle;
b) o aumento da criminalidade durante as saídas especiais;
c) o perigo que representariam os condenados nos períodos das saídas especiais (“saidões”);
d) a redução do número de pessoas encarceradas a partir da implantação dos controles eletrônicos.
A partir de levantamentos sobre os custos deste tipo de controle e sobre as ocorrências criminais do período de 2005 a 2008, investigamos a adequação de tais pressupostos e chegamos a conclusões que não os corroboram. Foi realizado também um mapeamento da abordagem do tema na mídia, onde se observou que as reportagens não visam o esclarecimento da população sobre o assunto. Em 26 de dezembro de 2007, por exemplo, o Jornal de Brasília publicou reportagem com o seguinte trecho:
“Enquanto milhares de pessoas comemoravam o Natal, seis famílias choravam por seus parentes, vítimas de crimes hediondos cometidos entre a noite de segunda-feira e a manhã de ontem. Neste período, quatro pessoas foram assassinadas e duas ficaram gravemente feridas em tentativas de homicídio. Em dois casos, os crimes foram praticados por presos que ganharam o benefício do saidão de fim de ano. Neste feriado, 1.500 detentos receberam o direito de passar as festas com os seus familiares.”
Informações prestadas pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal com base nos dados da Polícia Civil — Sistema Milenium — registram exclusivamente estes quatro homicídios mencionados pelo Jornal de Brasília para o período daquele “saidão”. A análise estatística feita com os dados do recorte temporal da pesquisa mostra que este índice está abaixo da média dos homicídios registrados para o período.
No entanto, após cada saída os jornais divulgam as informações a respeito do número de presos que retornaram e/ou das ocorrências criminais registradas no período e, no Distrito Federal, de uma maneira geral, há sempre baixos índices de foragidos e poucos eventos criminais relacionados aos presos, sendo flagrante inclusive a posição de vítima dos mesmos quando ocorre (e é registrada) alguma violência. Assim também, em outros tipos de crimes, há uma redução dos índices, e não o seu aumento durante os períodos em que houver saídas especiais, se comparados aos finais de semana anteriores e posteriores como veremos a seguir.
Esta atuação enviesada da mídia está alinhada politicamente ao movimento de aceleração do encarceramento. Nos últimos oito anos, a população carcerária no Brasil quase dobrou(3). No ano 2000, o total de pessoas confinadas no sistema penitenciário era de 232.755, sendo este número a soma de condenados em todos os regimes de cumprimento de pena (fechado, semiaberto e aberto), mais os presos provisórios e os detentos nas delegacias. De 2000 a junho de 2008, este número cresceu 89%, e a população carcerária saltou para 440.013(4). No ano de 2000, a taxa de encarceramento era de 140 presos por 100.000 habitantes, tendo aumentado para 232 pessoas confinadas a cada 100.000 em 2008. Quando excluímos os presos em delegacias, a taxa de encarceramento por 100.000 habitantes varia de 105 para 201 no mesmo período.
O “saidão” ocorre sempre em feriados especiais, sendo que em 2005 ele contava com uma média de 494 presos beneficiados passando para 1.734 em 2006. De lá para cá este número vem sendo reduzido. Com relação ao total da população carcerária do Distrito Federal, cerca de 16% dos presos são beneficiados, sendo que esta proporção também está em queda desde 2006.
Em que pese a existência de presos que não retornam do “saidão”, o percentual de não retorno é muito baixo, em torno de 2%, com uma leve tendência de queda. Em 2008 este percentual já apresentou uma redução, alcançando a marca de 1,5%. Porém, o que mais chama atenção é o percentual ínfimo de presos beneficiados envolvidos com ocorrências criminais, em média apenas 0,14 %, ou seja, praticamente a décima parte de 1% envolvem-se como suspeitos de ocorrências criminais.
Foi realizada uma análise comparativa visando verificar se existe aumento na incidência de ocorrências criminais em dias de feriados com “saidão” de presos. A metodologia utilizada compara sempre os mesmos dias de semana do “saidão” com as três semanas anteriores e posteriores aos feriados. Por exemplo, no feriado do Dia dos Pais, em 10.08.2008, o “saidão” ocorreu entre os dias 08 e 11 de agosto. Para realização do estudo foi verificado o número de crimes nas 3 semanas anteriores: 18 a 21 de julho, 25 a 28 de julho, 01 a 04 de agosto, e nas 3 semanas posteriores: 15 a 18 de agosto, 22 a 25 de agosto e 29 de agosto a 01 de setembro.
Ao contrário do que é divulgado pela mídia, verificamos que o número médio de ocorrências policiais diárias, dentro do período analisado, é de 628 crimes, sendo que dentre eles, a média nos dias de feriado com “saidão” foi de 607, contra 632 nos demais dias comuns. Através de um teste de hipóteses estatístico(5), a uma margem de erro de 5%, constatou-se que não há diferença significativa entre o número de ocorrências dentro e fora do “saidão”.
Os feriados considerados no estudo foram: dia das crianças, Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal, Ano Novo e Páscoa. Somente no Dia das Mães e no Dia dos Pais a incidência de crimes no “saidão” foi um pouco superior aos dias comuns.
Em 2006, apesar do grande incremento do número de presos beneficiados e de um pequeno aumento dos índices médios de criminalidade, os índices do “saidão” foram bem inferiores aos dias comuns (gráfico 1).
Gráfico 1. Média de Ocorrências Policiais Diárias - Por ano
Os crimes contra o patrimônio representam 86% das ocorrências, sendo roubo e furto os principais tipos de crime. As únicas modalidades que possuem uma média diária nos dias comuns inferior aos dias com “saidão” são: homicídio, tentativa de homicídio, “sequestro relâmpago” e lesão corporal. Destaca-se o homicídio cuja incidência nos dias de “saidão” foi 21% maior que nos dias comuns, no entanto, nenhuma dessas diferenças foi apontada como significativa no teste de hipóteses estatístico(6), a uma margem de erro de 5% (gráfico 2).
Gráfico 2. Média de Ocorrências Policiais Diárias - Modalidade
Além disso, recebe muito destaque nesta discussão a questão financeira, pois em tese haveria uma economia ao se utilizar os equipamentos eletrônicos na vigilância penal. O custo da utilização da vigilância eletrônica seria de aproximadamente R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais por detento, sendo que o valor gasto mensalmente por detento encarcerado seria superior a R$ 1.000,00 (mil reais) mensais. Desse modo haveria uma economia que seria feita com a implementação do novo modelo de vigilância. Se de fato são estes os valores, compete ressaltar que essa suposta economia só ocorreria, de fato, se todos ou a maior parte dos encarcerados passassem a ser submetidos à vigilância eletrônica e não mais precisassem retornar aos estabelecimentos penais.
No entanto, a realidade que temos é a de que os detentos que poderão ser atingidos pela nova medida são aqueles que já se encontram em regimes que permitem sua saída da prisão, em sua maioria, e que os demais permanecerão representando gastos com encarceramento. Desse modo, pode-se pensar, ao contrário, em um aumento de gastos com o sistema penitenciário, pois os sentenciados que se encontram hoje cumprindo pena fora dos estabelecimentos prisionais, sem gastos extras para o Estado, passariam a utilizar os equipamentos eletrônicos ao valor de seiscentos reais mensais. Ou seja, a utilização do monitoramento eletrônico atingirá na maior parte os acusados e sentenciados que já se encontram fora dos estabelecimentos prisionais, não havendo então como isso possa auxiliar na diminuição da população carcerária.
Além de todos os problemas relatados, há que se salientar também a crença infundada de que a introdução dos controles eletrônicos impedem a prática de crimes. O fato dos condenados em saídas especiais usarem pulseiras, coleiras ou tornozeleiras não significa que elas tenham efeito preventivo, pois elas oferecem apenas a possibilidade de rastrear os condenados e não de saber o que estão fazendo. Além disso, a identificação de sua posição geográfica não significa que os crimes, quando praticados, ocorrerão no local onde os condenados se encontram. Também não está clara na descrição dos equipamentos utilizados a forma com que serão feitos os controles “fisiológicos”, como é o caso da ingestão de bebidas alcoólicas.
Percebe-se, assim, que os beneficiários imediatos da imposição das tornozeleiras são os fabricantes e comerciantes destes dispositivos de controle. Tal atividade deve ser altamente rentável, a contar pelo investimento que está sendo feito com a divulgação na mídia sobre suas supostas vantagens.
Notas
(1) Esta é uma pesquisa coletiva da qual estamos publicando os principais resultados. O texto completo será publicado no próximo volume da Revista Discursos Sediciosos, do Instituto Carioca de Criminologia. Participaram da pesquisa e da redação final do relatório: Carolina Luiza Sarkis Vieira, Edson Ferreira, Joselito Pacheco, Fábio Vasconcelos Braga, Luis Carlos Bedendo, Plínio Palma Maia, Sílvia Maria Brito Costa, Renata Porto, Jussara Polaco, Izabela Lopes Jamar. Registramos e agradecemos também o auxílio estatístico de Gabriela Soares.
(2) www.criminologiacritica.com.br.
(3) MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em:
(4) Dados disponíveis no site do Ministério da Justiça – DEPEN – INFOPEN. http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B 1624D28407509CPTBRIE.htm Acesso em 27/07/2008.
(5) Teste estatístico de comparação entre médias: F Snedecor pela tabela ANOVA. As premissas de normalidade foram testadas e aceitas pelo teste KS (Kolmogorov-Smirnov). A homogeneidade de variância foi verificada pelo teste de Levene.
(6) Teste de comparação entre médias: F Snedecor pela tabela ANOVA. As premissas de normalidade foram testadas e aceitas pelo teste KS (Kolmogorov-Smirnov). A homogeneidade de variância foi verificada pelo teste de Levene.
Cristina Zackseski
Diretora executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça, professora dos cursos de graduação em Direito e de mestrado em Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília.
ZACKSESKI, Cristina. A imposição das tornozeleiras. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 199, p. 6-8, junho 2009.
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