É cada dia mais recorrente depararmo-nos com decisões que, revogando uma prisão preventiva, impõem “condições” ao imputado, tais como, entrega de passaporte, restrição de locomoção, dever de informar viagens etc. No mais das vezes, tais medidas vêm decretadas a título de “poder geral de cautela”, invocando o art. 798 do CPC. Mas será que isso é legal? Para além das boas intenções dos juízes (e quem nos protege da bondade dos bons?), será que o processo penal brasileiro comporta tais medidas restritivas de direitos fundamentais por analogia?
No processo civil, explica Calamandrei(1), é reconhecido o poder geral de cautela (potere cautelare generale), confiado aos juízes, em virtude do qual eles podem, sempre, onde se manifeste a possibilidade de um dano que deriva do atraso de um procedimento principal, providenciar de modo preventivo a eliminar o perigo, utilizar a forma e o meio que considerem oportuno e apropriado ao caso. Significa dizer que o juiz cível possui amplo poder de lançar mão de medidas de cunho acautelatório, mesmo sendo atípicas as medidas, para efetivar a tutela cautelar. Tanto que o processo civil, além das medidas de antecipação da tutela, consagra um rol de medidas cautelares nominadas e a aceitação das medidas inominadas, em nome do poder geral de cautela que confere o art. 798 do CPC.
Mas isso só é possível no processo civil.
Novamente a fenomenologia do processo penal cobra respeito a sua diferença, impedindo a inadequada importação das categorias do processo civil.
No processo penal não existem medidas cautelares inominadas e tampouco possui o juiz criminal um poder geral de cautela(2).
No processo penal, forma é garantia. Logo, não há espaço para “poderes gerais”, pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal. O processo penal é um instrumento limitador do poder punitivo estatal, de modo que ele somente pode ser exercido e legitimado a partir do estrito respeito às regras do devido processo. E, nesse contexto, o Princípio da Legalidade é fundante de todas as atividades desenvolvidas, posto que o due process of law estrutura-se a partir da legalidade e emana daí seu poder.
A forma processual é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o réu. É crucial para compreensão do tema o conceito de fattispecie giuridica processuale(3), isto é, o conceito de tipicidade processual e de tipo processual, pois forma é garantia. Isso mostra, novamente, a insustentabilidade de uma teoria unitária, infelizmente tão arraigada na doutrina e jurisprudência brasileiras, pois não existe conceito similar no processo civil.
Como todas as medidas cautelares (pessoais ou patrimoniais) implicam severas restrições na esfera dos direitos fundamentais do imputado, também exigem estrita observância do princípio da legalidade e da tipicidade do ato processual por consequência. Não há a menor possibilidade de tolerar-se restrição de direitos fundamentais a partir de analogias, menos ainda com o processo civil, como é a construção dos tais “poderes gerais de cautela”.
Assevera-se, novamente, que toda e qualquer limitação de direitos fundamentais do réu somente está legitimada quando houver estrita legalidade. Recordemos Juarez Tavares(4) quando ensina que nessa questão entre liberdade individual e poder de intervenção do Estado não se pode esquecer que a “garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência”, e, noutra dimensão,”o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção”.
Com isso, destacamos: o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual. Daí porque, não se pode admitir uma ampliação, por analogia e importação de categorias do processo civil (!), do poder punitivo estatal. O exercício do poder punitivo é vinculado e legalmente delimitado, sob pena de ter-se como abusivo e ilegítimo.
Toda e qualquer medida cautelar no processo penal somente pode ser utilizada quando prevista em lei (legalidade estrita) e observados seus requisitos legais no caso concreto.
Dessarte, são absolutamente ilegais as medidas ‘acessórias’ aplicadas no momento da concessão de liberdade provisória, como por exemplo: restrição de passaporte, obrigação de apresentação periódica, restrições para viagens, dever de permanecer ou não ausentar-se da comarca etc.
Da mesma forma, v.g., o art. 310 do CPP prevê a concessão de liberdade provisória mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo. Nada mais. Eventuais acréscimos, impostos a título de poder geral de cautela ou cautelar inominada, são absolutamente ilegais.
Em suma: toda e qualquer restrição de direitos fundamentais deve estar estritamente vinculada ao modelo legal (tipo processual), não se admitindo analogias ou interpretação extensiva.
Não há, no processo penal, poder geral de cautela ou medidas cautelares inominadas ou atípicas.
Somente se admite a aplicação das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, com estrita observância dos requisitos legais.
Portanto, ainda que a pobreza morfológica do atual sistema cautelar brasileiro seja censurável e até sirva de abrigo motivacional para os juízes e tribunais invocarem o ‘poder geral de cautela’, a prática é flagrantemente ilegal e insustentável à luz do Princípio da Legalidade e do devido processo penal. Seria o mesmo que aplicar pena privativa de liberdade ou criminalizar condutas por analogia, algo impensável, por evidente.
Esclareça-se que nossa crítica ao poder geral de cautela não se esvaziará com mudanças legislativas, pois elas apenas ampliarão o leque de medidas cautelares, sem jamais poder contemplar uma “cláusula geral”, deixando ao livre arbítrio do juiz criar outras medidas além daquelas previstas em lei. Nesta linha, os Projetos de Lei 4208-C e o PL 156/2009 (Anteprojeto de CPP) instituem um modelo polimorfo, em que o juiz poderá dispor de um leque de medidas substitutivas da prisão cautelar. Mas, sublinhe-se, igualmente estará atrelado ao rol de medidas previstas em lei, não podendo “criar” outras medidas além daquelas previstas no ordenamento.
Em suma, as medidas cautelares pessoais são excepcionais e situacionais, além, é claro, de provisórias ou temporárias (curta duração). Uma vez desaparecido o suporte fático legitimador (fumus commissi delicti ou periculum libertatis, conforme o caso), a prisão cautelar deve ser pura e simplesmente revogada, sem qualquer outra restrição que vá além daquelas expressamente consagradas na legislação processual penal.
NOTAS
(1) CALAMANDREI, Piero. Introduzione allo Studio Sistematico dei Provedimenti Cautelari. Pádova, 1936, p. 47.
(2) Sobre esse tema e também uma análise crítica das medidas cautelares pessoais, recomendamos a leitura de nossa obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, volumes 1 e 2, publicado pela editora Lumen Juris.
(3) Conceito que foi bem tratado por Giovanni Conso, ao longo da obra Il Concetto e le Specie D’Invalidità – Introduzione alla teoria dei vizi degli ati processali penali. Milão, Dott. A. Giuffrè, 1972.
(4) TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, p. 162.
Aury Lopes Jr.,Doutor em Direito Processual Penal. Professor nos cursos de Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUCRS. Advogado Criminalista.
LOPES JR., Aury. A (in)existência de poder geral de cautela no processo penal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 08-09, out., 2009.
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