Mais uma vez foi alterado o Código Penal brasileiro no tocante aos então denominados crimes contra os costumes. Alterações nesta temática, originalmente desenhada em 1940, são necessárias. Dúvidas inexistem acerca da umbilical vinculação da originária tipificação com aspectos morais de uma sociedade não mais existente. A sucessão legislativa, neste aspecto, gradativamente tem o condão de eliminar condutas que não mais justificavam a repressão penal. Exemplos retumbantes eram consubstanciados pela obsoleta criminalização da sedução ou das figuras de rapto, as quais já haviam sido previamente excluídas pela Lei 11.106, de 28 de março de 2005.
Nesse sentido, bem caminhou a mais nova legislação (Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009) ao, inclusive, alterar a própria denominação crimes contra os costumes, substituindo-a por crimes contra a dignidade sexual. Inegável que a antiga nomenclatura apontava para um aspecto cultural-naturalista, na medida em que o pudor, fruto do gradativo desenvolvimento da moral refletida nos costumes, contrapunha-se ao fervor sexual primitivo, próprio do ser humano atávico e associal, o qual, por isso mesmo, deveria ser contido pela norma. A substituição da alcunha significa - ao que parece - a quebra de um paradigma e, ao mesmo tempo, uma visão mais temporal e laica da questão, privilegiando e protegendo, enfim, a autodeterminação sexual. Aliás, esta tendência há muito já poderia ter sido consolidada, tendo em vista que desarrazoado é “aceitar os preceitos da moralidade burguesa judaico-cristã como sendo referencial para a definição do bem jurídico protegido em termos sexuais. Considerando-se que as noções de liberdade se autocomplementam nas de autodeterminação sexual, tem-se, verdadeiramente como objeto de tutela, a liberdade de autodeterminação sexual”(1). Por estas e outras razões foi a legislação penal sexual alterada ao longo dos tempos, no que foi seguida, em diferenciado ritmo, pelo traçado da jurisprudência. Esta última, a propósito, dada sua proximidade da casuística, sempre repercutiu mais celeremente a dinâmica social na aplicação da legislação criminal. Aliás, mais fácil a modificação de entendimentos judiciais, revalidados diariamente na dinâmica decisória, do que textos submetidos aos procedimentos de aprovação bicameral e sujeitos aos ânimos políticos das circunstâncias.
Entretanto, dada a limitação jurisdicional (princípio da legalidade-segurança jurídica), um fator foi sempre peculiarmente propulsor da renovação jurisprudencial em termos penais: a utilização legislativa de elementos tidos como normativos, ou seja, sujeitos à interpretação e, em consequência, da modificação do conteúdo material que lhes são subjacentes. Tais elementos normativos, que se usados em larga escala podem significar um abalo à garantia do cidadão, fomentam, se usados com ponderação, adequações da frieza do texto estável da lei aos sons da cultura, aos ajustes do tempo, diminuindo a cisão entre a letra dos julgados e o sentir dos tempos e das relações intersubjetivas.
Definidos inicialmente pelos precursores neokantianos, os elementos normativos, para ganharem sentido, exigem do intérprete a percepção dos “pressupostos lógicos de uma norma, pressupõem sistemas de normas jurídicas ou sociais” (2). Por tudo isso, eles inexistem fora do mundo humano. Ao contrário, obrigam-nos à reflexão. Trazem o mundo humano ao direito e, simultaneamente, lapidam o direito para este mesmo universo humanizado. Não é à toa, portanto, a constante conexão realizada entre elementos normativos e as tarefas de complementação hermenêutica.
O problema, contudo, é que a recente lei, ao alterar a redação e a sistemática dos crimes sexuais, cometeu, sem prejuízo de outros, ao menos um grande equívoco. Mais um de nosso trôpego legislador. A antiga legislação estabelecia, para além do estupro e do atentado violento ao pudor, a presunção de violência nos casos da vitimização de menor de 14 anos. A redação de antanho, insculpida no artigo 224, alínea a, articulava, como afirmado, uma noção de presunção, cuja história interpretativa (e jurisprudencial) evoluiu da asséptica aplicação à reflexão casuística. Quando o ambiente de operatividade jurídica significa um país de dimensões continentais, ridiculamente desigual em termos econômicos e de vastíssima heterodoxia cultural, parece consequente e natural que a presunção abandone gradativamente sua lógica jurídica absoluta e alcance uma dimensão especificada, de avaliação pontual ou, como preferem os juristas, juris tantum. Assim sendo, o senso comum afasta-se da premissa formal e atinge a maturidade da concretude. Em suma, o caso da jovem de 13 anos que mantém relações sexuais com o namorado de 18 anos fica muito mais próximo da indiferença penal do que da repressão adstrita ao crime hediondo.
Tudo isso porque o termo presumir, embora não contido nos tipos elementares e sim na norma extensiva antes estabelecida, assumia dimensão normativa, auferível sempre por meio da análise do caso concreto. Esta perspectiva interpretativa, aliás, desviava da severidade penal casos de notória falta de merecimento de pena. O juízo político-criminal encontrava no termo um foco de escape dogmático, de modo com que a sensibilidade do julgador aparecia no discurso jurídico pela redefinição dos limites da presunção. No exemplo dos namorados, ao invés de simplesmente afirmar a naturalidade da relação sexual entre jovens, articulava-se a exclusão da presunção de violência. A terminologia jurídica, assim, suavizava uma coerente opção axiológica subjacente.
A recente lei caminha ao revés. Retirado o elemento normativo, furtada da mão do intérprete foi a avaliação da presunção da violência, do constrangimento. Mais do que isso, esvaiu-se o mecanismo de afloramento valorativo por instrumentos jurídico dogmáticos. Preceitua com objetividade cruel e pena mínima de gritante desproporção, sob o nomen juris de estupro de vulnerável, o artigo 217-A: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. A ressalva do discernimento, por sua vez, é feito apenas no § 1º, exclusivo aos casos de enfermidade ou doença mental.
A aplicação do dispositivo, da forma como se coloca, refuta a reflexão jurisdicional. A proibição da conduta deixa de derivar da existência de violência, presumida ou real, mas apega-se à própria essência de um bem jurídico de contorno sugestivamente moral. Reafirma o legislador, sem mais abrir brechas interpretativas, que os menores de 14 anos não podem mais, sob hipótese alguma, relacionarem-se sexualmente. Por mais que com isso se possa concordar, mais adequado parece que a instância familiar e educativa é muito mais eficiente que a instância penal. O Estado não deve assumir pautas meramente paternalistas, mas garantir com fervor a autodeterminação, a liberdade sexual dos sujeitos na conformidade de suas reais capacidades de discernimento.
Muitas questões devem ser verticalizadas, aprofundadas, mas um exemplo limite serve à reflexão. Dois adolescentes de 13 anos relacionam-se sexualmente. Nessa hipótese, quis o legislador, inconscientemente ou não, consagrar a enigmática figura do estupro bilateral. Afinal, se aplicado literalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 103) e seu microssistema penal, ato infracional cometerão ambos os adolescentes, um contra o outro. A violência é indiferente. A autodeterminação, relativizada nesta idade, nada importa. O moralismo, por via transversa, é aplaudido pelo legislador de 1940.
NOTAS
(1) SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 383.
(2) ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general: fundamentos, la estructura de la teoría del delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 2003, p. 307.
Alamiro Velludo Salvador Netto, Professor Doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado Criminalista.
NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Estupro bilateral: um exemplo limite. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 8-9, set. 2009.
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