sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A denominada "audiência de custódia"

Tramita de forma discreta no Congresso Nacional mais uma etapa das reformas pontuais do Código de Processo Penal, o Projeto de Lei 554/2011 que visa dar cumprimento à determinação da Convenção Americana de Direitos do Homem da apresentação imediata da pessoa presa ao juiz (natural).([1])
O tema já nos havia sido relevante em escritos anteriores ([2])[MP1] quando pontuamos, ainda antes da iniciativa legislativa em apreço, que “A desejada apresentação imediata da pessoa presa à autoridade judicial que deveria acontecer por força do disposto na Convenção Americana de Direitos do Homem,... [é aspecto] crítico para uma verdadeira assunção da cultura acusatória no processo penal brasileiro” e continuou sem previsão quando da entrada em vigor da Lei 12.403/2011. Mais exatamente, desse aspecto não cuidou o Parlamento, bem como, antes dele, a Comissão de Juristas que esboçou o anteprojeto que viria, mais uma década após sua edição, ser transformado em Lei.
A forma inicialmente concebida pelo Senador Antônio Carlos Valadarespreconizava a seguinte nova redação para o art. 306 do CPP: “§ 1. O No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”.
Já se fazia presente naquela iniciativa parlamentar que a apresentação da pessoa presa deve se dar à autoridade judicial competente – e não qualquer outra –, preocupação legislativa de grande importância prática para aqueles casos em que a formalização do auto de prisão em flagrante se dá em local distinto da competência para o julgamento da causa.
No curso dos trabalhos legislativos foi apresentado interessante substitutivo na CCJ do Senado pelo relator da matéria naquela Comissão, Senador Randolfe Rodrigues, com o objetivo de ampliar a abrangência do controle judicial sobre a condição da pessoa presa.
Ainda que o § 1. O sugerido ([3]) apresente-se, a rigor, desnecessário visto que as obrigações ali elencadas estão presentes na própria Constituição da República e na estrutura das cautelares pessoais em vigor, pode-se aplaudir ao menos a finalidade didática desse dispositivo, assim como o contraditório estabelecido no § 2. O ([4]) que seria redundante não fosse nossa histórica vocação para o modelo inquisitivo de processo.
Das novas providências estabelecidas, aquela constante no § 3. O ([5]) surge como de grande valia prática vez que estabelece os limites da legalidade e da forma da oitiva, deixando claro que se trata de depoimento sem finalidades para o mérito da ação de conhecimento, complementado pelas disposições formais que se seguem.([6])
Os horizontes que se descortinam podem não ser tão promissores a partir de uma perspectiva prática tanto quanto o são a partir da adequação da potencial nova norma às estruturas constitucionais e convencionais.
De um lado, porque a única disposição existente no ordenamento que, com algum esforço interpretativo, mais se aproximaria do tema, consolidou-se num retumbante exemplo de não aplicação cotidiana, o art. 2. O, § 3. O, da Lei 7.960/1989.
Com efeito, a previsão da facultatividade da apresentação da pessoa presa, de ofício ou por provocação, transformou-se em letra inoperante e não ajudou a diminuir o hiato entre a prática inquisitiva e a construção de uma nova e desejada moldura acusatória. O balanço que se pode efetuar de forma empírica vinte e cinco anos depois da entrada em vigor dessa lei é que as dúvidas teóricas e práticas que pairavam sobre a denominada “prisão policial” não diminuíram com a existência do artigo e parágrafos mencionados.
De outro lado, porque não parece existir a necessária preocupação com a montagem de uma estrutura operacional – obviamente necessária ao menos nos grandes centros – para dar cumprimento ao quanto vier a ser legislado.
Ao contrário, com algum custo se vence a resistência à imediata verificação da necessidade da conversão da prisão em flagrante em outra medida cautelar e somente se dá algum avanço formal à disposição contida no atual art. 310 do CPPporque ela foi concebida da forma mais fiel à mais sólida forma escrita, como é natural na procedimentalização inquisitiva.
Mais ainda, malgrado o discurso da ampliação de alternativas à velha dicotomia prisão versus liberdade no âmbito das cautelares, a construção dessas vias não encarceradoras não se vislumbra na prática menos por problemas teóricos da lei e mais pela incapacidade de gestão desse novo modelo que, assim, tende a não se consolidar e, por consequência, reintroduzir, do ponto de vista estritamente operacional, o velho arcabouço que se quis superar.
O risco, diante da falta de gestão adequada, é, assim, o do não cumprimento substancial da futura norma, mas somente a aparência. Audiências não deixariam de ser realizadas diante do manto da nova legislação, mas o que elas efetivamente tenderiam a trazer de novo é algo a ser questionado sob a recorrente justificativa de falta de estrutura adequada. Falta de estrutura que parece acompanhar o processo penal desde que foi concebido há mais de setenta anos.

Notas:
([1]) Art. 7. O, n. 5: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
([2]) Comentários ao Código de Processo Penal.4. Ed. 2010, especialmente p. 301-302, e Choukr, Fauzi Hassan. Medidas cautelares e prisão processual: comentários à lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011. RJ: Forense, 2011. P. 58 e seguintes.
([3]) Art. 306. § 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.”
([4]) “2.º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1.º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310.”
([5]) “§ 3.º A oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.”
([6]) “§ 4.º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5.º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3.º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.” (NR)
Fauzi Hassan Choukr
Pós-Doutorado pela Universidade de Coimbra (2012/2013). Doutorado (1999) e Mestrado (1994) em Direito Processual Penal pela Universidade de Sâo Paulo. Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College; 1996) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha (2007). Pesquisas concentradas nos seguintes temas: direitos fundamentais e sistema penal; internacionalização de direitos e globalização econômica; justiça de transição. Promotor de Justiça em São Paulo.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog