quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Artigo: Algumas (re)descrições sobre a verdade no processo penal*

Ao figurarmos em terreno de grande delicadeza e de enormes dimensões filosófico-jurídicas - desde já, assumidas as eventuais escusas por digressões apressadas ao se lidar com mastodontes filosóficos - arriscamos poder avançar mais na discussão sobre verdade, prova e processo penal do que considerar que há no processo penal uma (re)construção-cognição de um dado histórico (por óbvio, imperfeito e fractal) desde uma hipótese criminal acusatória. O processo penal - instrumento ínsito ao estado constitucional de garantia pública da inocência (Ferrajoli) - emerge como um manancial para o convencimento do magistrado, serve a um modo de elaboração de um estado psíquico que faça o juiz ao final aderir à prova limitadamente produzida. Resultado do princípio da necessidade, liga-se onticamente ao trinônio delito-pena-processo (Gomez Orbaneja), permite um diferimento adequado à punição “certa” como obstáculo às pulsões de evidência contidas de imediato numa hipótese acusatória, na mesma medida em que se traduz num estado de pena sui generis.
O que representa, assim, alguma presença/construção de verdade na estrutura do processo penal? Vincular-se-ia esta estrutura necessariamente a um ideário inquisitivo? Poderemos escapar a latere de elaborações como verdade real, verdade processual, certeza jurídica ou outras grelhas substancialistas de igual valor? Se a decisão judicial precisa para se tornar válida também fundar-se em algo, ter seu lastro de fundamentação em alguma representação que chegue a nós com algum sentido de realidade desde um percurso probatório legítimo, pouco importará a esta dimensão termos isso por nome de verdade ou não. Fato é que sempre haverá um determinado manancial linguístico em jogo (retórico-probatório) – batize-se canonicamente do nome que se quiser – e que não restará (vazio) este lugar alijado do conhecimento processual – gostemos ou não disso. Com a mesma precisão, ingenuidade seria pensar que não há um certa vontade de verdade nisto tudo, todavia que não se fique refém desta situação, muito menos que, diante disto, estejamos automaticamente relegitimando uma nova idolatria pela verdade e sua colheita “tortuosa”.
Insofismável o ardil substancialista inquisitório (Cordero) que forjou a dita busca da verdade real como função primeva do processo penal. Quanto mais substancial e freneticamente buscada, custe o que custar, cheia de interesse inquisitorialmente público, pior para todos. Nobreza de propósitos de uma cultura inquisitorial total, absoluta, excessivamente posta sob a confusão do real com o imaginário, respaldada largamente pela doutrina finamente atualizada (Miranda Coutinho).
Pulando para outro oásis, o da verdade processual/formal, por este viés, cientes da inalcançabilidade da Verdade “toda” pela parafernália jurídica, estaríamos predestinados ao menos a nos aproximar dela. “Verdade aproximativa”, limitada por variáveis do jogo democrático, amputada não apenas pelo que sabemos, mas pelo podemos saber (Ferrajoli). Neste ponto, mesmo assim, o processo penal não se desloca do “telos” ideal de todo substancialismo to­ta­li­zador. Na mesma senda, aqueles que irão enveredar pelas certezas jurídicas (Carnelutti): se a verdade está no todo, ele é demasiado para nós, ela apenas poderá ser Uma (o outro nome de Deus). Seguimos no mesmo de acordes essencialistas: Ela está lá, apenas para nós inapreensível. Se o problema é a verdade, vamos adiante e afirmemos que o problema é o trauma que sua inflação valorativa acarreta, melhor, as propriedades que ela desencadeia nesta posição central hipertrofiada.
Certo que o processo penal não deve se orientar para a busca, pela determinação da verdade, mas que existem elementos trazidos com força de produzir uma realidade, senão ao futuro ao menos, não há como negar. Frisando o processo penal como dispositivo de garantias, isto não permite esquecer que se resolve algo ali com poder verdadeiramente de acarretar uma condenação judicial. Não que deva haver um nexo instrumental necessário entre prova e verdade dos fatos, poderá haver ou não indiferentemente. Dizer de outra parte, peremptoriamente, que nunca há relação é marcar, por natural, um absolutismo às avessas, e dotar a resposta num patamar superior de uma nova verdade, capaz de respaldar e servir de suposto novo parâmetro.
Será que esta premência (medo, quiçá) de deixar órfão o processo penal da noção de verdade da prova não se dá pelo tamanho acoplamento ao puritano essencialismo metafísico que ela tem sido vista? É perverso assumir o processo penal como um instrumento idôneo para alcançar a verdade – em conta a obrigatoriedade de lastro probatório mínimo de condenação oriunda do contraditório (Fazzalari) e não se perdendo que ele é cortado pelo simbólico – da mesma forma, mesmo a verdade não sendo um elemento fundante do processo penal, “presente” ela está de alguma forma ao menos “com força de” verdade. Estamos neste viés a lidar com planos materiais em que a decisão judicial vai trabalhar com a força persuasiva da prova (retórica probatória) elegendo significados, recortando-se significantes válidos (Morais da Rosa), quase que artesanalmente no contexto ritual.
Juiz não se depara em algum momento tal como um historiador, nem pelo fato de que estão ambos a organizar, filtrar e determinar dados – atividade que qualquer vivente o faz desde sempre na sua existência. Não o é porque fundamentalmente se o fosse estaria próximo de posições esquizo­pa­ra­nói­cas (Klein) de comprovação de estados mentais condizentes à tese acusatória. Para além da delimitação da pretensão acusatória (Lopes Jr.), há regras de legalidade (retórica, sim, e inundada pela linguagem) que, por mais flexíveis, restringem o seu arco num universo muito mais limitado que a tarefa ampla do historiador.
Aceitar a verdade como um mito no processo penal, o que há de problema nisto? O impasse não estará em saber o que isto significa enquanto dimensão constitutiva do mundo e possibilitadora de toda uma rede de crenças e ações que normalmente nos movimentamos? Não esqueçamos que o próprio mito, um traço presente da ausência (Derrida), mas que funda, é o que permite a própria linguagem de ser e o próprio desencadear de seus significantes (Lacan)(1). Se a sentença penal assume uma relação íntima com um ato de convencimento psicológico do juiz (Aragoneses Alonso), não poderá se aduzir daí que nela transpareça um reflexo direto de ato de crença (Lopes Jr.). Apresentará, mas só em algum grau, uma inegável dose elementar de crença no seu ato, sim, no instante da decisão em que o magistrado deixa de aderir à prova. Mas há a prova com todo seu vigor em primazia, dotada da função de constranger, via processo penal, a evidência – de maneira persuasiva contra a performance desta – que constitui a acusação nos casos criminais (Cunha Martins). Apenas se poderia auferir a sentença como um mero ato de crença, somente em alguma dimensão, no momento em que o juiz abandona a “verdade da prova” e adere ao assentimento necessário ao decidir (Gil). Se, na valoração da prova, a variável da crença é constitutiva, não podemos nos equivocar em colocá-la em par de equivalência com a sentença. Daí outro universo completamente diferente se descortina e de devido tratamento em momento adequado.
Pouco avançaremos se, depois de corretamente não fundarmos a busca pela verdade no processo penal como sua função primeva, deixarmos aos desvarios do poder punitivo alguma verdade que nele se produza para (i)legitimamente resguardar a decisão judicial. Estamos de acordo, obviamente, ao argumento que percebe a legitimidade da decisão judicial e do próprio processo penal em si na observância estrita do devido processo legal e não na busca desenfreada por algum excesso de verdade, mas o salto efetivo – de forma incipiente nestas poucas linhas – pode se dar quando alinharmos alguma alternativa no caminho da deflação da verdade (Rorty). Negá-la por certo não é o trato que melhor lhe responde: não há verdade, dirá o cético absoluto, reconduzindo o seu absoluto em outros termos, retomando sua verdadeira essência.
Em algum grau, nas acepções de verdade no processo penal em voga, o quadro invariavelmente é posto desde um horizonte de verdades essenciais, substanciais de conteúdo último, seja absoluta ou aproximativa, presente ou contingencial. Pouco faz questão aos objetivos a que ela deve se prestar. Aceitando-se a possibilidade de se construir melhores versões para um processo penal, arriscaríamos propor uma virada na direção de produção da verdade em que a linguagem toma papel central(2).
Descartemos o ceticismo e seu correlato fundacionismo. Falemos em jogos de linguagem (Wittgenstein) que nada apontam para um verdade ou uma natureza das coisas. Isto nos ajudaria a ver quais os propósitos que temos ao falar de verdade no processo penal. A verdade, modestamente, não pode ser estabelecida como uma pura relação de discurso com o mundo, representação, mas consolidada desde alguma forma específica de apreendê-lo. Linguagem não como mera representação e muito menos dotada de onto­lo­gia. No valor concedido à linguagem, as palavras não vestem o que existe, não carrega em si as coisas, o verdadeiro não é descrição ou espelho do mundo (Rorty). O conhecimento, prenhe daquilo que pode contribuir a intervir na realidade e conduzir nossas ações, produz crenças – que não implica correspondência com a realidade – mas que pode ser a melhor maneira de atingir os objetivos que nos propomos. Neste panorama, analogamente, não podemos deixar de afirmar um anties­sen­cialismo, onde não há razão para falar em essências e sim descrições, que salientam sempre um aspecto de uma coisa de acordo com seus propósitos. Redescrevendo o familiar em termos não familiares abrimos o espaço para atuarmos de acordo com nossos propósitos: o resguardo da democracia substancial (Ferrajoli).
Restará outro horizonte enorme ao invés do adolescente “amar, brigar, separar e reconci­liar” com a verdade. Tomada uma postura madura que reponha o jogo desde um viés não metafísico, pode-se colocar em questão para que serve a verdade neste local que é o processo penal. Indagar-se se as descrições de verdade que dispomos no processo penal são adequadas para atender os fins constitucionais em tela (resguardo máximo das garantias fundamentais do acusado posto hipossufi­cien­te­men­te na estrutura processual penal). Se pretendemos investir positivamente neste sentido, então, nada temos a temer e sim tê-la como aliada nesta constante redefinição de universos de sentido. Do oposto, enfim, será válido deixarmos “ao vazio” o “posto da verdade” para o preenchimento pelos reacionários de plantão, sedentos pela palavra de ordem do déspota, ou devemos mergulhar no debate democrático, não por seu conteúdo metafísico (substancialista), mas nos perguntando – alheios a sua correlação estrita com a realidade – a qual propósito nos dispomos a vê-la funcionar?
NOTAS
* O presente trabalho é parte da exposição apresentada em Encontro do CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX) da Universidade de Coimbra, em janeiro de 2009, por isso a opção de retratá-lo em sua oralidade, fazendo-se apenas referência às fontes entre parênteses.
(1) Em nada se está a falar da verdade como revelação sagrada ou algo próximo, muito pelo contrário, esta tentativa inicial de diálogo vai em outro sentido, afeiçoando-se à liberdade ética (Timm de Souza) em desfavor do excesso ontológico do poder punitivo (Zaffaroni).
(2) Noutro local, poderemos aproximar esta noção do abandono de uma pura epistemologia, atenta à insuficiência da ontologia e aberta ao primado da ética da alteridade (Levinas). No momento, nosso espaço e fôlego são incompetentes para isto.

Augusto Jobim do Amaral
Advogado.
Especialista e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS);
Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos (COIMBRA).
Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da ULBRA e da ESADE


AMARAL, Augusto Jobim do. Algumas (re)descrições sobre a verdade no processo penal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 4-6, set. 2009.

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