Apesar de ter demorado anos para chegar ao Rio de Janeiro, em pouco tempo o crack tornou-se a droga mais consumida pelo setor mais desprotegido da população: os moradores de rua. Estima-se que cerca de 90% das crianças e jovens do Rio que dormem em calçadas e vivem nas ruas são usuários da droga, uma variação mais barata da cocaína, fácil de usar e de rápida absorção. Apesar das estatísticas, ainda não há no Rio profissionais capacitados para prestar assistência a esses usuários.
"Talvez o melhor aspecto do crack no Rio, se é que há algum, é o de tirar da invisibilidade as crianças e jovens que vivem nas ruas", disse Sandra Arôca, (foto) diretora do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) Mané Garrincha, no Rio de Janeiro.
Uma das organizadoras das Oficinas de Sensibilização para Práticas de Redução de Danos realizadas em setembro em várias regiões do Rio, Sandra afirma que ainda é grande o desconhecimento sobre o tema na cidade e que a iniciativa do Ministério da Saúde responde a uma preocupação com o crack em todo o país.
As oficinas fazem parte do Plano Emergencial de Ampliação do Tratamento e Prevenção do Álcool e outras Drogas (Pead) lançado pelo ministério em julho em 108 municípios. Segundo Sandra, o Rio é prioridade: "O objetivo destas oficinas é capacitar profissionais que atuam na ponta, como as pessoas que trabalham nos ambulatórios, nas escolas, nas polícias, e que precisam saber o que significa e como lidar com o uso de álcool e drogas na população", explica.
Redução de danos como filosofia
O conceito de redução de danos surgiu na década de 80 na tentativa de frear a transmissão do vírus da Aids entre usuários de drogas injetáveis. Hoje, segundo Sandra, tudo indica que, com exceção de Porto Alegre, quase não existem usuários de cocaína injetável no Brasil, mas o conceito ganha força como forma de minimizar os danos ao indivíduo e a terceiros que vem do uso de drogas.
"Redução de danos não é uma terapia, é uma filosofia", afirma Sandra. No caso do crack, por exemplo - que é a cocaína inalável - uma estratégia de redução de danos facilita o contato com os usuários abrindo caminho para a oferta de serviços como cuidados com a saúde e com o corpo. "Ao invés de simplesmente recolher das ruas ou punir, vamos ajudar um usuário de crack a cuidar dos dentes, a fazer uma pipa e evitar o uso de latinhas que liberam substâncias tóxicas. O sucesso nestas pequenas iniciativas pode levar o usuário de crack a repensar a sua relação com o corpo, a valorizar o contato com pessoas de fora de seu círculo imediato, e eventualmente, pensar até em substituir o crack por uma droga mais leve", argumenta Sandra. Parece simples, mas a seu ver, o conceito ainda é um desafio para os cidadãos do Rio.
A dependência não é o pior sintoma
Para o neurologista José Mauro Braz de Lima (foto), diretor-médico do Hospital Escola São Francisco de Assis, no centro do Rio, e coordenador do Programa de Álcool e Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não se pensa mais a dependência como a palavra-chave para o tratamento de uso de substâncias. "Hoje já se vê de forma crítica a ideia da dependência química como uma doença, que foi uma construção do século XX. A substância não é o problema, a questão são os riscos associados ao uso dela", explica Lima.
"Pode-se fazer uma comparação entre cocaína e o crack, assim como entre a cerveja e a cachaça. A substância é a mesma, mas o uso difere, e os resultados - ou os males - diferem igualmente", afirma o professor. "Uma pessoa pode ser usuária frequente de uma substância, mas não ser dependente e, mesmo assim, causar danos à sociedade. Basta pensar em alguém que ingere álcool apenas nos fins de semana, mas fica mais propício a causar um acidente de carro, ou a agredir um membro pra família."
Para Lima, políticas públicas de sucesso seriam aquelas que previssem os problemas com base no conhecimento das substâncias, sejam elas lícitas ou ilícitas, de uso recreativo ou medicamentoso, e dos comportamentos dos usuários.
Segundo o neurologista, é um erro demonizar o álcool e as drogas, um campo ainda dominado por desconhecimento e preconceitos, mesmo entre profissionais. José Mauro Lima recomenda desmistificar o uso de substâncias ilícitas ao mesmo tempo em que deve-se ter consciência dos altos riscos do seu uso. "No sistema de saúde, temos que ter em mente que hoje não se pode formar um médico, psicólogo, assistente social ou enfermeiro que não conheçam profundamente os problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas", opina.
O encontro do crack com a criança e o jovem
"Não há mágica, o que há são dados da realidade. Quando crianças e jovens que moram nas ruas adotam o crack, como antes usavam a cola ou o tinner, é por ser de fácil acesso e barato. Eles vivem em um ambiente de grande vulnerabilidade. O sofrimento e o estresse são tão grandes, que qualquer droga serve para aliviar seu mal-estar. A droga tira o medo de morrer, a necessidade de se afirmar", afirma José Mauro Lima.
Já a psicóloga Sandra Arôca explica que, no caso do crack no Rio, a grande questão é o encontro da substância com o jovem e com a criança. "Ninguém está preocupado com o adulto que está fumando crack. Ele provavelmente já está sob o radar da polícia. A questão é essa população nova que se forma, cresce com o crack. O lugar que as droga toma na vida delas, e delas na população. Essas pessoas precisam ser ouvidas", pede. Sandra questiona também a política de remoção de moradores de rua para abrigos. "Os abrigos se tornam pontos de encontro de jovens exilados de suas comunidades, de jovens com dívidas, de pessoas que vêm de lugares dominados por facções diversas, há um risco que isso se expresse em violência", ela explica.
"Em todas as classes sociais existem motivações que vêm da subjetividade individual para consumir drogas. Há um quociente social presente: o tripé indivíduo, família, sociedade. No caso da população de rua, temos que levar em consideração o papel da sociedade. Qual vai ser a nossa política para eles?”, questiona Sandra.
Cadeiras vazias
Segundo o médico José Mauro Lima, já é um consenso que a idéia de se combater o uso de drogas através do sistema de Justiça fracassou. O neurologista acredita que o Estado tem um papel importante do qual ele tem se ausentado que é o de educar, informar, e melhorar as condições de vida da população.
E, ao que parece, as oficinas de sensibilização realizadas pelo Ministério da Justiça estão fazendo esse papel. Especialistas em redução de danos de outras áreas do Brasil vieram ao Rio, entre eles Melissa Azevedo, do projeto Mais Vida, da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, com larga experiência em redução de danos, e Marco Manso, da Associação Baiana de Redução de Danos (Abareda).
"Mas o que vimos foram muitas cadeiras vazias, o que eu tomo como um indício da rejeição ao tópico no Rio. Há trabalhos muito bons em outros estados do Brasil. Aqui, ainda estamos engatinhando, não há praticamente ninguém fazendo redução de danos. Temos muita estrada pela frente na tarefa de sensibilização", afirma Sandra Arôca.
Entre os que compareceram, Sandra destaca a presença dos assistentes sociais e da Guarda Municipal que teve participação ativa duratne as oficinas, e a do setor penitenciário. Representantes do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) e das prisões para adultos estavam presentes, inclusive com muitas questões sobre uso de drogas em presídios.
As oficinas de sensibilização são uma iniciativa da Câmara Técnica do Ministério da Saúde que reúne vários municípios do Grande Rio. O objetivo é interagir com o Pead para financiar serviços, práticas alternativas e a ampliação da rede de atendimento a usuários de álcool e drogas de forma interssetorial combinando saúde, esporte, lazer, cultura e assistência social.
Fonte: Comunidade Segura.
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