Nos últimos dias, tem-se percebido uma tendência de alguns (poucos, felizmente) magistrados de concederem, com a indiferença de promotores de justiça,(1) mandados de busca e apreensão para serem cumpridos por policiais militares, em atendimento à representação, em crimes comuns, dos próprios milicianos. Talvez em nome da “segurança pública”, quando deveriam preservar direitos fundamentais e a ordem jurídica, esses juízes não se dão conta de que estão autorizando militares, em pleno regime democrático, a ingressarem em residências de civis. Trata-se, pois, de uma flagrante ilegalidade – que também acaba alimentando, ainda mais, a falta de integração entre as polícias –, como se passará a expor.
É sabido que a Constituição Federal, no art. 144, §§ 1º e 4º, conferiu às polícias judiciárias (Federal e Civis) as funções de investigação criminal, exceto com relação aos crimes militares. Por sua vez, o CPP, no art. 4º, também estabelece que a apuração das infrações penais e da sua autoria é atribuição das polícias judiciárias.
Dessa forma, caberá a tais polícias – e não às militares – a representação perante o Poder Judiciário por mandados de busca e apreensão, bem como a realização das buscas domiciliares, atividade típica de investigação criminal e voltada à garantia ou segurança da prova(2). Se assim não fosse, a busca domiciliar não estaria regulamentada no Código de Processo Penal, que a classifica como meio de prova(3)e que estabelece, a partir do art. 240, a forma de cumprimento dessa medida cautelar.
Com isso, como bem registra Pitombo, os mandados de busca e apreensão deverão ser cumpridos “pela polícia civil, órgão da administração direta com função de polícia judiciária, nos limites de sua atribuição”(4 ),cabendo à polícia militar, em vez de usurpar funções conferidas a outros órgãos policiais, repassar às polícias judiciárias eventuais informações que demonstrem fundadas suspeitas para buscas em residências.
Aliás, há até mesmo quem sustente que os policiais militares sequer poderiam realizar buscas pessoais, por também se tratar de uma medida cautelar penal que, em razão dessa característica, somente estaria afeta às polícias judiciárias(5).
À polícia militar, por outro lado, incumbe o importante papel de exercer as funções de policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CF), assim como a apuração de crimes militares, razão pela qual, a contrario sensu, não se deve conceder (e não se concede) às polícias judiciárias, nessas hipóteses, mandados de busca e apreensão(6).
Não se pode esquecer, igualmente, que a inviolabilidade do domicílio, direito fundamental assegurado no art. 5º, XI, do texto constitucional, é a regra. Assim, para que seja afastada essa garantia, deve-se observar o princípio constitucional do “devido processo legal” (art. 5º, LIV, da CF), que também se aplica na fase pré-processual(7). Em decorrência desse princípio, em razão dos dispositivos já citados, só as polícias judiciárias, no curso de investigações criminais formais(8), havendo fundadas razões e com autorização judicial, é que poderão proceder à inviolabilidade de domicílios em cumprimento a mandados de busca e apreensão. Os direitos fundamentais servem para limitar o poder estatal e os policiais, a exemplo dos demais servidores públicos, apenas poderão praticar atos autorizados pela lei, o que não ocorre quanto a buscas domiciliares, nas infrações penais comuns, com relação às polícias militares.
Analisando o princípio do due process of law, explica Giacomolli que, no processo penal, desde a investigação, devem ser observados, rigorosamente, as fórmulas e os ritos estabelecidos pelo legislador, que se destinam ao estabelecimento de limites ao poder dos agentes estatais(9). Destarte, existindo representação por buscas domiciliares e cumprimento dessas diligências por órgão que não possua tal atribuição, estar-se-á diante de flagrante inconstitucionalidade, por violação do princípio do devido processo legal.
Em decorrência disso, ainda que se esteja diante de um crime permanente e que o ingresso na residência tenha ocorrido em cumprimento à ordem judicial, a prova obtida deverá ser considerada como ilícita, por violação a normas constitucionais e infraconstitucionais. De fato, o que motiva o ingresso dos militares em domicílios não é a certeza da ocorrência de um crime – requisito necessário para a incidência do art. 303 do CPP e de uma das exceções do art. 5º, XI, da CF (flagrante delito) –, mas a ordem judicial. Assim, o encontro casual de algum objeto não serve para legitimar uma violação de domicílio baseada em uma ilegal autorização judicial.
Como a polícia militar não tem legitimidade para deduzir pretensão cautelar perante a Justiça Comum e não cabe à autoridade judiciária substituir, indevidamente, a autoridade policial, a apreensão de bens nessas circunstâncias deve ser considerada como prova ilícita, que afeta as demais que dela decorrem, “contaminando integralmente o processo”(10), em respeito ao art. 5º, LVI, da CF, e ao art. 157 do CPP. Sendo a prova ilícita, não poderá o delegado de polícia realizar auto de prisão em flagrante nessas situações, principalmente naquelas (não raras) ocasiões em que os presos, antes de serem apresentados na Delegacia de Polícia, são encaminhados aos quartéis, onde serão fotografados e “interrogados” pelos milicianos, em continuidade às “investigações”.
Também é importante consignar que o juiz, apesar do disposto no art. 242 do CPP, que deve ser interpretado de acordo com o texto constitucional, não pode decretar de ofício medidas cautelares de busca e apreensão. Em respeito ao sistema acusatório, adotado pelo sistema jurídico brasileiro, e à necessária imparcialidade para julgamento, os juízes não devem determinar, ex officio, medidas investigatórias de busca e apreensão(11). Se deferir de ofício, porém, deverá enviar os mandados às polícias judiciárias para cumprimento, em respeito à Constituição Federal.
Portanto, se a Magna Carta estabeleceu como regra a inviolabilidade de domicílio, assegurou como cláusula pétrea a observância do devido processo legal e definiu de forma clara as atribuições dos órgãos policiais, somente as polícias judiciárias é que poderão realizar buscas domiciliares, função eminentemente de investigação criminal. Como bem salientou a min. Ellen Gracie, em voto proferido na ADI 3.614/PR, que declarou a inconstitucionalidade de decreto paranaense que conferia a policiais militares funções exclusivas de delegados de polícia, entre as quais a lavratura de termo circunstanciado, “as duas polícias, civil e militar, têm atribuições, funções, muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas” na Constituição Federal e que não podem ser confundidas.
Interpretar em sentido contrário é banalizar a violação de domicílio e abrir um precedente perigoso no sentido de que, em breve, também se faça uma construção para que o Exército entre em residências a pretexto de “preservar a ordem pública”. A conclusão decorre de um raciocínio lógico: se as polícias militares, que são forças auxiliares do Exército (art. 144, § 6º, da CF), “podem” proceder a buscas domiciliares, por que não se poderia estender tal atribuição às Forças Armadas?
Nunca é demais lembrar que, no processo penal, a busca da verdade (ou da reconstrução histórica dos fatos) é limitada pelas normas e pelos princípios constitucionais. Como registra Badaró, no “processo e, principalmente, na atividade probatória, os fins são tão importantes quanto os meios”, não sendo a busca da verdade “um fim que possa ser atingido a qualquer custo” (12).
NOTAS
(1) A respeito do assunto, cf. o Editorial do Boletim do IBCCRIM de junho de 2009, que chama a atenção para os riscos das indiferenças (ministerial e judicial) que têm alimentado o que os policiais militares chamam de “ciclo completo de polícia”, famigerada tese que se pretende refutar em um próximo artigo.
(2) FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2.ed. São Paulo: RT, 2000, p. 205.
(3) Para a doutrina majoritária, porém, seria uma medida cautelar. Nesse sentido, apenas a título ilustrativo: LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal – vol. II. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 235; MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 579.
(4) PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da Busca e da Apreensão no Processo Penal. São Paulo: RT, 1999, p. 177.
(5) MACHADO, op. cit., p. 592-3. Para LIMA, op. cit., p. 245, porém, somente seria possível quando houvesse, ao menos, mandado expedido pelo delegado de polícia.
(6) É em razão deste § 5º do art. 144 da CF que a Corregedoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul orienta os juízes a apenas expedirem mandados de busca e apreensão para a polícia militar de forma excepcional e “em casos específicos, quando premente necessidade de imposição da ordem pública” (Ofícios Circulares 47/99 e 226/07), o que aconteceria, por exemplo, em situações de calamidade pública ou no caso de greve das polícias judiciárias.
(7) GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal: considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 14; PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 133.
(8) Em Porto Alegre/RS, os magistrados exigem, para deferimento de buscas domiciliares e de outras medidas cautelares (pessoais ou reais), que se esteja diante de uma investigação criminal formal, ou seja, que haja instauração prévia de inquérito policial. Estranhamente, porém, essa mesma exigência não é feita quando se está diante de representações realizadas pela polícia militar, até porque, por não possuir a atribuição para apurar crimes comuns, o tal “procedimento formal”, aqui, não existe.
(9) GIACOMOLLI, op. cit., p. 14.
(10) TJRJ, 5ª Câmara Criminal, HC 2008.059.04669, rel. Geraldo Prado, j. 11.09.2008. Disponível em: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 75, nov.-dez. 2008, p. 385-7.
(11) Como lembra LIMA, op. cit., p. 59, “no sistema brasileiro, o juiz só pode buscar a prova, ainda assim de forma supletiva, dentro do processo”, mas jamais de ofício na investigação criminal. Na mesma linha: PRADO, op. cit., 135; MACHADO, op. cit., p. 582; STF, ADI 1.570/DF, rel. Min. Mauricio Corrêa, DJ 22.10.04.
(12) BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Direito Processual Penal – tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 207.
Fábio Motta Lopes
Mestre em Direito (ULBRA).
Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA).
Professor de Direito Penal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Professor da Academia de Polícia do Rio Grande do Sul (ACADEPOL).
Delegado de Polícia/RS
Mestre em Direito (ULBRA).
Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA).
Professor de Direito Penal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Professor da Academia de Polícia do Rio Grande do Sul (ACADEPOL).
Delegado de Polícia/RS
Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009
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