RESUMO
O presente estudo aborda a questão da redução da Maioridade Penal sob aspectos sociais e jurídicos. Defende-se que, independentemente da irrefutável ineficácia social dessa medida, a sua adoção esbarra em inconteste impossibilidade jurídica, não podendo ser admitida. Nesse sentido, demonstra-se que eventual proposta de emenda constitucional que vise a alterar o texto do artigo 228 da Constituição Federal viola não só cláusula pétrea, senão também os princípios do pro homine e da proibição do retrocesso, devendo, por isso, ser objeto de controle preventivo de constitucionalidade.
INTRODUÇÃO
De tempos em tempos, a mídia, a sociedade em geral e, infelizmente, estudiosos jurídicos renomados, assustados com o fenômeno da criminalidade, seguem na contramão dos avanços garantísticos do Direito Penal para fazer ressurgir o caloroso debate acerca da redução da maioridade penal.
O assunto, portanto, permanece em voga: inúmeras são as Propostas de Emenda Constitucional que tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de responsabilizar criminalmente os adolescentes em conflito com a lei[1]. Não bastasse isso, os meios de comunicação não medem esforços para incitar a população a temer e a marginalizar adolescentes, propagando o desejo de efetivação das mais duras formas de punição.
A despeito dessa realidade, certo é que a redução da maioridade penal não configura uma resposta eficaz para os problemas enfrentados pela sociedade. Por outro lado, há que se verificar, também, que a antecipação da idade de responsabilização penal não tem espaço no nosso ordenamento, haja vista a existência de proibições normativas inamovíveis. É o que se pretende demonstrar com base no presente estudo.
DO DIREITO FUNDAMENTAL À INIMPUTABILIDADE PENAL
O artigo 227 da Constituição Federal atribui às crianças e aos adolescentes um tratamento jurídico privilegiado, norteado pela louvável doutrina da proteção integral, que reconhece a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento desses indivíduos, admitindo-se, por conseguinte, a sua vulnerabilidade em relação aos adultos. Assim, o legislador optou por lhes conferir um tratamento desigual, na medida de sua desigualdade, objetivando o alcance de uma situação de igualdade substancial.
Com suporte no texto constitucional vigente, que, por sua vez, encontra amparo na sistemática de tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, crianças e adolescentes adquiriram a qualidade de sujeitos de direitos destinatários de um tratamento jurídico mais benéfico, pautado nas idéias de proteção integral e de prioridade absoluta (Cf. LIBERATI, 2006, P. 27).
Nesse ponto, cumpre destacar que a Constituição Federal, regulando uma dessas situações que geram um tratamento mais favorável a crianças e adolescentes, assentou, em seu artigo 228, a inimputabilidade dos indivíduos com idade inferior a dezoito anos. Significa dizer que, antes de completar a referida idade, nenhum indivíduo poderá ser processado ou condenado criminalmente. A não completude do desenvolvimento psicológico de infantes e jovens obsta a sua responsabilização criminal.
Reconhece-se, assim, o direito fundamental de toda criança e de todo adolescente de não ser alvo do Direito Penal Comum, que age, por natureza, de forma agressiva e violenta para a consecução de seus fins. Noutras palavras, escudado pela mencionada regra constitucional, o indivíduo que não possua dezoito anos completos tem sua fragilidade natural reconhecida pelo ordenamento, que o protege da intervenção enérgica do Direito de Punir do Estado (também conhecido como Jus Puniendi).
DA REDUÇÃO DA IDADE PENAL COMO MEDIDA INOPORTUNA
Feitas essas considerações, é de se ver que muitas pessoas não concordam com o que dispõe o artigo 228 da Constituição Federal, por entenderem que indivíduos com idade inferior a de dezoito anos já sabem muito bem o que fazem e, por isso, deveriam responder criminalmente diante da prática de comportamentos ilícitos (na linguagem popular, esses indivíduos, porque criminosos, têm que pagar por suas condutas).
Os argumentos utilizados pelos defensores da redução da maioridade penal giram em torno, principalmente, de três afirmações: (1) diante da globalização, um indivíduo com menos de dezoito anos de idade já possuiria condições de compreender a ilicitude de seus atos e de eleger os seus comportamentos, razão pela qual deveria ser punido como o adulto; (2) a criminalidade juvenil teria aumentado em razão da impunidade supostamente gerada pela não aplicação das leis penais ao adolescente; e (3) a não responsabilização penal dos jovens poria em risco a segurança social.
Falaciosas são essas assertivas, que, seguramente, não encontram qualquer respaldo nos estudos científicos realizados a respeito do assunto.
No que tange à primeira argumentação, é certo que a facilitação do acesso à informação não representa constatação capaz de autorizar o rebaixamento da idade de responsabilização penal. Veja-se que o conhecimento de o que é certo e errado não basta para que o ser humano em fase de desenvolvimento atinja um nível esperado de autodeterminação e de amadurecimento. Quer dizer, saber se determinada atitude é aceita ou reprovada perante a sociedade não impede o jovem de transgredir, máxime porque essa transgressão é por vezes esperada pelos estudiosos das ciências psíquicas.
Isso porque já se comprovou cientificamente que antes dos dezoito anos de idade ainda não há completa formação das estruturas físico-químicas cerebrais responsáveis pela formação plena da razão. Consequentemente, um indivíduo que se encontre em uma etapa da vida de grande turbulência hormonal, embora conheça da tipicidade da conduta e saiba das consequências de sua prática, age por impulso, tendo dificuldades para se autodeterminar diante da proibição legal (cf. MACHADO, 2003, p. 321).
Com relação à segunda argumentação, consigna-se que as pessoas que afirmam descontentamento com relação à suposta situação de impunidade da juventude desconhecem totalmente o procedimento de responsabilização determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ora, o adolescente que comprovadamente pratica um ato infracional seguramente responde por ele. O jovem só não cumprirá pena porque a vulnerabilidade inerente à sua condição de pessoa ainda em desenvolvimento lhe assegura uma responsabilização mitigada, menos severa, revestida de aspectos pedagógicos mais evidentes. Mas responsabilização há, sem dúvida, na modalidade de medida socioeducativa.
No que toca à asserção relacionada ao suposto comprometimento da segurança social, cumpre transcrever as palavras de Paulo Afonso Garrido de Paula: “uma sociedade que se defende de crianças sepulta a ideia de proteção integral, aniquila a confiança na recuperação, destroi valor de civilidade e abate o princípio constitucional da dignidade humana” (PAULA in ILANUD, 2006, p. 40).
Dessa forma, não tem cabimento aderir ao posicionamento favorável à redução da maioridade penal, cujos alicerces são facilmente rebatidos pelas normas extraídas da principiologia da doutrina da proteção integral.
Feitas essas considerações, não restam dúvidas: é inoportuna a redução da idade de responsabilização penal.
Chegada essa conclusão, passa-se a analisar o tema sob outro aspecto. Com efeito, para estudar a questão da redução da maioridade em sua plenitude, não basta observar o fenômeno da responsabilização penal sob o aspecto biológico e/ou social. Imprescindível se torna, também, a análise do tema na seara jurídica.
DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL COMO MEDIDA INCONSTITUCIONAL
Observa-se que, independentemente das conclusões advindas dos inúmeros debates que questionam as vantagens ou desvantagens da redução da maioridade penal, essa discussão se torna absolutamente inócua diante da existência de óbices jurídicos intransponíveis, que proíbem a modificação do artigo 228 da Constituição Federal.
O artigo 60, §4º, IV, da Constituição, responsável por trazer ao nosso ordenamento as chamadas cláusulas pétreas, proíbe a elaboração de proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos ou garantias fundamentais. Significa dizer: direitos e garantias fundamentais não podem ser retirados do texto constitucional.
Veja-se que a previsão de direitos e garantias fundamentais não se esgota no rol do artigo 5º da Constituição. Logo, o referido artigo 228, ao fixar a idade de início de responsabilização penal aos dezoito anos, acoberta, indiscutivelmente, o direito fundamental do adolescente, agasalhado por cláusula pétrea, de não submissão aos ditames do severo Direito Penal (Cf. SHECARIA, 2008, p. 138/139).
Noutras palavras: o referido preceito constitucional garante a todo ser humano com idade inferior a dezoito anos o direito de não ser processado criminalmente, assegurando-se a vigência, em benefício desse indivíduo, de uma legislação especial, mais benéfica, que atenda às necessidades decorrentes da sua situação de fragilidade e de vulnerabilidade natural.
Não merece acolhida a argumentação de alguns doutrinadores, como do professor Pedro Lenza, no sentido de que, em havendo apenas a redução da idade penal (mantendo-se, pois, intacta a previsão de um marco de inimputabilidade no texto constitucional), restaria incólume o direito fundamental à inimputabilidade, núcleo duro do artigo 228 da Constituição Federal (Cf. LENZA, 2009, p. 872). Isso porque destinatários do referido artigo são todos os indivíduos com idade inferior a dezoito anos, devendo todos eles usufruir o direito fundamental à não imputação.
Em sendo assim, qualquer proposta de redução da maioridade penal, por envolver matéria resguardada por cláusula pétrea, deve ser declarada inconstitucional.
Ultrapassado esse ponto, identifica-se outro motivo proibitivo da redução da idade penal: o princípio da proibição do retrocesso, que impede a adoção de orientação jurídica que importe revogação de normas que concedam ou ampliem direitos fundamentais (Cf. BARROSO in RUBIO, 2004, p. 328). Os direitos galgados pela sociedade são lacrados por esse princípio, tornando-se intocáveis e indeléveis. Nem mesmo após uma ruptura constitucional esses direitos poderiam ser violados.
A redução da idade penal, nesses termos, independentemente da proteção das chamadas cláusulas pétreas, revela-se medida incompatível com a Constituição. Não se admite retrocesso na caminhada evolutiva de direitos fundamentais.
Indiscutível, portanto, a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal.
Por fim, insta examinar uma última situação. Com a evolução do Estado de Direito Constitucional para o Transnacional, o operador do Direito, para verificar a validade das regras jurídicas, não deve se limitar a analisar normas nacionais. Também interferem na sistemática jurídica brasileira os Tratados e Convenções Internacionais, mormente quando versam sobre direitos humanos (Cf. GOMES, 2008, p. 46).
Dito isso, observa-se que, constatado um conflito entre uma regra da Constituição Federal e outra pertencente a um tratado internacional de direitos humanos, deve-se confrontar as regras antagônicas de cada um desses diplomas: aquela que melhor observar direitos individuais prevalece (princípio do pro homine), paralisando a eficácia da outra (Cf. GOMES, 2008, p. 89).
Diante disso, mesmo que nosso ordenamento admitisse a redução da idade penal, fatores supraconstitucionais impediriam a sua concretização. Haveria, no caso, choque entre a hipotética norma constitucional redutora da maioridade penal e o artigo 1º, primeira parte, da Convenção sobre os Direitos da Criança, que considera como criança (incluindo-se, aí, o adolescente) “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Note-se que a ressalva feita ao final do artigo não teria aplicação, já que na data da ratificação dessa Convenção pelo Brasil a idade penal já havia sido fixada aos dezoito anos (e não pode haver retrocesso em direitos humanos). Em sendo assim, instaurado o conflito sugerido, prevaleceria a regra do Tratado (isto é, a maioridade penal aos dezoito anos), por ser o dispositivo que melhor salvaguarda direitos fundamentais. Inviável, por mais essa razão, a redução da maioridade penal.
CONCLUSÃO
Nota-se que a opinião pública, de uma forma geral, massacra nosso ordenamento jurídico, levantando infindáveis descontentamentos com relação a princípios e regras de todos os gêneros (inclusive humanísticos) e pleiteando, sempre, a redução dos direitos dos cidadãos – no caso, a redução da maioridade penal. De qualquer forma, ineficaz seria qualquer decisão legislativa tendente a reduzir a idade de imputação de responsabilidade penal, medida simplista e imediatista, que vai de encontro ao processo evolutivo dos direitos fundamentais.
Mas não é apenas a inconveniência da redução da maioridade penal que deve ser lembrada, pois nosso ordenamento jurídico, cercando-se dos instrumentos necessários à salvaguarda de direitos e garantias fundamentais, elevou o artigo 228 da Constituição Federal a um nível de máxima proteção jurídica, tornando-o inabalável diante das pressões populares ou das mudanças de direção do Poder. Nesse sentido, mais do que ineficaz, qualquer medida tendente a reduzir a maioridade penal revela-se absolutamente inválida, porquanto contrária aos ditames da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais que concretizam a doutrina da proteção integral.
Notas de Rodapé:
[1] Pode-se citar, exemplificativamente, as seguintes Propostas de Emenda Constitucional: 171/93; 169/99; 179/03; 242/04; 26/07; 48/07; 85/07; 125/07; e 399/09. Outras Propostas de Emenda estão disponíveis no endereço eletrônico da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br), acessado em 18 out 09.
REFERÊNCIAS
CÂMARA DOS DEPUTADOS. www.camara.gov.br. Acesso em: 18 out 09.
GOMES, Luiz Flávio; VIGO, Rodolfo Luis. Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional: riscos e precauções. São Paulo: Premier, 2008.
ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (orgs). Justiça, Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009.
LIBERATI, Wilson Donizeti. Processo Penal Juvenil: a garantia da legalidade na execução da medida socioeducativa. São Paulo: Malheiros, 2006.
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos. Barueri: Manole, 2003.
RUBIO, David Sanches; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (orgs). Direitos Humanos e Globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
SHECARIA, Sérgio Salomão. Sistema de Garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Como citar este artigo: BARBOSA, Danielle Rinaldi. Redução da Maioridade Penal: uma abordagem garantista. Disponível em http://www.lfg.com.br - 04 de dezembro de 2009.
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