O instituto da delação premiada florejou como forma de combate às organizações criminosas e é utilizado pela sociedade contemporânea em legislações ao redor do mundo. Não se trata, no entanto, de uma novidade. Já era tratado na clássica obra do Marquês de Beccaria, Dos Delitos e Das Penas, que inspirou o iluminismo, datada de 1764, quando tratou das acusações secretas, segundo sua crítica, dura, por sinal: “As acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessário em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele que suspeita que é um delator o seu concidadão, vê nele logo um inimigo. Costumam, então, mascarar-se os próprios sentimentos; e o hábito de ocultá-los a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo”.
No Brasil, o instituto do réu colaborador foi instituído pelas Ordenações Filipinas que, ao serem revogadas pelo Código do Império, não trouxeram nova previsão a respeito. Mais tarde, o instituto volta a ser prestigiado com o advento das leis de crimes contra o sistema financeiro nacional, de crimes hediondos, de crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, de repressão às ações praticadas por organizações criminosas, de lavagem de dinheiro, de drogas e de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas.
Muito em voga em tempos de combate à criminalidade organizada, a delação premiada consiste na confissão de um acusado que, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, admite a prática delituosa e atribui a um terceiro a participação como seu comparsa.
Todas as leis pátrias que tratam do tema possuem uma redação muito semelhante e buscam beneficiar o réu colaborador com a redução da pena de um a dois terços, além do perdão judicial, consoante a primariedade do delator, desde que sua confissão espontânea ou voluntária auxilie na elucidação do crime, localização da vítima e identificação de outros agentes infratores, além da identificação e localização dos bens e valores provenientes do crime, conforme o caso concreto.
Além disso, não nos afastemos da questão ética envolvida, pois a delação premiada é vista por parte da doutrina como corruptora dos costumes, já que se finda na incriminação de outrem para auferir vantagem para o delator e com isso desviar-se das punições e é nesse contexto que se traz para tempos modernos a crítica feita por Beccaria já no século 18.
Mas o ponto fulcral da questão ora tratada repousa no fato de que, para se beneficiar dos efeitos da delação premiada, e, portanto, para ela ter validade, a confissão deve ser espontânea e não mediante qualquer tipo de coação física ou moral. Inclusive, não é crível que o agente criminoso busque a redução da pena já imposta, lastreada numa delação premiada a posteriori.
Não podemos deixar de lado que a legislação não trata do momento processual adequado para que seja firmado o acordo de delação premiada, cujos efeitos se operam apenas em sentença judicial, mas nos parece razoável supor que o momento adequado seria antes da aplicação da pena. Caso contrário, estaria viciada pela coação moral e física do delator — o que se extrai da própria conceituação do instituto.
Em sendo assim, não é possível que o réu se beneficie de uma circunstância legal para amenizar sua pena se houver agido sem qualquer espontaneidade, apenas para locupletar-se de algum benefício legal, como observa Guilherme de Souza Nucci, opinião da qual partilhamos.
A nosso ver, estaríamos diante de uma “chantagem” premiada, de um acordo escuso e espúrio, o que certamente não foi a intenção do legislador tutelar e, tampouco, deve ser defendido pelo Poder Judiciário. Por óbvio que nesse caso não existe nenhum critério de espontaneidade e arrependimento na conduta do agente criminoso, mas sim de manifesta intenção de se ver mais uma vez beneficiado, pela presente coação física e moral suportada com a aplicação da pena, muitas vezes, acima dos 40 anos de prisão.
Não nos olvidemos do malfadado, quiçá comum, emprego da falsa delação, até porque, como bem observa Antonio Scarance Fernandes (Crime Organizado – Aspectos Processuais. RT. Fls. 20), o autor, nestes casos, não presta compromisso de dizer a verdade como ocorre com as testemunhas, justamente por se tratar de um dos acusados e, por isso, não comete falso testemunho. Certamente tais condutas devem ser combatidas com rigor pelo Estado.
Ademais, imperioso afirmar que quem acusa é responsável pelo que alega, sendo imprescindível que possua provas das acusações que faz, sem as quais deve ser responsabilizado pela prática de crimes contra a honra e até o crime de denunciação caluniosa, sem prejuízo de outras medidas que a vítima das acusações possa tomar no aspecto indenizatório.
Guilherme San Juan Araujo é advogado e sócio do escritório San Juan Araujo Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2013
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