REVISOR: Ministro Celso de Mello
VOTO (SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO): A presente ação penal foi ajuizada contra o Deputado Federal ** pela suposta prática do delito tipificado no art. 129, § 9º, do Código Penal, alegadamente cometido quando o réu – que hoje é membro do Congresso Nacional – exercia o mandato de Deputado estadual em Alagoas.
A imputação criminal deduzida pelo eminente Senhor Procurador-Geral da República afirma que o réu, no dia 05/11/2006, “agrediu fisicamente a sua ex-companheira ** na residência da vítima” (fls. 48 – grifei).
Segundo a denúncia, “as agressões perpetradas pelo denunciado ocasionaram lesões corporais leves na vítima, conforme o laudo de exame de corpo de delito juntado às fls. 20 do apenso 2” (fls. 49 – grifei).
Registro, ainda, por necessário, que o Ministério Público Federal, em peça processual protocolada em separado (fls. 52/53), propõe seja declarada extinta a punibilidade do Deputado Federal ** em relação ao delito de ameaça (CP, art. 147), objeto de apuração nos autos do Inquérito nº ** (Apenso, vol. 1), por entender consumada, na espécie, a prescrição penal.
Em sua resposta preliminar, o então denunciado alegou, em síntese, (a) “a ausência de justa causa para o prosseguimento do feito, já que toda a prova foi colhida por autoridade incompetente”; (b) “a negativa de autoria”, eis que, “ao contrário do que afirmado na denúncia, não é verdade que o acusado tenha agredido fisicamente sua ex-companheira **”, sustentando, ainda, que, no caso, “a instauração de um processo penal e eventual sentença condenatória trariam à ‘vida real’ mais prejuízo do que benefício, contrariando a dicção do art. 59, CP, e os fins políticos de aplicação de uma pena” (grifei).
A denúncia foi recebida por esta Suprema Corte, em 05/12/2013, em julgamento que está assim ementado (fls. 327):
“PROCESSUAL PENAL. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. ATENDIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. PRESENÇA DE JUSTA CAUSA (CPP, ART. 395, III), EM FACE DOS INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE.
DENÚNCIA RECEBIDA.”
(Inq 3.156/AL, Red. p/ o acórdão Min. TEORI ZAVASCKI – grifei)
O Ministério Público Federal, em suas alegações finais, pleiteou a absolvição penal do réu, fazendo-o em manifestação assim ementada (fls. 658):
“AÇÃO PENAL. SUPOSTA PRÁTICA DO CRIME DE LESÕES CORPORAIS NO ÂMBITO DE RELAÇÕES DOMÉSTICAS ATRIBUÍDA A CONGRESSISTA. ALEGAÇÕES FINAIS.
1. Negativa da existência dos fatos em audiência pela vítima, declarando que deu início à persecução criminal como forma de ‘vingança’.
2. Testemunhas negaram em juízo a existência do fato delituoso, com mudança do panorama fático apresentado à autoridade policial. Laudo pericial que não corresponde à forma como a suposta agressão teria ocorrido.
3. Requerimento de absolvição do réu. Art. 386, VII, do CPP. Promoção de responsabilidade da comunicante pelo crime de denunciação caluniosa.” (grifei)
O réu, por sua vez, postula a absolvição da imputação penal contra ele deduzida por ausência de qualquer prova evidenciadora da autoria do delito de lesões corporais (violência doméstica).
Impõe-se examinar, inicialmente, questão prévia, suscitada pelo Ministério Público Federal (fls. 52/53), consistente na ocorrência de causa extintiva da punibilidade em relação, exclusivamente, ao delito de ameaça (CP, art. 147).
Assiste razão ao eminente Chefe do Ministério Público da União, eis que o exame dos marcos temporais relevantes para o cálculo prescricional evidencia que se consumou, na espécie, a prescrição da pretensão punitiva do Estado referentemente ao delito tipificado no art. 147 do Código Penal (fls. 52/53):
“1. Em relação ao delito de ameaça, objeto do Inquérito nº ** (apenso 1), verifica-se que houve o transcurso do lapso prescricional. A pena máxima atribuída ao referido crime é de 6 (seis) meses de prisão. Como o delito foi praticado antes do advento da Lei nº 12.234/2010, aplica-se o prazo prescricional de 2 (dois) anos previsto na redação original do art. 109, inciso VI, do Código Penal, por ser mais benéfico ao investigado. A suposta ameaça teria sido praticada em 16.7.2007, sendo o prazo prescricional alcançado em 15.7.2009.
2. Ante o exposto, requer o Procurador-Geral da República seja declarada a extinção da punibilidade em relação ao delito de ameaça.” (grifei)
Acolho, por tal motivo, essa douta promoção do Senhor Procurador-Geral da República (fls. 52/53) e declaro extinta, em consequência, quanto ao crime de ameaça (CP, art. 147), a punibilidade do Deputado Federal **, fazendo-o com apoio no art. 107, IV, c/c o art. 109, VI, do CP.
Superada essa questão, passo, desde logo, ao exame da causa. E, ao fazê-lo, entendo que a insuficiência da prova penal existente nos autos não pode legitimar a formulação, no caso, de um juízo de certeza que autorize a condenação do réu.
Tenho para mim que os elementos produzidos neste processo evidenciam, de maneira bastante clara, a ausência de dados que permitam identificar, com segurança, a autoria do crime de lesões corporais por parte do réu, sendo certo, ainda, o caráter precário da prova testemunhal, que, embora arrolada pelo próprio Ministério Público, contradiz a versão dos fatos narrados na denúncia.
Também o Ministério Público Federal, como precedentemente assinalado, ao manifestar-se pela absolvição do réu, destacou, nas alegações finais, a iliquidez do conjunto probatório quanto à autoria do fato, valendo destacar o seguinte fragmento de seu pronunciamento (fls. 661/666):
“Por ocasião da audiência de instrução, ** declarou, essencialmente, o seguinte:
‘Juiz – […] A senhora está me dizendo, aqui, que não houve contato físico nenhum entre vocês?
Depoente – Não, não houve.
[…]
Juiz – Muito bem. Então, para finalizar, consta que a senhora foi examinada e foram verificados sinais, salvo engano, no seu braço, ao que recordo agora. Ao que a senhora atribui, então, esses sinais de agressão?
Depoente – Não sei. Eu acho que hematoma... eu não sei, porque eu tenho mais duas crianças – uma do meu primeiro casamento, e ele e eu brincava muito com os meninos, eu fico muito no chão com eles até hoje. Briga de menino, brincadeira de menino geralmente são pesadas. Eu acho que foi alguma coisa dos meninos que eu devo ter esbarrado também, batido em berço. Eu sou muito destrambelhada, assim, para essas coisas, até que eu tô com um roxo aqui no joelho.
Juiz – […] a senhora reitera, então, que, naquela oportunidade – essa oportunidade claramente identificada na denúncia –, a senhora, em nenhum momento, sofreu agressão física de **?
Depoente – Isso. Reitero.
[…]
Ministério Público – Então, no caso, na Polícia Civil, a senhora teria inventado que ele lhe agrediu?
Depoente – Isso.
Ministério Público – Como vingança?
Depoente – Isso.’
**, mãe da vítima e pessoa que teria presenciado parcialmente os fatos, declarou:
‘[…]
Ministério Público – A acusação é de que, em novembro de 2006, ** teria agredido fisicamente a sua filha **. O que a senhora pode dizer sobre essa acusação, sobre esses fatos?
Testemunha – Olha, agressão física eu não sei; não vi.
Ministério Público – Certo.
Testemunha – Pelo menos perante minha presença não aconteceu. Aí não. Houve discussão de baixíssimo grau.
Ministério Público – A senhora diz que não viu, mas o que a senhora viu?
Eu vi foi, quando fui chamada por uma secretária, que eles estavam em um bate-boca de baixo nível, a ponto de se pegarem. Só discussões; discussão, como eu digo, de baixo nível. E aquilo estranhou o pessoal que trabalhava na casa, no apartamento, porque não era comum, até porque também ele não estava mais em casa. Ele já tinha saído de casa, não é? E me chamaram com medo de que acontecesse alguma coisa, alguma agressão, alguma coisa, mas quando eu cheguei lá meu filho puxou ele para a cozinha, eu segurei ele e a gente assim... mas agressão, não. De jeito nenhum.
[…]
Ministério Público – Mas quando a senhora chegou lá na casa, ** estava como?
Testemunha – ** estava batendo boca com o **.
Ministério Público – Ah, ainda estava discutindo com ele em pé, na sala?
Testemunha – Estava, estava sim, estava em pé, estava batendo boca mesmo, sério.
Ministério Público – Sem agressão física?
Testemunha – Sem agressão, mas estava naquela, naquele ringue, sabe? […].
Ministério Público – Mas tinha algum machucado no corpo dela? Alguma coisa?
Testemunha – Não, não, tinha não. De jeito nenhum.
Ministério Público – Ele já tinha tentado agredi-la fisicamente antes?
Testemunha – Não, nunca.
Ministério Público – Nunca?
Testemunha – Nunca. O **?’
Por sua vez, **, irmão da vítima que teria presenciado parcialmente os fatos, declarou, em síntese, que:
‘[…]
Juiz – Em nenhum momento então o senhor viu o ** encostando a mão na sua (ininteligível)?
Testemunha – Não, de forma alguma. Pelo contrário. Eu até, para evitar isso, puxei ele para a cozinha, para conversar comigo; porque, até então, eu não estava sabendo o que estava havendo e o motivo daquela discussão.
[…]
Ministério Público – Depois disso, sua mãe e sua irmã foram à delegacia de polícia para registrar a ocorrência, o senhor sabe?
Testemunha – Quem foi à delegacia fui eu, com ela. Fui eu que a acompanhei.
[…]
Ministério Público – No mesmo dia?
Testemunha – No mesmo dia, na mesma noite que ela dizendo que tinha sido agredida. E eu perguntei onde estava a agressão, que eu não tinha visto.
Ministério Público – E ela disse?
Testemunha – Ela ficou calada.
[…]
Ministério Público – E tinha algum machucado no corpo dela?
Testemunha – Eu não vi. Aparentemente, aqui no rosto, o que ela estava apresentando – né? –, eu não vi.
[…]
Juiz – Muito bem. Minha pergunta é a seguinte: […] uma mulher que apanha, estaria talvez segurando um braço, ou gemendo de dor, ou reclamando de um tapa. Nenhum desses sinais a senhora sua irmã apresentava?
Testemunha – Não, só vi ele chorando muito, mas sinais de agressão eu não vi, Excelência.’
…...................................................................................................
O conjunto probatório é, contudo, ilíquido quanto à autoria. ** e **, ouvidas pela autoridade policial e pela autoridade judiciária, modificaram completamente seus relatos de uma para a outra instância, passando a negar o que antes afirmaram.
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Impende, portanto, como forma de resguardar a respeitabilidade do sistema de justiça criminal, não só absolver o réu, mas possibilitar à instância ordinária a promoção da responsabilidade de ** pelo crime de denunciação caluniosa.” (grifei)
Como se vê, Senhores Ministros, assume inquestionável relevo, no caso ora em julgamento, a ausência conspícua de dados probatórios evidenciadores da prática delituosa pelo réu.
Com efeito, o estado de dúvida que emerge deste processo penal de conhecimento desautoriza, por completo, qualquer juízo condenatório.
Na realidade, em nosso sistema jurídico, como ninguém o desconhece, a situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo, pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos constitucionais que consagram o Estado democrático de Direito.
O exame dos elementos constantes destes autos evidencia que o Ministério Público deixou de produzir prova penal lícita que corroborasse o conteúdo da imputação penal deduzida contra o réu, não sendo capaz de cumprir, por isso mesmo, a norma inscrita no art. 156, “caput”, do CPP, que atribui ao órgão estatal da acusação penal o encargo de provar, para além de qualquer dúvida razoável, a autoria e a materialidade do fato delituoso.
Como sabemos, nenhuma acusação penal presume-se provada. Esta afirmação, que decorre do consenso doutrinário e jurisprudencial em torno do tema, apenas acentua a inteira sujeição do Ministério Público ao ônus material de provar a imputação penal consubstanciada na denúncia.
Com a superveniência da Constituição de 1988, proclamou-se, explicitamente (art. 5º, LVII), um princípio que sempre existira, de modo imanente, em nosso ordenamento positivo: o princípio da não culpabilidade (ou do estado de inocência) das pessoas sujeitas a procedimentos persecutórios (DALMO DE ABREU DALLARI, “O Renascer do Direito”, p. 94/103, 1976, Bushatsky; WEBER MARTINS BATISTA, “Liberdade Provisória”, p. 34, 1981, Forense).
Esse postulado – cujo domínio de incidência mais expressivo é o da disciplina da prova – impede que se atribuam à denúncia penal consequências jurídicas apenas compatíveis com decretos judiciais de condenação definitiva. Esse princípio tutelar da liberdade individual repudia presunções contrárias ao imputado, que não deverá sofrer punições antecipadas nem ser reduzido, em sua pessoal dimensão jurídica, ao “status poenalis” de condenado. De outro lado, faz recair sobre o órgão da acusação, agora de modo muito mais intenso, o ônus substancial da prova, fixando diretriz a ser indeclinavelmente observada pelo magistrado e pelo legislador.
É preciso relembrar, Senhores Ministros, que não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Antes, cabe ao Ministério Público demonstrar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Hoje já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra hedionda que, em dado momento histórico de nosso processo político, criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de ele, acusado, provar a sua própria inocência!!!
Refiro-me ao art. 20, inciso 5, do Decreto-lei nº 88, de 20/12/1937 – editado sob a égide do nefando Estado Novo de VARGAS –, que veiculava, no que se refere aos delitos submetidos a julgamento pelo tristemente célebre Tribunal de Segurança Nacional, e em ponto que guarda inteira pertinência com estas observações, uma fórmula jurídica de despotismo explícito: “Presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário (...)” (grifei).
O fato indiscutivelmente relevante no domínio processual penal, Senhores Ministros, é que, no âmbito de uma formação social organizada sob a égide do regime democrático, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelem-se capazes de informar e de subsidiar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas, cuja ocorrência só pode conduzir a um decreto de absolvição penal.
Não se pode – considerada a presunção constitucional de inocência dos réus – atribuir relevo e eficácia a juízos meramente conjecturais, para, com fundamento neles, apoiar um inadmissível decreto condenatório.
Não custa enfatizar que, no sistema jurídico brasileiro, não existe qualquer possibilidade de o Poder Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer, em sede penal, a culpa de alguém.
Revela-se importante advertir, Senhores Ministros, na linha do magistério jurisprudencial e em respeito aos princípios estruturantes do regime democrático, que, “Por exclusão, suspeita ou presunção, ninguém pode ser condenado em nosso sistema jurídico-penal” (RT 165/596, Rel. Des. VICENTE DE AZEVEDO – grifei).
É preciso relembrar que as limitações à atividade persecutório-penal do Estado traduzem garantias constitucionais insuprimíveis que a ordem jurídica confere ao suspeito, ao indiciado e ao acusado, com a finalidade de fazer prevalecer o seu estado de liberdade em razão do direito fundamental – que assiste a qualquer um – de ser presumido inocente.
Cumpre ter presente, bem por isso, neste ponto, em face de sua permanente atualidade, a advertência feita por RUI BARBOSA (“Novos Discursos e Conferências”, p. 75, 1933, Saraiva) no sentido de que “Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da ordem social, a obrigação de não aventurar inferências, de não revelar prevenções, de não se extraviar em conjecturas (...)”.
Nem se alegue, de outro lado, que os depoimentos prestados pela suposta vítima e pelas testemunhas perante a autoridade policial autorizariam, por si só, a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do réu em relação aos fatos que lhe foram imputados.
Não podemos desconhecer, no ponto, que o processo penal, representando uma estrutura formal de cooperação, rege-se pelo princípio da contraposição dialética, que, além de não admitir condenações judiciais baseadas em prova alguma, também não legitima nem tolera decretos condenatórios apoiados em elementos de informação unilateralmente produzidos pelos órgãos da acusação penal. A condenação do réu pela prática de qualquer delito – até mesmo pela prática de uma simples contravenção penal – somente se justificará quando existentes, no processo, e sempre colhidos sob a égide do postulado constitucional do contraditório, elementos de convicção que, projetando-se “beyond all reasonable doubt” (além, portanto, de qualquer dúvida razoável), veiculem dados consistentes que possam legitimar a prolação de um decreto condenatório pelo Poder Judiciário.
Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório (HC 73.338/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Disso decorre que os subsídios ministrados pelas investigações policiais, que são sempre unilaterais e inquisitivas – embora suficientes ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público –, não bastam, enquanto isoladamente considerados, para justificar a prolação, pelo Poder Judiciário, de um ato de condenação penal.
Na realidade, Senhores Ministros, o resultado do inquérito policial traduz, como efeito da atividade unilateral desenvolvida pelo Poder Público, um acervo informativo meramente destinado a habilitar o órgão da acusação penal, que é o Ministério Público, a instaurar a “persecutio criminis in judicio” (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa”, p. 43/45, item n. 12, 1986, Forense; VICENTE DE PAULO VICENTE DE AZEVEDO, “Direito Judiciário Penal”, p. 115, 1952, Saraiva; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I, p. 153, 1961, Forense).
A unilateralidade das investigações desenvolvidas pela Polícia Judiciária (“informatio delicti”), de um lado, e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da autoridade policial, de outro, não autorizam, sob pena de grave ofensa à garantia constitucional do contraditório e da plenitude de defesa, a formulação de decisão condenatória cujo único suporte venha a ser a prova, não reproduzida em juízo, consubstanciada nas peças do inquérito respectivo.
Por isso mesmo, a orientação jurisprudencial dos Tribunais (RT 422/299 – RT 426/395 – RT 448/334 – RT 479/358 – RT 547/355) firmou-se no sentido de que:
“É nula a decisão proferida em processo que correu em branco, sem que nenhuma prova fosse produzida em Juízo.”
(RT 520/484 – grifei)
“A prova colhida no inquérito não serve, sabidamente, para dar respaldo a um decreto condenatório, à falta de garantia do contraditório penal.”
(RT 512/355 – grifei)
Nem se diga que o princípio do livre convencimento do magistrado deveria preponderar, sem qualquer limitação, tendo presente, apenas, a realidade do conjunto probatório, e não o lugar em que este se produziu. Como apropriadamente observa FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO (“op. cit.”, p. 56, item nº 14), “sufragar-se tal escólio implicaria postergar-se, de maneira flagrante, o princípio basilar do contraditório...”.
Outro não é o magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Tratado de Direito Processual Penal”, vol. I, 1980, Saraiva), para quem “não há prova (ou como tal não se considera), quando não produzida contraditoriamente” (p. 194 – grifei). Afinal, salienta o saudoso Mestre paulista, “se a Constituição solenemente assegura aos acusados ampla defesa, importa violar essa garantia valer-se o Juiz de provas colhidas em procedimento em que o réu não podia usar do direito de defender-se com os meios e recursos inerentes a esse direito” (p. 104).
O entendimento que venho de referir encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. IV/126-127, item n. 765, 3ª ed., 1955, Borsoi; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado” p. 1.004, item n. 386.3, 11ª ed., 2003, Atlas; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 679, item n. 48, 5ª ed., 2006, RT), valendo referir, no ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. I/655, item n. VI, 5ª ed., 1999, Saraiva):
“(…) Para que o Juiz possa proferir um decreto condenatório é preciso haja prova da materialidade delitiva e da autoria. Na dúvida, a absolvição se impõe. Evidente que a prova deve ser séria, ao menos sensata. Mais ainda: prova séria é aquela colhida sob o crivo do contraditório. Na hipótese de, na instrução, não ter sido feita nenhuma prova a respeito da autoria, não pode o Juiz louvar-se no apurado na fase inquisitorial presidida pela Autoridade Policial. Não que o inquérito não apresente valor probatório; este, contudo, somente poderá ser levado em conta se, na instrução, surgir alguma prova, quando, então, é lícito ao Juiz considerar tanto as provas do inquérito quanto aquelas por ele colhidas, mesmo porque, não fosse assim, estaria proferindo um decreto condenatório sem permitir ao réu o direito constitucional do contraditório. (…).” (grifei)
Em suma: a análise dos elementos de informação contidos neste processo leva-me a reconhecer a inexistência de prova penal convincente e necessária que permita, de modo seguro, a formulação de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso cuja prática foi imputada ao réu pelo Ministério Público.
Sendo assim, e consideradas as razões por mim expostas, julgo improcedente a presente ação penal, para, em consequência, absolver o réu, **, da imputação penal contra ele deduzida (CP, art. 129, § 9º), fazendo-o nos termos do art. 386, inciso VII, do CPP, restando prejudicado, em consequência, o exame do “agravo regimental” interposto pelo Ministério Público Federal a fls. 254/263.
É o meu voto.
*acordão pendente de publicação
**nomes suprimidos pelo Informativo
Informativo STF
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