segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Quanto vale o sossego? Minha paz não tem preço


Quem me dera poder viver na “vila do sossego”, de Zé Ramalho, ou mesmo numa “sonífera ilha”, dos Titãs, para poder desfrutar da paz e tranquilidade sonora, porque desta “Cidade do Barulho”, dos Demônios da Garoa, o que eu mais quero, como dizia Tim Maia, é sossego...
A palavra “sossego” significa “ato ou efeito de sossegar; ausência de agitação; tranquilidade; calma, quietude, paz” (Ferreira, 611). É, pois, um estado de fato, que configura a tranquilidade e paz em um determinado tempo e local. Não quer dizer, pelo bom senso, ausência de barulho, mas sim, de ruído além daquele permitido, reiterado (no sentido de prolongado), prejudicial à saúde e à vida do cidadão.
Juridicamente falando, consiste em um direito da personalidade, decorrente do direito à vida e à saúde. Ou, de outra maneira, é “direito que tem cada indivíduo de gozar de tranquilidade, silêncio e repouso necessários, sem perturbações sonoras abusivas de qualquer natureza” (Guimarães, p. 514). O direito ao sossego, em um segundo plano, decorre também do direito de vizinhança e também da garantia de um meio ambiente equilibrado.
Desse conceito, então, é possível afirmar que toda pessoa tem direito ao sossego. É direito absoluto, extrapatrimonial e indisponível. Por conseguinte, a sua transgressão pode acarretar responsabilidade jurídica, em tese, tanto na esfera cível quanto em matéria criminal, passando pelas áreas ambiental e administrativa. Contudo, abordaremos aqui somente as responsabilidades penal e cível, ainda que sucintamente.
Em se tratando de matéria criminal, a responsabilidade daquele que produz barulho excessivo pode ser enquadrada em duas situações distintas: a) como contravenção penal, pelo artigo 42 (perturbação do trabalho ou do sossego alheios) ou pelo artigo 65 (perturbação da tranquilidade), ambos do Decreto-Lei 3.688/41; ou b) como crime ambiental, disposto no artigo 54 da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais). A exposição, como dito, será breve, sem a intenção de esgotar a questão.
Abrindo-se um breve parêntesis, é importante ressaltar que é possível a caracterização de outros delitos, como, por exemplo, crime ambiental de “maus-tratos” (artigo 32, da Lei dos Crimes Ambientais), em relação aos ruídos emitidos por animais de estimação, quando derivados de abuso, mutilação, ferimento, maus-tratos dos animais. Porém, tal situação deverá ser verificada caso a caso.
Para caracterizar a contravenção penal de perturbação do sossego alheio (art. 42, LCP), é necessário que alguém perturbe o trabalho ou o sossego alheios a) com gritaria (berros, brados) ou algazarra (barulheira), b) exercendo profissão incômoda ou ruidosa em desacordo com as prescrições legais, c) abusando de instrumentos sonoros (equipamentos de som mecânico ou não) ou sinais acústicos, ou d) provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal que tem a guarda. A pena é de quinze dias a três meses de prisão simples ou multa. Sobre o assunto, eis o magistério de Silvio Maciel:
“A conduta é perturbar (incomodar, atrapalhar) o trabalho (qualquer atividade laboral) ou o sossego (repouso; descanso; tranquilidade; calma) alheios (de várias pessoas). Veja-se que a expressão ‘sossego’ não está tutelando apenas o descanso ou repouso, mas também o direito à tranquilidade das pessoas. Ninguém é obrigado a suportar barulho excessivo e ininterrupto provocado por vizinhos, bares, lanchonetes, locais de culto apenas porque o som é provocado antes do horário de repouso. Em outras palavras, a contravenção pode ocorrer também durante o dia.
A expressão alheios indica que a perturbação do trabalho ou do sossego de uma única pessoa não configura a contravenção. Somente se configura se atingir várias pessoas” (Maciel, p. 108).

Com relação à contravenção penal de perturbação da tranquilidade, incorrerá nela quem “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável” (art. 65, LCP). Assim, aquele que incomodar a vítima (uma só pessoa, diferente do tipo penal acima), por acinte (intencionalmente, para contrariar a vítima), ou por outro motivo reprovável, pode ser responsabilizado penalmente por essa contravenção, à pena de prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa.
A propósito, interessante a lição de Sérgio de Oliveira Médici:
“Todo homem tem direito à tranquilidade, no ambiente social em que vive, livre de incômodos descabidos, de achincalhe e de tantas perturbações semelhantes. É bem verdade que no mundo conturbado de hoje tal direito está cada vez mais afastado do ponto considerado ideal. A mecanização do homem, as grandes concentrações populacionais e outros fatores provocados pelo progresso descontrolado, fazem com que o desrespeito, a falta de cortesia, a má educação se tornem uma constante. Mas nem por isso a prática de atos definidos no artigo 65 da Lei das Contravenções Penais deixa de configurar uma infração punível. Pelo contrário: o dispositivo legal visa garantir a tranquilidade pessoal, cada vez mais difícil de ser obtida” (Médici, p. 214).

Sobre o crime ambiental de poluição sonora, dispõe o artigo 54 da LCA, que aquele que causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos a saúde humana, ou que provoquem a mortalidade de animais ou a destruição significativa da flora, a pena é de reclusão de um a quatro anos, e multa. A poluição, no caso deste estudo, é a sonora, caracterizada pela degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população e/ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos (artigo 3º, inciso III, alíneas “a” e “e” da Lei 6.938/81).
Todavia, há entendimento diverso, abraçado pela corrente do direito penal mínimo, no sentido de que inexistem tais infrações penais (v.g. a conduta é atípica). Isto é, essas transgressões penais foram “revogadas” diante da aplicação do princípio da intervenção mínima (ultima ratio). Tanto as contravenções penais, quanto o crime ambiental de poluição sonora, para essa teoria, podem ser solucionados por outros ramos do direito, como o direito civil (cessação do barulho, indenização etc.), o direito administrativo (multas e demais sanções administrativas) e o direito ambiental (restauração do status quo ante), sendo desnecessária a intervenção do poder punitivo do Estado para apuração desse tipo de responsabilidade penal.
Passando à responsabilidade civil, o fato é que o barulho excessivo fere o direito à personalidade, gerando danos morais e/ou materiais, ante aos danos à saúde e à vida, do ofendido.
Verificado o barulho excessivo produzido pelo ofensor, a parte lesada pode ajuizar ação cível para cessar o ruído (cessado o barulho, a ação é meramente indenizatória). Cito dois exemplos de ações individuais, cumuladas ou não com indenização por danos morais e/ou materiais, que podem ser ajuizadas na esfera cível: a tutela inibitória (nos termos do artigo 461 e parágrafos do Código de Processo Civil) e a ação de dano infecto (baseada no artigo 1.277 do Código Civil). Há outras ações, como a ação coletiva (ação civil pública – artigo 1º, inciso I, da Lei 7.347/1985, vide, por exemplo, Ap. Cív. 626.953-8, TJPR, Rel. Rosene Arão de Cristo Pereira, julg 02.03.2010 e Ap. Cív. 724.917-6. TJPR, Rel. Leonel Cunha, julg. 15.02.2011, interpostos pelo Ministério Público) ou a ex delicto, mas nos restringiremos às duas hipóteses anteriormente citadas.
Primeiro, vamos falar sobre a ação de dano infecto. Decorrente do direito de vizinhança, a actio infectum damni consiste na demanda para interromper a interferência prejudicial, no caso do estudo, ao sossego e à saúde dos moradores, provocados pela utilização de propriedade vizinha.
Nesse sentido, observem-se as palavras de Silvio de Salvo Venosa:
“A ação de dano infecto encontra sua estrutura também nos artigos 554 e 555 do Código anterior. O artigo 1.277 é genérico e diz respeito a qualquer nocividade ocasionada ao vizinho. O artigo 1.280 é exclusivo da relação edilícia. Essas situações têm por pressuposto a futuridade de um dano. Dano iminente. Não o dano já ocorrido, mas a possibilidade e potencialidade de vir a ocorrer (Venosa, p, 288).”
Em outras palavras, essa ação de dano infecto é utilizada para cessar dano iminente, entre prédios (no sentido amplo) vizinhos.
Já a ação inibitória é tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer, com a finalidade de assegurar, ao ofendido, no caso, resultado prático equivalente, sob pena de multa diária ao réu, a fim de fazer interromper o ilícito causado e proteger o direito do ofendido. Luiz Guilherme Marinoni ensina que essa tutela é “essencialmente preventiva, pois é sempre voltada para o futuro, destinando-se a impedir a prática de um ilícito, sua repetição ou continuação” (Marinoni, p. 442).
Sobre o tema, eis o ensinamento de Nelson Nery JR e Rosa Maria de Andrade Nery:
“Tutela inibitória. Destinada a impedir, de forma imediata e definitiva, a violação de um direito, a ação inibitória, positiva (obrigação de fazer) ou negativa (obrigação de não fazer), ou, ainda, para tutela das obrigações de entrega de coisa certa (...) é preventiva e tem eficácia mandamental (Nery, p. 671, item 3).”
No caso, o pleito inibitório pode ser utilizado independentemente do dano em si. Basta a ocorrência ou a iminência de lesão ao direito (ou seja, ato ilícito), acrescidas da verossimilhança da alegação para que a tutela seja concedida. Há quem diga que a tutela inibitória é somente espécie de antecipação dos efeitos da tutela. Contudo, há sustentação, por outro lado, de que a tutela inibitória, neste caso, é espécie autônoma de impugnação do ilícito, de obrigação de fazer ou não fazer, em que engloba não somente o direito de vizinhança, mas também o resguardo do direito da personalidade, admitindo-se sua interposição contra toda espécie de injusto, independentemente de dano.
As duas ações, como dito acima, podem ser cumuladas com danos morais e/ou materiais. Ou pode, também, ser interposta unicamente a ação de reparação/indenização. Como há transgressão ao direito de personalidade (direito ao sossego, à saúde, à paz e à vida), nasce ao ofendido o direito de reparação por danos morais. Haverá danos materiais, caso demonstrado prejuízo material (ou mesmo lucros cessantes) com o barulho excessivo.
Para as ações cíveis, entendo, embora haja posicionamento diverso, que é desnecessária a realização de perícia. A prova do barulho excessivo, em desconformidade à legislação local (há municípios que possuírem sua lei sobre os limites toleráveis de ruídos, como, por exemplo, em Curitiba/PR, insculpida pela Lei Municipal 10.625/02) ou aos usos e costumes ou à analogia (quando da ausência de Lei Municipal, como em Ponta Grossa/PR – demonstrado pela Apelação Cível 3.0127208-2, do TJPR, rel. Domingos Ramina, julg. 15.12.1998), pode ser feita por testemunhas, provas documentais (gravações de vídeos ou áudios, boletins de ocorrência), indícios (como, por exemplo, comparação de filmagem de barulho oriundo de uma britadeira e estudo existente sobre o volume do barulho produzido por este equipamento), e outros meios de prova (artigos 342 e seguintes do CPC), admitindo-se, inclusive, a inversão do ônus da prova, quando cabível.
Sobre o tema, eis a jurisprudência:
“Ação de reparação. Danos morais. Direito de vizinhança. Perturbação do sossego. Danos morais caracterizados. Dever de reparar configurado. (...) 3. Diversas ocorrências policiais foram registradas dando conta da perturbação em decorrência de cantorias, utilização de instrumentos musicais, equipamentos de som, gritarias, reiteradamente e nos mais diversos horários. As testemunhas ouvidas também confirmam a ocorrência de tais fatos e o CD juntado aos autos apenas corrobora o que já foi comprovado. 4. Assim tem-se que os danos morais restaram devidamente configurados, pois a situação a qual foram submetidos os autores, efetivamente, ultrapassa a seara do mero aborrecimento, configurando verdadeira lesão à personalidade, passível, pois de reparação. (TJRS. Rec. Inom. 71002781334. Rel. Eduardo Kraemer. 3a. T. Recursal. Julg. 14.07.2011).”

Indenização – Danos morais – Excesso de ruídos – (...) – Dano configurado – Quantum indenizatório (...) A perturbação ao sossego é fato suficiente para causar dano moral, prejudicando a paz e o descanso do cidadão e resultando em aborrecimentos e desconforto à vizinhança (...) (TJMG. Ap. Cív. 1.0145.07.378752-8/001. Rel. Des. Evangelina Castilho Duarte. 14a. Câm. Cível, julg. 10.07.2008).”
O barulho, no entanto, deve ser diverso da normalidade (deve ser verificado de acordo com as circunstâncias que se deram: por exemplo, se ocorreu em data festiva – carnaval, ano novo – ou dia útil, se foi em horário noturno ou na hora do rush, se ocorreu no interior do apartamento ou em via pública etc.). Caracterizado o barulho excessivo, é possível, portanto, requerer, na esfera cível, a sua cessação como também a indenização por eventuais danos sofridos.
Consigne-se que o barulho não pode ser qualquer um. Deve ultrapassar o mero aborrecimento, do homem médio, por isso, excessivo. Deve ser uma circunstância anormal que, diante da gravidade do ilícito, venha causar incômodo às pessoas próximas (vizinhos/moradores, visitantes, trabalhadores etc.) do local.
Urge ressaltar também que “o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente” (Nunes). Ou seja, mesmo que haja autorização (rectius, “alvará”) para o funcionamento (como, por exemplo, para construção de um imóvel, funcionamento de heliporto, shows e comícios etc.), é possível o ajuizamento da ação, pois a violação ao direito ao sossego, acarreta também a violação aos direitos à saúde, à vida e à paz, direitos da personalidade, intransmissíveis e indisponíveis.
Assim, não se pretendeu aqui fazer uma análise exauriente do direito ao sossego e suas consequências jurídicas. Apenas, mostrou-se de forma singular a existência do direito ao sossego, decorrente do direito à saúde, à vida e à paz, portanto, parte do direito da personalidade e suas implicações no campo penal e civil.
Agora posso voltar tranquilo às minhas músicas e leituras cotidianas ou o que mais eu quiser fazer, sem barulho excessivo, sem qualquer transgressão ao meu direito ao silêncio, ao sossego, à minha saúde. Bem versou o cantor Chorão do Charlie Brown Jr., que já sabia desde antes deste estudo: Quanto vale a paz? Quanto vale o sossego? Valor inestimável, minha paz não tem preço.
Referências
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Disponível em www.tjmg.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em www.tjpr.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em www.tjrs.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira/Folha, 1994.
GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico. 9. ed. São Paulo: Rideel, 2007.
MACIEL, Silvio. Contravenções penais. In Legislação Criminal Especial. Col. Ciências Criminais, v. 6. Coord. Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. São Paulo: RT, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento. 7. ed. São Paulo: RT, 2008, v. 2.
MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Contravenções penais. Bauru/SP: Jalovi, 1988.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2007.
NUNES, Rizzatto. O direito ao sossego: uma garantia violada. In Terra. Publ. Em 30.03.2009. Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3666991-EI11353,00-O+direito+ao+sossego+uma+garantia+violada.html. Acesso em 01.11.2011.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009, v. 5.
Irving Marc Shikasho Nagima é advogado criminalista e especialista em Direito Criminal.
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2013

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