A leitura da entrevista de Francis Fukuyama nas páginas amarelas da revista VEJA, do mês de abril passado, além de provocar-me um grande desconforto, conduziu-me à reflexão crítica de vários aspectos ali abordados.
Para quem não sabe, trata-se de um importante cientista político americano, conhecido como arauto do “Fim da História”, e festejado pelos principais defensores do liberalismo econômico na sua forma mais radical.
Contrapondo-se ao que se vulgarizou denominar “utopia socialista” - compreendida como sonho totalitário, baseado na unificação ideológica e na conformação de um projeto sócio-econômico único - ele, paradoxalmente, preconizou que os sistemas políticos encontraram na democracia liberal sua expressão evolutiva final. E, no exercício do sacerdócio neoliberal através de seu discurso, nas últimas duas décadas profetizou que a democracia liberal consistia no destino final da humanidade, e, portanto, no capítulo derradeiro da história da civilização.
O novo modelo de conformação societária, segundo Fukuyama e os adeptos de sua teoria, exigiam importantes reformulações de cunho político e econômico, sintetizadas em alguns ícones substancias, tais como a irrestrita abertura dos mercados, a máxima desregulamentação do sistema financeiro e a retração sem precedentes do Estado. A fé cega na soberania do mercado pode ser identificada nas palavras do próprio cientista, que ao ser questionado acerca da crise mundial, na malsinada entrevista, admitiu que “por décadas seguimos um modelo que propunha a máxima desregulamentação dos mecanismos financeiros e a crença de que os mercados iriam se ajustar automaticamente a qualquer situação. Até o Alan Greenspan (ex-presidente do banco central americano) reconhece que foi um erro acreditar nisso.”
Ainda, enfrentando a questão acerca das medidas que a democracia liberal precisa tomar para sobreviver à atual crise, pasmem, sem qualquer constrangimento, Fukuyama sustenta: “Precisamos, urgentemente, de maior controle sobre o sistema financeiro, que está completamente desregulamentado. Acredito, também, que o estado mínimo não funcionou. A partir de agora veremos uma presença bem maior do estado na economia. Ou seja: será uma economia mais de estado e menos de mercado”.
O grande expoente do pensamento único neoliberal ao resgatar os demonizados símbolos do Estado intervencionista, esqueceu de analisar os profundos custos sociais e humanos das duas décadas precedentes, acarretados pelo desmonte do Estado de Bem-Estar, com fragilização ou extinção de suas redes de proteção e assistência; pelo fenecimento de milhões de postos de trabalho, com a disseminação do desemprego estrutural e a oficialização do emprego temporário; pela condenação de milhares de pessoas a marginalização e desterritorialização; e, por fim, pela aposta no controle social punitivo de importantes parcelas da população vulnerável.
Os custos humanos são mais uma vez ignorados por Fukuyama quando inquirido sobre os danos causados aos Estados Unidos com a atual crise. O primeiro aspecto enfatizado refere-se à redução dos “recursos econômicos suficientes para sustentar uma série de atividades que mantêm ao redor do mundo, como a ajuda a outros governos ou as operações no Oriente Médio”. O segundo aspecto, revelador do alto grau de perversidade contido no discurso, é o que ressalta no plano das ideias “uma série de danos à imagem do país como promotor de um modelo de democracia e de capitalismo.”
Mais estarrecedora foi a declaração do entrevistado acerca de qual dos efeitos globais da crise mais lhe assusta. Para ele, a pior consequência da crise reside no fortalecimento dos nacionalismos econômicos, e no retorno das medidas protecionistas, e não no fato de que, entre 55 e 90 milhões de pessoas, passarão à condição de pobreza extrema neste ano devido à recessão mundial. E mais de 1 bilhão sofrerão de fome crônica no mundo todo; ou de que as consequências sociais e humanas serão devastadoras nos países africanos, cuja desaceleração do crescimento poderá ocasionar a morte de mais de 700.000 crianças antes de atingirem um ano de idade conforme as previsões do “Informe sobre Acompanhamento Global 2009: Uma Emergência de Desenvolvimento”, relatório divulgado em 24.04.2009 pelo Banco Mundial (BIRD) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), às vésperas da Reunião de Primavera das duas instituições(1). Ou, ainda, na taxa de desemprego dos Estados Unidos que fechou, em 2008, com 7,2%, quando o número de desempregados atingiu 2,6 milhões de pessoas, maior índice registrado desde o fim da 2ª Guerra Mundial em 1945.
Outro aspecto, no mínimo surpreendente, é o momento da entrevista em que o cientista político critica os programas sociais de redistribuição de renda atualmente implementados na América Latina. Considera que as políticas de inclusão social devem emergir de um consenso, e não da retração dos direitos das elites em favor dos excluídos, vez que tal orientação contribuiria para a acentuação perigosa da polarização entre esquerda e direita.
Ora, embora sem adentrar no mérito da natureza e eficácia dos programas de redistribuição de renda, parece-me imprescindível lançar o seguinte questionamento: Em que experiência ou momento histórico se vivenciou processos de redução de desigualdades sociais, redistribuição de renda ou políticas de inclusão forjadas pelo consenso entre grupos sociais distintos e antagônicos? Mesmo a mais cautelosa revisita a memória coletiva não traz qualquer registro neste sentido. Ao contrário, a dinâmica das conformações societárias sempre foram marcadas por situações de dissenso e conflitualidade.
A sociabilidade na América Latina - em virtude da herança colonialista e da tradição autoritária - estrutura-se numa profunda segmentação social, econômica e cultural, impeditiva de qualquer tipo de conciliação ou pacto. Importante lembrar, ainda, que todos os direitos e garantias individuais e as coletivas, conquistados pelos setores populares na América Latina, resultaram de amplos movimentos de resistência e reivindicação. Diante disso, não me atrevo a sugerir que Fukuyama apresente qualquer tipo de dúvida frente a tal proposição, tão prosaica e generalizada pelos diferentes pensamentos contemporâneos.
Por fim, diante do comentário do entrevistador de que suas afirmações se mostram incongruentes com os ícones do conservadorismo americano, Fukuyama assegura que: “Rompi com os conservadores no início da Guerra do Iraque. Não concordei, e não concordo, com a maneira como o governo anterior utilizou o poder americano. O erro de estratégia ficou claro com os danos ao prestígio do país. Os republicanos precisam repensar sua política externa e, no campo da economia, devem rever suas posições ideológicas sobre economia e governo mínimo, porque foram justamente elas que nos impeliram para a crise econômica atual.”
A conclusão apresentada pelo entrevistado, embora desalentadora, não deixa de ser coerente com o conjunto da percepção esboçada durante toda a entrevista. Primeiro por que, ao mencionar o rompimento com os conservadores no início da Guerra do Iraque, ressalta as divergências com a utilização do poder americano, e os erros de estratégia que acabaram por macular o prestígio do país. Logo, não faz nenhuma alusão à destruição do Iraque, ao extermínio de civis, aos crimes de guerra, tampouco as baixas sofridas pelos soldados americanos. Segundo por que, ao tratar da economia, cinicamente, afirma que a causa primordial da crise mundial foi exatamente a efetivação dos principais signos da econômica neoliberal e do governo mínimo.
Ora, se todas estas questões não versassem sobre a mais crua realidade envolvendo a vida de milhares de seres humanos, poderíamos imaginar que estamos diante de um diretor de cinema, propondo-se a experimentações estéticas, cujo destino dos personagens pode a todo e qualquer momento ser alterado pelo roteirista, sem qualquer tipo de dano ou prejuízo. Sejamos otimistas, ainda bem que a história não terminou...
NOTAS
1 “A crise econômica global pode conduzir a uma crise humana em África. Se se verificar uma desaceleração do crescimento que tem sido típica no passado, calculamos que mais 700.000 crianças morrerão antes de atingirem um ano de idade”, salienta o Banco Mundial, em nota divulgada em abril desde ano, a propósito da Reunião de Primavera da instituição.
“A pobreza estava a decrescer e muitos indicadores de desenvolvimento humano – em particular a prevalência do VIH/SIDA – estavam a melhorar. Agora, as esperanças suscitadas por uma década de crescimento estão a ser goradas. O que se segue, poderá ser agitação política e social”.
O impacto nos países africanos é verificável na redução dos fluxos de capital privado, que estão em declínio, depois de em 2007 terem pela primeira vez excedido o montante de ajuda externa ao continente.
Christiane Russomano Freire
Mestre em Ciências Criminais – PUC/RS;
Professora Direito Penal e Criminologia da Universidade de Caxias do Sul – RS.
FREIRE, Christiane Russomano. A crise mundial e a crise de Francis Fukuyama. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 9-10, ago. 2009.
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