Desde 2009, todos os operadores do direito que efetivamente lidam com as causas e efeitos das práticas de bullying e sua versão digital aguardavam um movimento do Legislativo Brasileiro que realmente cuidasse da prevenção e do combate à intimidação sistêmica em colégios públicos e privados e, por que não assumir, até mesmo dentro de casa. Mas, infelizmente, a Lei 13.185, de 6 de novembro de 2015, publicada na segunda-feira (9/11), é apenas uma carta de boas intenções, repleta de conceitos e ideais utópicos, que tenta abrir um processo de iluminação em uma sociedade que está em constante processo de negação frente a violência cotidiana dentro de escolas, clubes e associações.
Nos termos da lei, considera-se como bullying todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
Com esse teor, o primeiro equívoco do legislador foi inserir no texto legal a expressão “sem motivação evidente”. Isso é um contrassenso legal. Afinal, ainda que exista motivo evidente, ainda que se trate de um agressor (bully) que colhe os frutos da violência perpetrada contra suas vítimas, não existe no ordenamento jurídico a possibilidade em se fazer justiça com as próprias mãos, sob pena de incorrer no crime previsto no artigo 345 do Código Penal [1].
Em outro ponto, a legislação dispõe no parágrafo 2º do artigo 1º que o Programa de Combate à Intimidação Sistemática poderá fundamentar as ações do Ministério da Educação e das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, bem como de outros órgãos, aos quais a matéria diz respeito. Aqui, mais uma vez o legislador perdeu a oportunidade de envolver diretamente o Poder Judiciário e o Ministério Publico nessa questão social tão relevante.
O bullying inevitavelmente repercute na ordem jurídica, sendo que o envolvimento de menores em episódios de agressão presencial e virtual abarrotam as varas judiciais com pedidos de reparação de danos morais e materiais, em valores expressivos em virtude da ausência de instrução jurídica dos envolvidos no problema (pais, alunos e profissionais da área de educação), que desconhecem as responsabilidades que lhe são atribuídas por lei e tentam, muitas vezes, “remediar” conflitos sem a assistência profissional especifica, causando mais transtornos do que soluções conciliatórias aptas a pôr fim no conflito.
Claro duvidoso
A caracterização do bullying (artigo 2º) e a sua classificação (artigo 3º) foram elencadas pelo legislador em caráter exemplificativo e não taxativo, sendo certo que as agressões e meios pelos quais essas se propagam podem ser diversos daqueles previstos em lei, desde que configurada a intimidação sistêmica. Dessa forma, a zona cinzenta de entendimento é porta aberta para qualquer argumento que impeça ações corretivas e inibidoras contra agressores infanto-juvenis que acreditam na impunidade e na pseudo proteção parental contra os efeitos da lei.
Já os objetivos do programa constituem os nove mandamentos do programa de combate ao bullying: Prevenir e combater a prática do bullying em toda a sociedade; Capacitação de docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema; Implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e informação; Instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores; Fornecer assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores; Integrar os meios de comunicação de massa com as escolas e a sociedade, como forma de identificação e conscientização do problema e forma de preveni-lo e combatê-lo; Promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua.
Uma impropriedade social e jurídica entre os objetivos está nesse ponto: Evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil.
Em relação a esse ponto, a posição do legislador não é apenas condenável, como também abominável. Muitas crianças e adolescentes possuem a certeza inequívoca de que nada irá acontecer com aqueles que agridem, ofendem e humilham seus pares. O legislador esqueceu-se que, atualmente, o bullying é um problema de saúde pública! Os agressores, nos mesmos termos da Lei Maria da Penha, necessariamente precisam de centros de educação e reabilitação específicos, para que não reincidam nos mesmos atos que destroem famílias, sonhos e a autoestima das vítimas. No momento histórico em que vivemos, não é mais possível “passar a mão na cabeça” ou ainda afirmar que são “brincadeiras sem maldade”. Ações exigem reações jurídicas proporcionais aos sofrimentos e aos danos que causaram e já foi mais do que provado que “cestas básicas” não resolveram e não resolverão a problemática do bullying no Brasil e no mundo.
Assim, em face ao crescente número de casos de bullying, caberia ao Ministério Público (artigo 4º, V, da Lei 13.185/15) sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência presencial e virtual contra a criança e ao adolescente, quando necessário: Requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, objetivando a contenção e a prevenção da violência no âmbito escolar; Fiscalizar os estabelecimentos de ensino públicos e particulares e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas, que coloquem em risco a integridade de crianças e adolescentes. Espera-se que a União Federal e os Estados membros forneçam ao Parquet recursos (materiais, financeiros e humanos) específicos no combate contra a intimidação sistemática, sob pena de tornar a presente lei letra morta.
Agravantes
A nocividade do cyberbullying foi abordada como atos cometidos virtualmente objetivando depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial. O agravante do cyberbullying é a violência constante sobre a vítima, vez que, diferente do bullying presencial que geralmente ocorre nos pátios dos colégios, no mundo virtual o agressor tem sempre a vítima ao seu alcance — literalmente na palma da mão — 24 horas por dia, no smartphone que muitos pais fornecem aos menores sem limites ou informação de uso consciente.
Mais: Firmadas as parcerias previstas artigo 2º e 7º, o ideal seria a participação do Conselho Nacional de Justiça, em conjunto com os membros do Poder Judiciário, para que sejam realizadas estatísticas precisas dos eventos de bullying dentro das escolas, associações e clubes. Esperamos que em breve possamos ter de forma precisa o quanto o Poder Judiciário é solicitado em relação aos casos de bullying. Só assim saberemos se o programas de prevenção ao bullying instituídos estão realmente sendo bem recepcionados pela sociedade e sua real efetividade.
A lei entrará em vigor em 90 dias, isto é em 9 de fevereiro de 2016 (coincidentemente, início do ano letivo). Esperamos que escolas, clubes, associações compreendam o seu papel social não apenas nas atividades desempenhadas, mas como entes que promovam a socialização de cada membro integrante, sejam eles pais, alunos, professores, funcionários, sócios ou associados.
O mundo globalizado exige ações compatíveis à gravidade dos acontecimentos, sendo que caberá a sociedade civil agir em conjunto com o Poder Judiciário, membros do Ministério Público, conselhos tutelares, União, estados, municípios e suas respectivas secretarias de educação para que as efetivas medidas protetivas sejam adotadas o mais rapidamente possível.
[1] Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
Revista Consultor Jurídico, 13 de novembro de 2015.
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