domingo, 8 de novembro de 2009

Artigo: Procedimentos disciplinares: discurso garantista, práticas inquisitivas

Em tempos de direito penal e processo penal do inimigo o que esperar da Execução da Pena? Vinte e cinco anos após a vigência da Lei de Execuções Penais, pouco, muito pouco mudou na realidade carcerária. No plano formal o discurso é de defesa de direitos, entretanto, na prática tem-se a violação sistemática das garantias asseguradas às pessoas privadas da liberdade.
O ingresso na prisão traz consigo uma nova realidade. O processo de aculturação determina, obrigatoriamente, a desconsideração do preso enquanto sujeito. É na execução da pena que o sistema punitivo evidencia toda a sua seletividade, negando tratamento digno e humano. O inimigo agora está contido.
Em que pese o discurso recorrente de que a Lei de Execuções Penais é “uma das melhores do mundo”, para que ela possa atingir esse patamar é preciso constitucionalizar-se. Tarefa ingente, pois, mais do que realizar uma (re)leitura constitucional da LEP é preciso constitucionalizare humanizaros operadores jurídicos. Dentre tantos aspectos relevantes que merecem passar pelo crivo constitucional, chamo a atenção para os procedimentos disciplinares, em razão das consequências que produzem, merecem uma revisão conceitual imediata. Aqui fica evidente o abismo que separa o discurso garantista das práticas inquisitivas.
A execução da pena está pautada pela disciplina e segurança, instrumentos de controle. A LEP enumera nos artigos 50 e 52 as condutas consideradas faltas graves. Com uma leitura superficial é possível perceber que a maior parte das condutas não está de acordo com o princípio da legalidade, eis que são descritas de maneira subjetiva. São exemplos de condutas que constituem faltas graves: incitar ou participar de movimento para subverter a ordem e a disciplina; desrespeitar o funcionário, ser suspeito de pertencer ou participar de organização criminosa, quadrilha ou bando e representar alto risco para a sociedade.
Constata-se que a descrição das condutas é ampla e imprecisa. Isso não ocorre por acaso nem é resultado de descuido do legislador. Essa natureza polimorfa da conduta, em claro alinhamento com o discurso Law and order, opõe-se flagrantemente ao princípio da legalidade. Um dos corolários do referido princípio é a necessidade de descrever as condutas de maneira objetiva sem dar margem às interpretações ou ambiguidades. Desse modo, as condutas previstas como falta grave, em especial, eis que implicam em restrição maior e mais grave da liberdade do condenado, deveriam ser taxativas e interpretadas, e aplicadas de maneira restritiva.
Como dito acima, as condutas elencadas como falta grave padecem de inconstitucionalidade. Entretanto, trata-se de um fenecimento coletivo, eis que os procedimentos disciplinares instaurados para “apurar” a infração e estabelecer a respectiva punição também estão eivados de inconstitucionalidades.
As Comissões Técnicas de Classificação (registre-se, integradas e presididas pelo diretor da unidade prisional, além de um psicólogo, assistente social e dois chefes de serviço) têm dentre suas atribuições legais apurar e “julgar” as infrações disciplinares. Interessante observar que a LEP não menciona a necessidade da presença do defensor do(a) preso(a) demonstrando que a defesa não é importante. O desprezo pela defesa é tamanho que raramente o acusado é assistido pelo defensor durante a CTC e ainda pode assinar um termo prescindindo da defesa (?!).
Justifica-se a falta de defesa técnica alegando-se a possibilidade de exercer o contraditório (diferido) a posteriori. Ocorre que muitas das sanções que integram o kit punitivo da unidade não poderão ser desconstituídas em juízo, pois já foram sofridas (isolamento celular preventivo, restrição do direito de visita da família, visita íntima, banho de sol etc.).
Na sessão pró-forma o condenado ocupa o seu lugar de marginal, no sentido de estar, ainda mais, à margem do direito. Comparece sem defensor para prestar esclarecimentos ou tomar ciência da decisão, isto é, não lhe são asseguradas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Registre-se que, considerando a natureza administrativa da execução da pena, a possibilidade de produção de prova em favor do suposto transgressor vê-se prejudicada.
Importante o esclarecimento trazido por Louis Séguir(1), advogado de um tribunal da inquisição (1786), para que possamos compreender a matriz inquisitiva dos procedimentos disciplinares. Explica que não se deve aceitar que o acusado apresente uma defesa prematura, pois essa possibilidade seria fatal para os bens públicos (leia-se segurança pública) e uma garantia de impunidade. Nesse contexto, não causa espanto que ao final, invariavelmente, o indivíduo acusado pela prática da falta grave reste condenado e literalmente rebaixado.
Assim, é impossível considerar legítimas as sanções e consequências impostas a partir dos procedimentos disciplinares. A convivência e aceitação dessas inconstitucionalidades por parte dos operadores jurídicos agravam sobremaneira o cumprimento da pena. Mais do que isso, evidenciam que o caminho a ser percorrido para a constitucionalização e humanização da execução da pena é longo, muito longo...
NOTA
(1) Op. cit. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000, pag. 25.


Márcia Adriana Fernandes,Mestre em Ciências Criminais UCAM/RJ. Advogada e professora do Núcleo de Prática Jurídica IBMEC/RJ.

Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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