Atuante no Estado de Goiás, Alexandre P. Lourenço, Delegado de Polícia Civil, está sendo submetido a procedimento administrativo em trâmite perante a Gerência de Correições e Disciplina da Polícia Civil, eis que, segundo manifestação ministerial, teria extrapolado sua função, perfazendo a conduta insculpida no artigo 328 do Código Penal, ao reconhecer fatos trazidos ao seu conhecimento como sendo atípico e não merecedor de custódia penal.
O episódio levado à apreciação policial cingiu-se a condução de indivíduo que tentara subtrair uma garrafa de bebida alcoólica no valor aproximado de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) do estabelecimento em que laborava. Considerando o ínfimo valor da res furtiva,entendeu estar aquela autoridade policial diante de um crime impossível, justificando, assim, a aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela, razão pela qual deixou de efetuar a prisão em flagrante do conduzido.
Irresignado com tal postura, foi asseverado pelo parquet que o Delegado de Polícia “arvorou-se no poder de relaxar a prisão do indiciado, sob o fundamento de atipicidade da conduta pelo reconhecimento do princípio da insignificância”, e, mais adiante, que “a autoridade policial investiu-se ilegitimamente na função privativa de juiz de direito e executou ilegitimamente um ato de ofício, qual seja o relamento [sic] da prisão em flagrante do indiciado”.
Aberta oportunidade de resposta no procedimento deflagrado por iniciativa ministerial, foi apresentada manifestação pela autoridade policial que, em verdade, figura como verdadeira aula de direitos fundamentais às autoridades superiores, capaz de fomentar discussões como a do constante anseio por uma persecução penal célere e imprescindível e a contínua persistência em movimentar desnecessariamente o aparato estatal, contribuindo para sua morosidade e ineficácia.
Por fim, oportuno ressaltar que até o presente momento o constrangimento que vem sofrendo o Delegado de Polícia não foi cessado.
Luciano Anderson de Souza - Coordenador-chefe de Internet do IBCCRIM
Regina Cirino Alves Ferreira - Coordenadora-adjunta de Internet do IBCCRIM
Veja a resposta do Delegado de Polícia, abaixo.
Razões de defesa:
Presente procedimento instaurado pelo Ministério Público estadual a pedido da 27ª Promotoria de Justiça da Comarca de Goiânia, com a finalidade de ver apurada a conduta deste Delegado de Polícia relacionada a ato praticado em sede de Inquérito Policial n. 228/09 (protocolo judicial 200901853385), onde, em rápidas linhas aduz que na lavratura de procedimento – auto de prisão em flagrante delito – onde o imputado teria sido surpreendido tentando subtrair uma garrafa de bebidas do estabelecimento onde trabalhava (Supermercado B.), fato que teria ocorrido no momento de sua saída, em revista de rotina realizada pela vítima, oportunidade em esta autoridade, em que pese ter lavrado o procedimento afeto, “arvorou-se no poder de relaxar a prisão do indiciado, sob o fundamento de atipicidade da conduta pelo reconhecimento do princípio da insignificância”, aduzindo que diante de tal, “a autoridade policial investiu-se ilegitimamente na função privativa de juiz de direito e executou ilegitimamente um ato de ofício, qual seja o relamento (sic) da prisão em flagrante do indiciado”.
Com tal justificativa entendeu ter esta autoridade extrapolado suas atribuições, imiscuindo-se em seara pública alheia, razão pela qual teria incidido na prática do delito inscrito no artigo 328 do Código Penal – usurpação de função pública.
Autos remetidos à Gerência de Correições e Disciplina da Polícia Civil, vindo-me para justificação, que se segue:
1. Dos fatos contidos no Inquérito Policial:
O Inquérito Policial instaurado decorreu de autuação em flagrante delito de paciente surpreendido na tentativa de furto de uma garrafa de bebida alcoólica, avaliada em R$ 25,90 (vinte e cinco reais e noventa centavos) quando, encerrado seu horário de trabalho, tentou deixar o estabelecimento comercial da vítima.
Para o alcance da dimensão da atuação policial, importante a observação integral dos fatos, tal como se deram, notadamente em relação à específica dinâmica empreendida para a execução da prisão realizada diretamente pelos funcionários da vítima, o que, aliás, ficou didaticamente detalhado no despacho final desta autoridade ao final da autuação, embora não observado pelo parquet.
Detalhando a autuação materializada no Inquérito Policial, observamos que:
a. Pelos policiais militares o ato de detenção não foi acompanhado, uma vez que foram chamados ao estabelecimento da vítima somente quando já ocorrida a detenção, em toda a sua dinâmica, pelos empregados responsáveis pelo ato constritivo;
b. Na oitiva de D.C.S., funcionário da vítima, exercendo o cargo de “prevenção de perdas”, afirmou que “há aproximadamente dois meses o depoente já vinha monitorando o conduzido e outros colegas de trabalho com a suspeita da prática de furto pelos mesmos, e no dia de hoje, como nos outros dias, ao vê-lo subir para o vestiário, resolveu monitorá-lo mais de perto e assumiu diretamente a revista para confirmar a suspeita do furto que já vinham monitorando, uma vez que a revista realizada por si e pelo colega Miguel já é mais detalhista e já se dirigia exatamente ao alcance de fatos como o presente ocorrido”, via da qual terminaram por impedir a consumação do delito por parte do autuado.
c. Ouvido M.O.N., também funcionário da vítima e testemunha ocular do fato delitivo tentado, confirmou, em geral, o depoimento de seu colega (D.C.S.), asseverando que “há 02 meses vem monitorando o conduzido, devido o mesmo apresentar um comportamento inadequado dentro da empresa e pelas amizades que mantinha no local, valendo destacar que 04 dos seus amigos foram pegos em situações similares há aproximadamente dez dias passados, tendo sido todos afastados da empresa; QUE desde então o monitoramento sobre o conduzido passou a ser mais próximo, ficando o depoente e o D.C.S. especialmente dispostos à detecção de um desvio por parte do conduzido, fato que perceberam que ocorreria hoje quando o viram se dirigir ao vestiário de forma suspeita, e terminou se confirmando quando ao retornar e ser revistado por Odair foi surpreendido com a “res furtiva”.” Informou que a res furtiva encontra-se avaliada em R$ 25,90 (vinte e cinco reais e noventa centavos.
d. No mesmo sentido o depoimento de L.S.M., gerente e preposto da vítima, que embora não tenha presenciado o ato diretamente, asseverou “QUE há mais ou menos três semanas a monitoração em cima do conduzido vem sendo constante devido ter pegos há alguns dias uns amigos do conduzido praticando furtos contra a empresa (...) os quais disseram que o conduzido também tinha o mesmo comportamento”.
e. Por fim, em função de tais relatos, proferiu-se o despacho n. 163/2009 onde, em resumo, percebeu-se a materialização de hipótese de crime impossível (artigo 17 do CP) e a hipótese de aplicação do princípio da bagatela (instrumento que afasta, naturalmente, a tipicidade do fato, vale dizer, impõe reconhecer sua atipicidade), conforme muito bem articulado no despacho identificado, embora não percebido pelo insigne promotor insurgente.
Em decorrência de referido entendimento, esta autoridade a quem caberia determinar a prisão em flagrante (o mais), terminou por deixar de executá-la (o menos), ao contrário de relaxá-la (conforme insiste em afirmar o parquet, embora materialmente se confundam), por entender, pelos dois motivos articulados, incabível à hipótese, mantendo-se, contudo, a lavratura do procedimento como forma de viabilizar entendimento contrário e, por conseguinte, a articulação de possível denúncia por parte do Ministério Público (caso ocorresse).
Em ofício encaminhado com a finalidade de comunicação da autuação informou-se a soltura pelas razões acima articuladas, embora autuado o procedimento.
2. Do direito afeto à atuação da autoridade:
2.1 Da questão processual envolvida – o processo penal enquanto instrumento, apenas.
Em tempos de constituição cidadã, e transcorridos mais de vinte anos de sua vigência, obrigatória sua apropriação processual penal, notadamente naquele procedimento que é popularmente tratado como a mais tirana expressão do Estado, como é o caso do Inquérito Policial, levantando sérias e profundas contradições em um Estado que se arvora DEMOCRÁTICO e de DIREITO.
Inegável a função do processo penal voltada a servir o Direito Penal em todas as suas funções, seja como pressuposto de aplicação de pena, seja como de proteção, com relação aos indivíduos, por meio do princípio da reserva legal.
E como instrumento, importante reconhecer que para a realização do Direito penal realiza dupla função, tornando viável a aplicação da pena, e como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, neste, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado, servindo, pois, como instrumento de limitação da atividade estatal, “estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como presunção de inocência, contraditório, defesa, etc.”, conforme muito bem nos ensina o professor Aury Lopes Júnior, in Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Lúmen Júris Editora, 4ª edição, 2006.
Não há como negar-se à Constituição da República condição de superioridade e influência acerca de todo o arcabouço normativo pátrio, bem assim seu caráter garantista, o que se expressa e se determina a partir de suas cláusulas fundantes que, apontados desde o artigo primeiro determina especial observância à cidadania e à dignidade da pessoa humana. Tais fundamentos propiciam o ingresso em seu conteúdo e determinam o balizamento de todos os preceitos que lhe sucedem.
Ainda sobre a instrumentalidade do processo, continua o professor Aury Lopes:
“... não devem existir pudores em afirmar que o processo é um instrumento (o problema é definir o conteúdo dessa instrumentalidade, ou a serviço de quê(em) ela está) e que essa é a razão básica de sua existência. Ademais, o Direito Penal careceria por completo de eficácia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso, de modo que a relação e interação entre Direito e Processo é patente.
Da mesma forma, um processo penal que não possa gerar pena alguma é inconcebível. Por vezes, nos deparamos com processos penais que são apenas geradores de estigmatização e degradação, atuando como pena em si mesmo.
Existe uma injustificada resistência em admitir a possibilidade de uma extinção imediata do feito ou mesmo uma sentença absolutória antecipada. Nada justifica, por exemplo, manter-se um processo penal quando vislumbra-se uma prescrição pela provável pena a ser aplicada, ou ainda quando a prova é absolutamente insuficiente (e o inquérito já é um indicativo de que dali nada mais poderá ser extraído).” (os grifos são do próprio autor)
Ora, neste diapasão, entendendo-se o inquérito como instrumento (tal como o processo, e pelas mesmas razões), não há como prescindir da observância dos preceitos constitucionais garantistas (onde se insere a finalidade constitucional garantidora da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais), notadamente de princípios como da presunção de inocência, devido processo, ampla defesa e contraditório (ainda que mitigados em sede inquisitiva), e por conseqüência, não poderá fundamentadamente ser utilizado como instrumento de antecipação de pena, ou mesmo como instrumento de constrangimento (como ocorre via de regra) com a conseqüente estigmatização social e jurídica sem suficiente lastro, ou, melhor dizendo, justa causa, como sabemos sói ocorrer com uma prisão indevida ou desnecessária, como no caso presente.
Na construção do projeto democrático, de um Estado fundado no Direito, os organismos de segurança pública, e especificamente a polícia judiciária, não se encontra apartada. Em verdade, vem trabalhando sua reconstrução (para não dizer a própria construção) de identidade fundada nos preceitos maiores, constitucionais, e postando-se, enquanto filtro a processamentos descabidos e aos deletérios efeitos disso decorrentes, como instrumento de garantia, preservação e restabelecimento de direitos fundamentais exclusivamente. A policia judiciária coloca-se, por determinação constitucional explícita, na condição de principal agente garantidor dos direitos fundamentais do ser humano, e nessa condição, com a obrigatoriedade de absoluta observância dos princípios e preceitos fundamentais, dos princípios e preceitos impostos à administração, e à persecução absoluta do interesse público.
Neste diapasão, a atuação da autoridade policial, discricionária por natureza, e pelo conteúdo que dita discricionariedade enfeixa, não pode se apartar de interpretar e aplicar a norma penal (em princípio seu manual de trabalho) senão fazendo cumprir todo o projeto de Estado Democrático de Direito desenhado pela Constituição da República Federativa do Brasil, até porque subsumido ao princípio da legalidade, que para o estado deve ser aplicado de forma estrita. Assim, analisando os fatos que lhes forem postos, o fará pelo conteúdo normativo da norma em seu amplo alcance e de forma a materializar todos os preceitos envolvidos, e no caso em espécie, no que concerne à constrição da liberdade, somente podendo realizar quando elementos bastantes existam para fundamentar tal medida restritiva, e nas duas hipóteses, de constrição ou não, fundamentando adequadamente sua decisão.
No caso em tela, duas questões relevantes se interpuseram à decisão pelo encarceramento cautelar (ou pré-cautelar[1]) ou não, como a hipótese de crime impossível, diante da dinâmica dos fatos postos pelos envolvidos, bem assim a possibilidade de que a própria ação, que à luz da melhor construção da teoria do crime (e da teoria da tipicidade conglobante), poderia, pela projeção de seu desvalor e do nível de lesividade apontado, não ser considerada típica.
Ora, o juízo que informa a atuação da autoridade policial na instauração do procedimento administrativo policial é o da informação, via do qual, e formalizando suas ações, deverá perseguir um juízo que demonstre de forma mais verossímil a existência do fato (e sua contrariedade à norma), e sua autoria, com as circunstâncias que desenham sua execução. Na questão posta, preenchido o juízo primeiro, determinou-se a instauração do procedimento afeto, mas, na construção do juízo de probabilidade necessário ao deferimento da medida cautelar (ou pré-cautelar) envolvida (e que no estado flagrancial cabe ao Delegado de Polícia deferir e que somente se mostra possível com a lavratura in totum do auto de prisão em flagrante), se elementos mínimos não apontarem para a superação dos preceitos constitucionais balizadores da atuação constritiva do Estado, como da presunção de inocência, do devido processo legal e seu pressuposto à aplicação da pena, outra atitude não resta ao Delegado de Polícia senão transferir ao Juiz a questão, sem o constrangimento desnecessário do paciente, ou antecipação descabida de pena (com grande possibilidade de não sobrevir).
No caso presente foi o que se deu quando verificado ausente o necessário pressuposto do juízo da probabilidade à confirmação da prisão, que pelos dois fortes motivos apontados (hipótese de crime impossível e insignificância do bem jurídico atingido) deixavam antever a forte possibilidade de não-denúncia e arquivamento do feito sem processamento, podendo reverter-se, portanto, na antecipação de uma pena que jamais seria aplicada, a sua negativa (da prisão) foi a única alternativa possível. Nesta seara, quem pode o mais pode o menos, ou seja, se autorizado a analisar e valorar o fato para dizer-lhe típico, e determinar a prisão em flagrante, o Delegado de Polícia, por imposição legal (dever-poder) deverá fazê-lo para reconhecer também a impossibilidade de executá-la (a prisão).
De outro lado, ao autuar o procedimento, como determina o Código de Processo Penal, instaurando o competente inquérito policial, preservou-se a possibilidade da construção de um juízo distinto daquele que primeiro se nos apresentou, com a conseqüente possibilidade de articulação da denúncia caso se afastasse as hipóteses de crime impossível ou da insignificância, posto que o contrário, a não lavratura do procedimento administrativo, poderia revestir-se de um abuso de direito do Estado em flagrante descompasso com seu compromisso garantista, e, portanto, sérios motivos à sua responsabilização.
Vale ressaltar que um julgamento antecipado pelo Delegado de Polícia teria ocorrido se o mesmo, ao analisar os fatos apresentados, concluísse pela inexistência de fato típico e se negasse à lavratura do procedimento, o que afastaria ao poder judiciário o conhecimento em absoluto da situação e a possibilidade de se posicionar diferentemente, uma vez que sequer chegaria a seu conhecimento, repetimos.
3. Da hipótese de crime impossível materialmente posta:
Prevê o artigo 17, do Código Penal, in verbis:
“Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.”
Entende-se por ineficácia absoluta do meio quando o agente, depois de dar início aos atos de execução tendentes a consumar a infração, só não alcança o resultado por ele inicialmente pretendido porque se utiliza de meio via do qual, no caso concreto, por mais que queira realizar a conduta descrita no tipo, jamais o conseguirá.
Na hipótese presente, conforme se dessume das declarações colhidas do preposto da vítima e dos testemunhos dos empregados desta, encontrava-se o imputado sobre extrema e absoluta vigilância, e sua conduta foi percebida desde o ato preparatório, e foi impedida com plena ciência de cada um dos envolvidos de que naquele momento o agente tentaria perpetrar o ilícito. Se deu, portanto, em situação que, por mais que se esforçasse na utilização do meio escolhido (escondendo a res no fundo de uma mochila), diante da rotina de fiscalização e revista empreendida para o tratamento de sua pessoa (agente imputado), jamais poderia obter êxito, e por conseguinte, alcançar a consumação do crime. Note-se, ainda, que em nenhum momento o objeto do furto permaneceu desvigiado dos prepostos da vitima, e que a inversão da posse de referido objeto não ocorreu.
No dizer de Damásio Evangelista de Jesus, quanto ao efeito do crime impossível, “não há tentativa por ausência de tipicidade. Não enseja a aplicação de penal nem de medida de segurança”. (in Código Penal anotado, Editora Saraiva, 10ª edição, 2000. p. 65)
4. Da hipótese de atipicidade material:
No decorrer dos últimos tempos, em que nos encontramos servindo nos plantões e na condução de delegacias diversas de nosso Estado, vimos observando conduções e prisões realizadas em relação a fatos expressivos de delitos pequenos, menores, ou mesmo de ilícitos não penais, conforme melhor doutrina, e de forma pacificada, em nossa jurisprudência[2], que vêm repercutindo na ocupação de vagas nas unidades prisionais e Delegacias de Polícia além de suscetibilizar o Estado à uma responsabilização civil que parte da ação da autoridade, por si, e pelos reflexos possíveis dentro de uma ambiente carcerário em decorrência da permanência equivocada daqueles que poderiam passar ao largo de tal medida, para não repisarmos os nocivos efeitos para os conduzidos.
Os ilícitos de bagatela, ou alcançáveis pelo princípio da insignificância (aqueles que por vezes ainda, pela dinâmica com que são praticados e reprimidos, sequer representam ilícitos)[3], que pela lesividade mínima da conduta ou reduzido dano que representam, terminam por afastar a tipicidade[4] do fato, que se dá à luz dos princípios penais da ultima ratio, princípio da intervenção mínima que, valendo-nos das lições de Muñoz Conde[5], expressa que “O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito”, verbis, revelando, portanto, o caráter subsidiário do Direito Penal, bem assim o princípio da fragmentariedade, este como corolário do princípio da intervenção mínima (e da adequação social), a expressar que “nem todas as ações que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por ele. Limitando-se o Direito penal a castigar as ações mais gravosas, violadoras dos bens jurídicos mais importantes, demonstrando aí o caráter fragmentário que impõe ao Direito Penal ocupar-se apenas de uma parte, de fragmentos, dos fatos e atos ilícitos perpetrados”[6].
Assim, o princípio da insignificância pautando-se na natureza fragmentária e subsidiária do Direito Penal, leva em conta a lesividade da conduta, sua representatividade econômica, repercutindo diretamente, e de forma intransponível sobre a análise da tipicidade penal para fazê-la persistir ou afastá-la por falta de seus pressupostos (ou elementos).
No tempo presente, de se reconhecer a evolução do direito – notadamente do direito penal – que, neste pormenor exige a interpretação dos fatos em conformidade com a melhor interpretação da norma (tarefa que se exige da Autoridade Policial, enquanto ato próprio de autoridade, e atribuição específica de bacharel em Direito, como já apontado alhures), que impõe à sua análise a necessidade do reconhecimento da tipicidade formal, que se reveste da adequação direta e perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, bem assim da tipicidade CONGLOBANTE, que exige, dentre outros, a obrigatória percepção do fato típico sob a ótica material[7], que diz respeito exatamente aos princípios acima mencionados, reclamando a relevância do bem que está sendo posto em proteção.
A ausência da tipicidade[8] material exclui a tipicidade conglobante (material), e como conseqüência, a tipicidade penal. É dizer, exclui do agente a responsabilidade penal (apenas) sobre o ato praticado, afastando, portanto, a atribuição da polícia judiciária em seu processamento.
Tais fatos equivocadamente analisados na órbita da polícia judiciária vem sendo, como regra, objeto de contumaz arquivamento nas varas criminais.
A maioria sequer são objeto de denúncias, o que termina por obrigar-nos ao reconhecimento do descabimento das prisões realizadas nos flagrantes lavrados, contribuição significativa à superlotação das celas em delegacias de polícia (e mesmo das unidades prisionais) e, posteriormente, pela própria responsabilidade civil (e conseqüente condenação à indenização pelo dano passível de ser alegado) que gera ao Estado ante a ilegal encarceramento por si mesmo e pelas possíveis intercorrências de que possa ser vítima o paciente no âmbito do ambiente carcerário.
Ressalvo e ressalto a necessidade de formalização integral de todo o ato (lavratura do auto de flagrante-delito, com não confirmação da prisão, ao final e consequente solicitação de arquivamento) como forma de se permitir o controle da atividade exercida pela Autoridade Policial[9].
5. Da usurpação de função equivocadamente imputada à autoridade policial:
A conduta inserta na tipificação estabelecida no artigo 328 do CP, “Usurpar o exercício de função pública”, exige ação dolosa, “vontade livre e consciente dirigida a usurpar a função pública. Deve o sujeito ter plena consciência da ilegitimidade de sua conduta, i.e., saber que está realizando um comportamento funcional que não lhe é permitido. Nesse sentido: RT, 490:283”, conforme consta in Damásio E. Jesus, Código Penal Anotado, Editora Saraiva, 10ª edição, 2000.
Como acima apontado, a ação praticada pelo servidor público, autoridade policial, revestiu-se apenas e tão somente da negativa da confirmação da prisão de pessoa que lhe chegou conduzida em situação de suposta flagrância delitiva, onde os elementos fáticos apontavam, justificadamente, para a possibilidade de atipicidade na hipótese, seja pelo reconhecimento da situação crime impossível, ou mesmo pela atipicidade material da conduta em decorrência do princípio da bagatela, fatos que não revestiram juízo final acerca dos fatos perpetrados pelo paciente conduzido, conquanto, embora posto em liberdade pelas razões articuladas no despacho final do procedimento lavrado, teve contra si realizada a instauração do Inquérito Policial competente.
Parte o ministério público ao Delegado de Polícia não cabe o exercício de “juízo de valor” acerca dos fatos que lhes são postos, razão pela qual deveria executar a prisão de forma indistinta.
Tal entendimento se arvora em um equívoco sem tamanho diante da ordem normativa posta, uma vez que nega o caráter instrumental do Processo Penal (e por conseguinte do procedimento pré-processual que lhe respeita), sua natureza de filtro, e muito mais os princípios constitucionais acima articulados que terminam por estabelecer lineamentos mínimos à realização da limitação de direito fundamental tão caro como é o da liberdade.
Se é certo que à autoridade policial cabe a presidência e exclusiva titularidade dos atos de investigação e o flagrante-delito representa uma de suas peças inaugurais, que a seu juízo poderá ser realizado ou não, no mesmo sentido devemos entender acerca da medida pré-cautelar de prisão posta como consectário da lavratura do IP.
É pré-cautelar a medida porque tem caráter precário, e demanda imediata comunicação ao juízo competente para sua homologação fundamentada ou seu relaxamento. Mas não há como negar que embora preparatória é cautelar; embora precária é antecipadora de um juízo de culpa; que embora sujeita a homologação representa de fato o encarceramento do cidadão com todos os seus consectários próprios de um sistema carcerário absolutamente descuidado e desrespeitoso dos direitos mínimos deferidos ao ser humano (o que não pode ser tido como novidade), portanto, absolutamente violador, e representativo de uma tarifação, um etiquetamento, uma estigmatização indelével na vida daquele que deveria receber do Estado toda uma gama de investimentos voltados à sua correção e plena integração social que, para satisfação daqueles adeptos do direito penal máximo, trariam reflexos a cada um dos “homens de bem” que fatalmente terão que conviver com dito cidadão.
Não se trata aqui de dizer inocente um culpado, mas de evitar-se o mal de um encarceramento a uma pessoa à qual, pelos elementos que envolveram sua ação, com forte carga de plausibilidade, poderá sequer ser denunciado, e ainda se o for, poderá jamais ser condenado, tudo absolutamente de acordo com o ordenamento pátrio vigente, devidamente analisado e articulado em despacho proferido ao final da lavratura do procedimento. Mais que isso, ainda que condenado, como sabido, por não ser a pena, de prisão apenas, muito possivelmente, para não dizer com quase certeza, a decisão que lhe for imposta não lhe carreará como conseqüência de seu ato a pena de encarceramento.
A conduta praticada não teve, e não tem a intenção de se confundir ou mesmo de antecipar uma decisão que somente cabe à autoridade judiciária. O contrário, no caso em tela, talvez pudesse ser assim interpretado. O ato do Delegado de Polícia na presente hipótese nada mais fez que materializar obrigação que lhe recai por clara imposição constitucional, conforme sobejamente apontado acima. A este, adstrito aos princípios constitucionais que informam a atuação administrativa do Estado (artigo 37, CF/88), seus fundamentos basilares, os preceitos de garantia fundamental (estes também reconhecidos como claros limites à atuação do Estado), e reconhecendo a ordem penal vigente em sua melhor interpretação, apenas cumpriu com seu desiderato, deixando de praticar atos que possam violar preceitos, transferindo àquele a quem o Estado dotou do poder de julgar, amparado no juízo de certeza, dizer se alguém é culpado ou não.
Com estes fundamentos, e tudo o mais acima articulado, justifica-se a atuação da autoridade signatária, e a correção da conduta praticada, razão pela qual requer seja afastada a instauração de procedimento disciplinar ou mesmo penal conforme requerido pelo ministério público.
Pede deferimento.
Goiânia, 22 de julho de 2009.
Alexandre P. Lourenço
[1] Palao, Banacloche – La libertad personal y sus limitacionais. Madrid, Mc Grew Hill, 1996, p. 292, conforme aponta Aury Lopes Jr. no artigo “Crimes hediondos e a prisão flagrante como medida pré-cautelar”.
[2] Penal. Princípio da insignificância.
“Conforme relatado nos autos, no dia 03/05/05, dois funcionários da empresa N.S.V. lograram prender em flagrante delito o apelante, pela tentativa de subtração de varas de alumínio da pista de atletismo da Universidade Federal do Ceará. Entretanto, no que diz respeito ao princípio da insignificância, verifico que o mesmo incide no presente feito, diante do pequeno prejuízo acarretado ao patrimônio público. De fato, a inexpressividade do material apreendido revela a lesividade mínima da conduta, restando configurado o crime de bagatela, ainda que o titular do bem seja o Estado” (TRF 5ª R. - 2ª T. - AP 2005.81.00.010004-8 - rel. Luiz Alberto Gurgel De Faria - j. 16.12.2008 - DJU 28.01.2009).
Penal. Descaminho. Art. 334, §1º, CP. Princípio da insignificância.
“O Ministério Público Federal, desde o início, fundamenta sua pretensão punitiva na conduta de descaminho praticada pelo cidadão chinês W.Z.D., sendo esta demonstrada pela apreensão de bens estimados em R$ 1.840,00 (hum mil, oitocentos e quarenta reais). Ou seja, a acusação determina com exatidão o valor do objeto do suposto crime, e é por esse argumento que me parece insubsistente a ação. A jurisprudência brasileira consagrou a existência e aplicabilidade do princípio da insignificância para excluir a tipicidade para os denominados ‘crimes de bagatela’. Refiro-me às condutas que, apesar de normativamente enquadradas como criminosas, não o seriam em virtude da ausência de lesividade ou pela pequena monta do dano. A partir daí, questiona-se em que casos seria o princípio aplicado. Entretanto, foi pacificado na jurisprudência mais recente que, no crime de descaminho, estão abrangidas pelo princípio da insignificância as condutas em que o objeto desviado não exceda o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerado o mínimo legal para o ajuizamento de eventual execução fiscal. Segue-se, com isso, um juízo prudencial de notória perspicácia: como punir o agente no plano penal se, no plano civil/tributário, não seria ele passível de coerção judicial equivalente ao mesmo ato ilícito? Tal juízo, a meu ver, deve ser aplicado no caso específico do paciente, indevidamente sujeito a uma ação penal em manifesta dissonância com o entendimento majoritário nos tribunais” (TRF 5ª R. - 4ª T. - HC 2008.05.00.090517-4 - rel. Margarida Cantarelli - j. 09.12.2008 - DJU 16.01.2009).
Vide importante notícia veiculada no portal do Supremo Tribunal Federal, publicada aos 23.03.2009, onde mostra a plena adequação dos argumentos postos, no julgamento de 15 habeas-corpus, conforme se pode verificar no endereço http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104746
Penal. Estelionato tentado. Troca de etiqueta de preço entre mercadorias de supermercado. Mínimo desvalor da ação. Princípio da insignificância.
“A conduta perpetrada pelo agente — tentar obter vantagem indevida, em prejuízo de estabelecimento comercial, colocando em mercadoria mais cara, etiqueta de preço de outra, trinta e cinco reais mais barata —, insere-se na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela, já que a ação não resultou em perigo concreto e relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo bem jurídico tutelado pela norma penal. As circunstâncias de caráter eminentemente pessoal não interferem no reconhecimento do delito de bagatela, uma vez que este está relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto, e não com a pessoa do acusado, que não pode ser considerada para a aplicação do princípio da insignificância, sob pena de incorrer no inaceitável Direito Penal do autor, incompatível com o sistema democrático. Ordem concedida para anular a decisão condenatória” (STJ - 5ª T. - HC 118.702 - rel. Laurita Vaz - j. 18.12.2008 - DJU 16.02.2009).
[3]Hipóteses de crimes impossíveis praticados em estabelecimentos comerciais, especialmente supermercados ou grandes magazines.
Penal. Recurso de apelação. Furto. Monitoramento de toda a ação por circuito interno de TV. Crime impossível. Absolvição mantida.
“Estando o agente sendo observado e seus passos, desde o início, monitorados pelo circuito interno de TV e pelos seguranças da loja, os quais, inclusive, aguardaram o momento apropriado para detê-lo e acionar a polícia, forçoso concluir que este jamais conseguiria chegar à consumação de subtração, tornando a tentativa em crime impossível, já que o meio empregado revelou-se absolutamente incapaz de produzir o resultado almejado” (TJMG - 3ª C. - AP 1.0317.07.072058-4/001(1) - rel. Paulo Cezar Dias - j. 27.01.2009 - DOE 12.03.2009).
[4] Partindo da teoria analítica do crime, tripartida, que prevê para a tipicidade a necessidade de preenchimento dos elementos: ação (conduta), resultado, nexo e tipicidade (formal e conglobante)
[5] in Teoria Geral do Delito, p. 41
[6] Idem ao anterior;
[7] Tem como aspectos fundamentais: 1º - se a conduta do agente é antinormativa; 2º - se o fato é materialmente típico.
[8] Segundo Muñoz Conde (in Teoria Geral do Delito, p. 41) “é a adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal. Por imperativo do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimem sine lege , só os fatos tipificados na lei penal como delitos podem ser considerados como tal”.
Entretanto, a simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não enfeixa o conceito e conteúdo da tipicidade penal, que exige para tal a conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante.
Superada a questão retro mencionada acerca da configuração da conduta (com as dúvidas que carregamos, ressalvo), na análise da tipicidade penal, o aspecto formal se encontra vencido, todavia grande óbice persiste quanto à tipicidade conglobante.
A conduta do agente mostra-se antinormativa, posto que, inicialmente, contrária à norma; não imposta; não fomentada. Todavia, na análise da tipicidade material impõe-se reconhecer que a conduta praticada não ofende bens de relevo para o direito penal.
Para Rogério Greco, in Estrutura Jurídica do Crime – Mandamentos Livraria e Editora – pp. 106 e 107, “para concluir-se pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. Sabemos que a finalidade do direito penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a serem protegidos pelo direito penal, determina que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas sim aqueles que gozem de uma certa importância. Nessa seleção de bens, o legislador abrigou, a fim de serem tutelados pelo direito penal, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade sexual, etc.
Embora tenha feito a seleção dos bens que, através de um critério político, reputou como os de maior importância, não podia o legislador, quando da elaboração dos tipos penais incriminadores, descer a detalhes, cabendo ao intérprete delimitar o âmbito de sua abrangência. Imaginemos o seguinte: alguém, de forma extremamente imprudente, ao fazer uma manobra em seu automóvel, acaba por encostá-lo na perna de um pedestre que por ali passava, causando-lhe um arranhão de meio centímetro. Se analisarmos o fato, chegaremos à seguinte conclusão: a conduta foi culposa; houve um resultado; existe um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; há tipicidade formal, pois que existe um tipo penal prevendo esse modelo de conduta. Ingressando no estudo na tipicidade conglobante concluiremos, primeiramente, que a conduta praticada é antinormativa, visto não ser ela imposta ou fomentada pelo Estado. Contudo, quando iniciarmos o estudo da tipicidade material, verificaremos que embora a nossa integridade física sejam importante a ponto de ser protegida pelo direito penal, nem toda e qualquer lesão estará abrangida pelo tipo penal que a protege. Somente as lesões corporais que tenham algum significado, isto é, que gozem de uma certa importância, é que nele estarão previstas. Em virtude da tipicidade material, excluem-se dos tipos penais aquelas infrações reconhecidas como de bagatela, nas quais têm aplicação o princípio da insignificância.
Concluindo, para que se possa falar em tipicidade penal é preciso haver a fusão da tipicidade formal ou legal com a tipicidade conglobante (que é formada pela antinormatividade e pela tipicidade material). Só assim o fato poderá ser considerado penalmente típico.”
[9]Recurso ao Delegado-Geral, por analogia, do artigo 5º, parágrafo 2º, do CPP, ou mesmo discordância e conseqüente denúncia por parte do Ministério Público.
Fonte: Portal IBCCRIM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário