A Emenda Constitucional 45/2004 instituiu explicitamente no ordenamento interno a garantia da duração razoável do processo, elevada a garantia pétrea pelo legislador constituinte através do inciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição — trata-se de norma de aplicação imediata, por força do que dispõe o artigo 5º, parágrafos 1º e 2º.
A bem da verdade, a razoabilidade na duração do processo, muito antes da Emenda Constitucional 45/2004, já estava estampada nas normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, por meio do Decreto 678/1992, que também assegura esta garantia fundamental em seu artigo 8°.
Paulo Rangel[1], ao tratar da decisão de impronúncia, bem descreve o garantismo contemporâneo do processo penal hodierno, muito bem aplicável a esta fase procedimental, que deve incidir paralelamente à fase da investigação criminal:
“Não é lícito, por evidente, sacrificar a dignidade do réu em detrimento de uma falha do Estado, pois o processo, por si só, é um mal irreparável, uma cerimônia fúnebre da qual jamais se livrará (....). No Estado Democrático de Direito não se pode admitir que se coloque o individuo no banco dos réus, não se encontre o menor indício de que ele praticou o fato e mesmo assim fique sentado, agora, no banco do reserva, aguardando ou novas provas ou a extinção da punibilidade, como se ele é quem tivesse de provar sua inocência, ou melhor, como se o tempo é que fosse lhe dar a paz e a tranquilidade necessárias (...) O processo penal moderno é instrumento de garantia e não de punição (...).”.
Sobre o tema igualmente leciona Aury Lopes Jr[2]:
“(...) as pessoas têm o direito a razoável duração do processo estando presas (neste caso a demora é ainda mais grave) ou soltas (pois o processo é uma pena em si mesmo); sendo absolvidas ou condenadas ao final (a condenação não legitima a demora, sob pena de os fins justificarem a barbárie dos meios...). No Brasil, infelizmente, a visão sempre foi muito reducionista, falando-se apenas em excesso de prazo na prisão cautelar. O direito fundamental do artigo 5º, LXXVIII da Constituição é muito mais amplo e abrangente do que isso.”
O delegado de Polícia, o membro do Ministério Público e o magistrado não são agentes em prol do Estado, na lógica da defesa de políticas criminais governamentais. Não é para ser assim! Especialmente desde 1988, na linha do fortalecimento institucional inerente ao processo de transição do regime militar para o democrático, são garantidores de direitos fundamentais.
Não há dúvidas que essas garantias devam ser aplicadas também à investigação criminal contendo a arbitrariedade que se avizinha contra investigados ou indiciados quanto ao controle destas garantias pelo judiciário, devendo a duração razoável ser fiscalizada por todos, tendo a palavra final o juiz. Veja-se, a propósito, a lição de André Nicolitt[3]:
“Este § 3º do art. 10 do CPP está em harmonia com a Constituição na medida em que cabe ao juiz fiscalizar o respeito à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/1988), garantia fundamental que se aplica ao inquérito em razão das repercussões relevantes do procedimento investigatório sobre a esfera da dignidade da pessoa.”
Concluindo, ainda o mestre:
“Como o inquérito também deve obedecer ao princípio da duração razoável e o juiz é o garante dos direitos fundamentais, faz sentido que o pedido de baixa do inquérito para novas diligências seja feito ao juiz, nos termos do art. 16 do CPP.”
O STJ já decidiu haver violação a duração razoável o lapso de 8 anos em crime de homicídio qualificado, nos fazendo crer numa proporção de 2/5 a balizar a duração razoável (20 anos de pena para 8 anos de prescrição). Ou seja, se o homicídio prescreve em 20 anos e há inércia do Estado em 8 anos, consequentemente existe flagrante afronta à duração razoável do processo, plenamente extensível às investigações criminais. É dizer, a duração é uma segunda garantia além da prescrição.
A avaliação entre a prescrição e a duração razoável se diferem porque nesta há necessidade de se haver uma pessoa identificada com suspeito, na qual sobre ela recaia as malhas finas do sistema criminal, já a prescrição, não necessariamente.
A respeito, neste sentido, André Nicolitt[4]:
“Em suma, o termo inicial no processo penal será sempre um ato de persecução estatal no qual se especifique um indivíduo que se encontra sob suspeita da prática de um crime.”
Em reforço a este entendimento hodierno, o festejado autor André Nicolitt, em outra obra[5] escrita com a colaboração do jurista Carlos Ribeiro Wehrs, leciona:
“Como já assinalado acima, tanto a doutrina como os Tribunais Constitucionais da Europa e, notadamente o TEDH, esposam o entendimento de que a fase investigatória, na qual há identificação do investigado, inclui-se na contagem do tempo, revelando-se como termo inicial.”
Nesta toada, ainda temos no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em seu artigo 16, estabelecendo que nenhum inquérito ou procedimento criminal poderá ter início ou prosseguir por um período de 12 meses, a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado.
Sobre a duração razoável e a prescrição nos ensina Nereu José Giacomolli[6]:
“As limitações à prescrição retroativa, introduzidas pela lei 12.234/2010, ao modificar os parágrafos do art. 110 do CP, reduziram a possibilidade de ser aplicada a sanção de prescrição pela demora na persecutio criminis, afrontando o devido processo constitucional e convencional, o devido processo, nele inserido o preceito constitucional do prazo razoável e da dignidade da pessoa do investigado. ”
A lógica civilista Kelsiana impera e mantém o órgão de cúpula preso ao positivismo do século XIX. A América Latina evoluiu na aplicação da denominada interpretação intercorres, segundo ao qual a corte suprema de um pais segue as interpretações realizadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como é o caso da Costa Rica, Bolívia, República Dominicana, Peru, Colômbia e Argentina (Casos Simón, em 2005 e Mazzeo, 2007)
No entanto, o Brasil vem sistematicamente negando as interpretações da Corte IDH, no que Mazzuoli[7] denomina de “nacionalização da interpretação da convenção”.
Em outras palavras, a Corte Interamericana de Direitos Humanos[8] entende que a duração razoável do processo se estende à investigação criminal e condena países que assim não o realizam, entendendo como violador dos direitos humanos a investigação que perdurou inerte por 9 anos.
Além de termos um Tribunal Internacional, que julgando casos de violações de direitos humanos, entendeu sobre a aplicação da duração razoável do processo no sistema de persecução criminal como um todo, jurisprudência a brasileira vem, ainda de forma tímida, redesenhando os limites ao arbítrio estatal. Vejamos:
“(....)1. O limite da razoável duração do inquérito policial é o período de tempo necessário à obtenção dos elementos que formarão a convicção do titular do monopólio da ação penal pública acerca de sua viabilidade. Em outras palavras, a duração do inquérito será razoável e justificada enquanto houver diligências a serem realizadas pela autoridade policial que sirvam ao propósito de oferecer fundamentos à formação da opinio delicti do Ministério Público. (....) TSE - Recurso em Habeas Corpus RHC 6453 MG)“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. "SEGREDO DE JUSTIÇA". IMPETRAÇÃO QUE OBJETIVA O TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO HÁ O8 (OITO ANOS). DURAÇÃO DESARRAZOADA DO INVESTIGATÓRIO, AINDA QUE AMPLO O ESPECTRO DO SEU OBJETO. EVIDENCIAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. TRF-5 - HC Habeas Corpus HC 80871220134050000”
Além disso, o próprio STJ[9] também já decidiu assim em 2008 e 2013, respectivamente no HC 96.666/MA e HC 209.406/RJ, trancando a investigação em ambos os casos por inércia do Estado por 7 anos (a Corte IDH, no caso acima, havia entendido 9 anos), na qual havia um indiciado por crime de homicídio, mas o Estado-investigação e o Estado-acusador não foram diligentes o suficiente e interromperam a atuação no indiciamento.
Sobre a natureza desse direito, leciona André Nicolitt[10], verbis:
sua natureza jurídica não há de ser outra senão um direito fundamental. Trata-se de verdadeiro direito subjetivo público, autônomo, de índole constitucional.
Diante de variadas fontes, a duração razoável da investigação criminal é realidade em nosso ordenamento, somando-se como garantia fundamental ao instituto da prescrição penal.
[1] RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri, Visão Linguística, Histórica, Social e Jurídica, 5ª Ed., 2015. p. 162 e 163
[2] LOPES JR, Aury. Direito a Duração Razoável do Processo tem sido ignorada no País. Disponível: http://www.conjur.com.br/2014-jul-25/direito-duracao-razoavel-processo-sido-ignorado-pais, acesso em 23/09/2014
[5] NICOLITT, André. A duração razoável do processo, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 69
[6] GIACOMOLLI, Nereu. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal. São Paulo: Atlas, 2014, p. 330
[7] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. São Paulo, 3.ed. revista, atualizada e ampliada, Revista dos Tribunais, 2013, p.99/100
[8] Corte Interamericana de Direitos Humanos: Informe de Admisibilidad y Fondo No. 119/10 Caso Palma Mendoza Y Otros Vs. Ecuador. Sentencia de 3 Septiembre de 2012 Parr. 70, 80 a 85 – 9 anos e 9 meses (http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_247_esp1.pdf) Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo, párr. 177, y Caso Pacheco Teruel Vs. Honduras, párr. 241.
[9] STJ: HC 209.406/RJ-2011/0133329-8. 5ªT, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 17/12/13 DJe. 03/02/14. IP-037-00349/2007 de 30/01/2007 (art. 121,§2º,IV) – Ilha do Governador. Obs.: Primeiro precedente: HC 96666 / MA 5ªT, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho DJe. 22/09/2008. IPL 521/2001. (Inércia: 7 anos)
Ruchester Marreiros Barbosa é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.
Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2015.
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