Apesar do grande respeito alcançado pelo ministro argentino
Eugenio Raúl Zaffaroni entre juristas brasileiros, uma de suas teses parece ainda não ter a merecida atenção dos nossos penalistas. Trata-se da culpabilidade por vulnerabilidade, cuja abordagem parece ser muito útil ao Brasil.
Como se sabe, a culpabilidade é um dos elementos constitutivos do conceito analítico de crime segundo grande parte dos modernos penalistas. Assim, cabe à culpabilidade a função fundamental de analisar a possibilidade de imputar o injusto ao seu autor.
Em passagem esclarecedora, ensina
Zaffaroni que as conceituações sobre culpabilidade podem ser divididas em duas correntes básicas, a depender dos fins da pena. Uma primeira corrente liga a culpabilidade à ideia de autodeterminação, considerando a pena como mera retribuição, sendo fortemente defendida pelos penalistas liberais do século XVIII. A segunda corrente fica por conta dos que entendem a culpabilidade como grau de “perigosidade” do agente, tendo a pena uma função de defesa social (razões de Estado), sendo marca da escola positiva italiana
(1).
Uma explicação clássica da doutrina indica que, no primeiro momento, a ciência dizia caber à culpabilidade toda a parte subjetiva do crime, complementando a parte objetiva representada pelo injusto, o que possibilitava a ligação do agente ao ato criminoso. Tal era a chamada concepção psicológica de
Liszt-Beling(2).
Posteriormente, coube a
Frank inovar com sua concepção normativa, inserindo o conceito de reprovabilidade.
Goldschimidt e
Freudenthalajudariam a fortalecer e divulgar tal concepção
(3).
Desde então, a culpabilidade faz referência à exigibilidade de que o autor aja de forma a não cometer a conduta ilícita criminosa, enfim, trata-se da pesquisa de evitabilidade do injusto perpetrado.
A moderna teoria dos fins das penas, encampada pelos funcionalistas, viu na culpabilidade um campo para a incidência de seus critérios de política criminal. A prevenção ganha destaque nesse contexto.
No plano de fundo, percebe-se num breve esboço das teorias mais eloquentes que o debate sempre leva em consideração a dicotomia entre culpabilidade do ato e culpabilidade do autor.
Certo é que a culpabilidade pelo caráter ou personalidade é um ponto invariavelmente considerado na doutrina hodierna, sendo sempre lembrada a “perigosidade” do agente. Compreen dendo o crime como uma expressão de um interior antissocial, essa funcionalidade aparece toda vez que se leva em consideração a vida pregressa do autor para fixar a culpabilidade.
Em suma, a avaliação de fatores internos ao agente (análise de caráter), claramente alheios ao fato criminoso em si, há muito tempo vem a servir de base para a punição penal, quase sempre de forma a agravar a situação do condenado.
Não ignorando as características do autor da conduta, surge então o conceito de culpabilidade que visa trazer para a dogmática o aspecto da vulnerabilidade. Desta feita, a culpabilidade deve ser o espaço para adequação do injusto à vulnerabilidade pessoal
(4).
Apesar da extensa lista de teorias sobre a culpabilidade, indicando um número variável de condicionantes e fundamentos, inquestionável é que jamais se deu a devida relevância ao fator “seletividade”.
Fato evidenciado pela criminologia, a seletividade é marca constante de todos os sistemas criminais
(5). Inegavelmente, o âmbito de autodeterminação dos sujeitos sociais está diretamente ligado à seleção feita pelo sistema punitivo
(6), mas este dado tem passado despercebido pela teoria do crime.
A seleção das pessoas afetadas pelo direito penal, operada principalmente na criminalização secundária, ocorre de forma que a perseguição criminal beneficia aqueles que estão em condições de influenciar e dirigir o poder, desfavorecendo os que não estão na mesma situação.
A seletividade é também marca explicitada pela criminologia radical, registrando a obviedade do fato de que a agência judicial recai sempre de forma desigual contra pessoas de classes sócioeconômicas distintas
(7).
Sendo a seletividade um dado permanente e invariável, é possível compreender que existem graus diversos de vulnerabilidade dos cidadãos ao sistema, a depender de uma série de fatores individuais e sociais. Em outras palavras, os dados da realidade definem o âmbito de autodeterminação do sujeito quando estava a cometer o ato criminalizado.
O reconhecimento dos diversos níveis de vulnerabilidade busca estabelecer um direito penal menos desigual, na medida em que se pode dar contornos dogmáticos eficazes à redução de uma falha estrutural do sistema repressivo, tentando estabelecer padrões de aplicação da lei com a maior possibilidade de isonomia e ética.
Segundo a teoria, a vulnerabilidade concreta se opera por uma associação entre o estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal pela vulnerabilidade. Precisamente, é o esforço pessoal que deve ser considerado para efeito de regrar a culpabilidade
(8).
A exemplificar, basta perceber que o esforço pessoal de uma pessoa poderosa para ser criminalizada é absurdamente maior se comparado ao esforço de um desprovido de recursos. Em outras palavras, os desprovidos de poder sempre estão mais suscetíveis a serem alcançados pelo poder punitivo.
A culpabilidade por vulnerabilidade surge como medida de redução do poder punitivo penal, servindo como nível máximo da violência aceitável. Trata-se de uma teoria para conter as sanções, devendo sempre reduzir o limite da clássica culpabilidade pelo injusto, ou no máximo coincidir com o mesmo.
Bem por isso, é preciso esclarecer, dada a visão redutora do direito penal, esta culpabilidade jamais será mais rigorosa do que a aplicação clássica, não sendo verdadeiro o receio de que os detentores do poder serão mais visados pelo direito penal.
Diante do que se expõe, a tese não busca ignorar características sociais e de caráter do autor, mas em verdade utilizá-las de forma contrasseletiva, a justificar uma menor incidência do poder repressivo sobre os menos privilegiados, ou seja, sobre aqueles que são mais visados pelo sistema.
Por tudo, entendemos que a culpabilidade por vulnerabilidade é uma das possíveis teses a serem encampadas no Brasil, em busca de um sistema penal menos elitista e menos insensível à realidade humana. Sendo certo que aqui encontramos as desigualdades sociais clássicas dos países marginais, nada mais correto que buscar nesta nova culpabilidade uma forma de amenizar a seletividade do nosso sistema punitivo.