Começo este artigo influenciado por uma decisão judicial na qual li a seguinte afirmação: “o que se tem são alegações absurdas, descabidas, que nem um estudante da ciência jurídica do 1º semestre alegaria, tal como, nulidade de Inquérito Policial.”
Sim, incrivelmente ainda lemos e ouvimos reducionismos dessa natureza em algumas decisões e acórdãos. Mas será que isso faz algum sentido? Elementar que não.
A temática das nulidades no processo penal brasileiro é um terreno pantanoso, sobre o qual ainda paira um imenso espaço para o decisionismo, onde literalmente cada um diz ‘qualquer coisa sobre qualquer coisa’ (Streck). É o sistema de nulidades a la carte, que já criticamos nesta coluna (Sistema de nulidades “a la carte” precisa ser superado no processo penal).
A situação é agravada com discursos reducionistas e retrógrados, que vão além do sistema a la carte, para simplesmente (pretender) blindar o inquérito do princípio da legalidade. É preciso que se compreenda, definitivamente, que em um processo penal democrático e constitucional, forma é garantia e limite de poder. Á luz da legalidade processual, todo poder é condicionado e precisa ter seu espaço de exercício claramente demarcado. É uma decorrência lógica e inafastável da ‘tipicidade processual’.
O inquérito policial, enquanto uma espécie de investigação preliminar, não foge a essa regra. Como explicamos na obra Investigação Preliminar no Processo Penal[1], existe uma responsabilidade ética do Estado pela condução de uma investigação e posterior julgamento, que deve ser fiel às normas legais vigentes em um país e conforme a Constituição.
O fato de o inquérito ter natureza administrativa não é um argumento válido, pois não o blinda contra as garantias processuais e constitucionais, na medida em que o próprio artigo 5º, LV da Constituição Federal estende a incidência à fase de investigação. Ademais, o princípio do devido processo legal tem plena incidência em qualquer procedimento ou processo administrativo (ou por acaso o direito administrativo e os respectivos procedimentos não reconhecem nulidades?). Mais do que nunca, qualquer procedimento administrativo é pautado pela estrita legalidade dos atos da administração.
Também não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)...
Sem falar que também serve para condenar pessoas... Ou não? Na medida em que o artigo 155 do CPP autoriza (gostemos ou não) que o juiz se baseie também no inquérito para condenar (não pode é ser “exclusivamente”...o que representa uma fraude conceitual evidente), é claro que ele acaba adquirindo valor probatório. Sem falar no tribunal do júri, em que (absurdamente) os jurados decidem por “íntima e imotivada” convicção. Leia-se: podem condenar exclusivamente com base no inquérito (e até fora dele e do processo...). Alguém vai seguir com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?
Como destaca Gloeckner[2], duas questões precisam ser respondidas:
- Uma sentença pode ter como juízo de valoração ato administrativo nulo?
- É admissível um ato jurídico, independentemente de sua natureza jurídica, estar imunizado ou blindado contra a declaração de invalidade jurídica?
A resposta é, obviamente, negativa para as duas, impondo a conclusão de que uma sentença somente pode valorar atos administrativos válidos e que nenhum ato jurídico está imune ao filtro de legalidade. E, mais do que isso, um ato nulo/ilícito está submetido ao instituto da causalidade e da contaminação, de modo que vai contaminar os que dele derivarem, sendo evidente que a nulidade de um inquérito policial não apenas deverá ser reconhecida e declarada pelo magistrado, como também irá atingir a ação penal e consequente processo penal decorrente dessa invalidade originária.
Também, adverte Gloeckner, há que se atentar para a extensibilidade jurisdicional, de modo que se o inquérito (e seus elementos) se converte em material decisório, sendo incorporado pela sentença (ato jurisdicional), inarredavelmente deve se submeter aos mesmos critérios de legalidade/constitucionalidade da própria sentença! Já que dela passa a fazer parte, como motivação, a ela transmite suas virtudes e defeitos.
Ao ingressar o inquérito no processo e no ‘mundo processual’, desaparece toda e qualquer imunidade à legalidade, podendo e devendo ser submetido ao filtro de legalidade/constitucionalidade como qualquer ato do processo, até porque, todo e qualquer ato jurídico submetido ao processo judicial deve gozar de legalidade suficiente para poder gerar efeitos. Não esqueçamos, ainda, que se os atos jurisdicionais — mais relevantes do que aqueles da investigação — são suscetíveis de controle de legalidade, como afastar a incidência da fiscalização de sua validade justamente naqueles atos mais precários, mais informais? É justamente nesse terreno que o controle deve ser mais efetivo e criterioso!
E tudo isso já deve ser feito no momento do recebimento da denúncia, mas se não ocorrer, o vício permanece vivo no curso do processo e pode/deve ser reconhecido a qualquer tempo (como toda e qualquer nulidade absoluta).
Tampouco podemos pactuar com a tese dos “dois pesos e duas medidas”. É insustentável afirmar que as irregularidades formais do inquérito são irrelevantes, não alcançando o processo, e, por outro lado, defender que as diligências policiais podem ser valoradas na sentença, pois os atos do inquérito integram o processo. A contradição é evidente. Ou é irrelevante e nem pode ingressar no processo (exclusão física), muito menos ser valorado na sentença e demais decisões interlocutórias; ou ingressa no processo e pode ser valorado, situação em que a legalidade cobra seu preço. Senão voltamos a hipocrisia de “regras processuais a la carte”.
Diante de uma nulidade/ilicitude probatória do inquérito, que cenário se desenha?
O que foi feito com defeito, tem que ser refeito sem o defeito. Se pode sanar pela repetição. Nesse caso, não há nulidade, diante do saneamento (por ser refeito sem defeito).
Não tem como ser refeito sem o defeito, situação mais comum. Nesse caso, deve-se lançar mão da proibição de valoração probatória ou privação dos efeitos do ato, com a respectiva exclusão física, bem como analisar a derivação e seu alcance. É aqui que a ilegalidade cobra um alto preço, pois a nulidade/ilicitude provavelmente vai contaminar a acusação (que nela se baseou), o recebimento da acusação e posterior processo que dela se originou, até a sentença e acórdãos... Depois de retirada toda a ilicitude e derivados, vai ser avaliado o que sobrou e se há suficiência (justa causa) para sustentar uma (nova) acusação. Eis a explicação para muitas decisões de tribunais superiores, que reconhecendo a nulidade/ilicitude do inquérito, acabam por anular todo o processo, sentença e acórdão, fazendo com que o caso penal volte a estaca zero e, não raras vezes, ser definitivamente encerrado pela inexistência de provas lícitas suficientes para sustentar uma nova acusação. Em última análise, uma nulidade/ilicitude do inquérito pode colocar um processo inteiro no lixo, anulando-o ab initio.
Sendo assim, deve-se ter muito mais cuidado com a legalidade do material produzido e dos próprios atos do inquérito, pois, mais a frente, ele vai cobrar uma fatura probatória alta pelos desvios e ilegalidades praticadas. Basta, para isso, atentar para as inúmeras “operações” da Polícia Federal que – muito tempo depois – já na fase processual, caíram por terra diante do reconhecimento de nulidades/ilicitudes do inquérito policial, tais como busca e apreensão ilegal, quebra de sigilo de dados fiscais, telefônicos, etc. sem estrita observância da legalidade. Ou seja, periodicamente vemos processos inteiros desabarem, feito “castelos de areia” atingidos por uma onda, por meio da decretação de nulidades/ilicitudes ocorridas no inquérito policial.
E, inacreditavelmente, ainda tem gente repetindo o mofado e superado chavão do senso comum teórico de que “não existem nulidades no inquérito” ou que “não contaminam o processo”...
[1] LOPES Jr., Aury e GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal, 6ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2014.
[2] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen e LOPES Jr. Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal, p. 339.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 19 de dezembro de 2014.
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