Lançada em 5 de agosto, no Viva Rio, a pesquisa "Tráfico e Constituição, um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de drogas" foi feita por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Brasília (UnB) entre março de 2008 e julho de 2009, por encomenda do MJ e com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Os condenados por tráfico de drogas representam o segundo contingente do sistema carcerário brasileiro - quase 70 mil pessoas -, atrás apenas do crime de roubo qualificado, com 79 mil presos. A pesquisa mostra que estes traficantes são, em sua maioria, réus primários, foram presos sozinhos, com pouca quantidade de drogas e não têm associação com o crime organizado. Mesmo assim, cumprem pena privativa de liberdade, contribuindo para a superlotação das cadeias.
O estudo é mais um marco no cenário de queda livre do paradigma da repressão sustentado pela ONU em 1998 na declaração “Um mundo sem drogas – podemos construí-lo”, que defendia a erradicação das drogas do planeta em uma década. O fracasso dessa política mundial evidenciado dez anos depois em estudos nas mais diversas áreas abre caminho para abordagens diferentes, como a descriminalização, a legalização e o foco na redução de danos.
Para a coordenadora da pesquisa, Luciana Boiteux, professora da Faculdade de Direito da UFRJ, é preciso buscar alternativas menos penais e mais humanas e realistas para as drogas. "Quando se pensa em controle, se pensa em controle penal - a solução é repressão, polícia e justiça", diz. A pesquisadora considera o sistema penal "desumano, irracional e ineficiente" e defende penas alternativas para os pequenos vendedores de drogas.
Luciana acredita que o número de presos por tráfico continuará aumentando se a política de drogas não mudar. Para ela, a nova lei, de 2006, apesar de avanços como a despenalização do usuário, a quem não cabe mais pena de prisão, não distingue objetivamente usuário e traficante, e nem o pequeno, o médio e o grande traficante. Outro ponto fraco da lei, segundo Luciana, é equiparar o tráfico a crime hediondo.
De acordo com a pesquisadora, não são os grandes traficantes, mas os pequenos – os varejistas – que mais são presos, inclusive consumidores que comercializam a droga para bancar o próprio uso.
"Os juízes acham que tipificam, mas quem faz isso inicialmente é a polícia. Os juizes tendem a manter a tipificação dada pela polícia, o que define se o caso vai para juizado especial ou vara criminal, para a pessoa ficar presa", explica. Segundo Luciana, o modelo brasileiro é um "proibicionismo moderado".
A pesquisa estudou 750 sentenças e acórdãos entre 7 de outubro de 2006, após o lançamento da lei, e 31 de maio de 2008. No Rio, 66,4% dos condenados eram primários, 91,9% foram presos em flagrante, 60,8% foram presos sozinhos e 65,4% não foram enquadrados por associação ou quadrilha. Apenas 15% são condenados por tráfico e associação. "No Rio, a polícia prende traficantes casualmente, sem investigação. A Justiça se ocupa de indivíduos isolados", afirma.
Para Luciana, a política de drogas deve ser mais humanista e focar na redução de danos, com políticas públicas de atendimento e prevenção. "É necessário pensar individualmente cada droga. O direito penal só deve ser usado em último caso. É uma questão de saúde pública", conclui.
Participante da mesa, o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abromovay (foto), ressaltou a importância de se debater com a sociedade civil. "O tema é permeado por preconceitos, ideologizado no pior sentido. É uma irracionalidade que drogas perigosas sejam lícitas enquanto outras menos perigosas são ilícitas. Ao se tirar a racionalidade do tema, tira-se a democracia, porque não se pode convencer e nem ser convencido", disse. Para ele, "um mundo livre de drogas" é uma premissa de uma política que só pode terminar em fracasso.
Abramovay explicou que o MJ, em acordo de cooperação técnica com o Pnud, criou o projeto Pensando Direito, que financia, através de editais, pesquisas sobre leis com vistas a corrigir o que não funciona. "O Ministério da Justiça quer que o debate deixe o campo do preconceito e passe para o campo argumentativo, o campo democrático, para se ter uma escolha real da sociedade, e não um tabu, para desenvolver políticas públicas racionais", garantiu.
Rubem César Fernandes, diretor-executivo do Viva Rio, disse que a política desastrada de repressão às drogas não produziu os resultados esperados e ainda causou efeitos secundários imprevistos, como o fortalecimento do crime organizado.
"Houve uma transformação morfológica de cartéis, que descentralizaram-se em pequenas redes de distribuição criminais, num efeito metástase que atingiu países onde nem havia o problema, como a Argentina", exemplifica. Para ele, o momento é de busca de alternativas para a atual "situação esquizofrênica", em que há mais liberdade ao consumo mas também mais repressão à produção.
Já o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) disse que a pesquisa oferece uma reflexão importante à sociedade e insumos para uma nova legislação. Teixeira sugere três temas a serem abordados: mudar a figura penal do tráfico para penas alternativas, adotando o princípio da racionalidade e da seletividade, que leva em conta fatores como a primariedade, o tipo de droga e a utilização de arma de fogo; investir em ações de redução de danos, como o fornecimento de drogas substitutas para o tratamento e para cortar o vínculo do usuário com o tráfico; e dar tratamento diferenciado para a maconha, à exemplo da experiência portuguesa de descriminalização.
O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, diretor-executivo da ONG Psicotrópicus, pediu o fim da política de guerra às drogas, com a desvinculação da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), hoje comandada por um general, da área de Segurança Nacional. "Se o objetivo fosse a paz, a Senad deveria ter à frente um civil, de perfil humanista, para corrigir a criminalização de algumas drogas", opinou.
Legalização para menos riscos e mais benefícios
Convidado especial ao evento, o americano Ethan Nadelmann, diretor-presidente da organização Drug Policy Alliance, lembrou que as leis antidrogas são criações recentes construídas não com justiça, mas com ignorância e preconceito.
"Nunca houve uma sociedade sem drogas. Sempre existem drogas para alterar o estado de consciência, fazer se sentir bem ou te apresentar a deus. Hoje há antidepressivos, drogas para hiperativos, estimulantes da libido. O que vai determinar se a droga será ilegal ou não é quem a utiliza. Se o Viagra fosse usado por pretos pobres seria proibido, mas é usado pelas pessoas mais poderosas da sociedade. A fatalidade do Viagra é maior do que a da maconha", disse.
Nadelmann comparou a droga ao automóvel: pode matar, mas a gente não vive sem. A solução para ambos os casos seria aprender a usar para diminuir os riscos e aumentar os benefícios. Para o especialista, o desafio é descobrir como viver com as drogas de forma que façam o menor mal possível e o maior bem.
"Precisamos de uma abordagem mais sensata e de leis com bases científicas", defendeu. Ele reconhece, entretanto, que o público ainda não entendeu que o problema é a proibição e a criminalização.
Segundo Nadelmann, a melhor forma de combater o mercado ilegal é competir com ele com fontes legais. Por isso, defende o fim da proibição da posse, a compra de forma legal e a oferta de assistência ao usuário, em caso de abuso.
A seu ver, o Brasil está na liderança de mudanças globais na visão sobre as drogas. Ele afirma que na Europa a abordagem da questão já é de saúde pública, e que mesmo nos Estados Unidos, tradicionalmente opressor, está começando um movimento nessa nova direção. Ele lembrou que na Califórnia as pessoas têm crachás que as identificam como usuários e permitem que comprem maconha legalmente nas cafeterias.
Ao final do evento, foi lançado o novo site da Psicotropicus.
Fonte: Comunidade Segura. 12/08/2009.
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