A vítima de violência sexual é que terá de decidir se quer processar, criminalmente, o agressor. O artigo 225 da Lei 12.015, que entrou em vigor no início de agosto, transfere a decisão para a vítima mesmo em casos de estupro qualificado, em que há lesões graves. Com a nova regra, vítimas de agressores que já estão sendo processados poderão, ainda, ter de confirmar à Justiça, no prazo de seis meses, se querem continuar com a ação.
De acordo com a regra antiga, no caso de violência que resultasse lesão grave, a ação penal era pública incondicionada, ou seja, não dependia da vontade da vítima para processar o agressor. De acordo com a nova lei, apenas casos que envolvam menores de 18 anos não dependerão de queixa ou representação da vítima para que seja movida a ação. "Antes, na grande maioria dos casos de estupro, a ação penal era privada, hipótese que não mais existe, porém, em relação a forma qualificada, a ação penal passou a ser condicionada à representação", explicou o advogado Sergio Pita.
Contra esse dispositivo da Lei 12.015/09, o procurador do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro Artur Gueiros entrou com representação na Procuradoria-Geral da República para que a instituição questione no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade da lei neste ponto.
Embora reconheça os avanços da legislação quanto à proteção de crianças e adolescentes, Gueiros afirma que o legislador cometeu um grande equívoco ao mudar os dispositivos que tratam da atuação do Estado, independentemente da vontade da vítima, nos casos de estupro que geraram lesões graves como aborto e contaminação por HIV, entre outros.
Para Gueiros, este dispositivo atenta contra a dignidade humana, garantida na Constituição Federal. “Tal disciplina legal afronta flagrantemente a dignidade sexual, parcela relevante da dignidade da pessoa humana, bem jurídico consagrado pelo Constituinte de 1988”, disse o procurador na representação.
Além disso, o procurador chama a atenção para os efeitos que podem acarretar a nova lei em casos que já tramitam no Judiciário. Como a lei penal retroage em benefício do réu, disse, as vítimas de casos em que a ação penal não era condicionada à representação, terão de manifestar a vontade de que a ação prossiga.
“Isso pode gerar um caos na Justiça”, disse Gueiros. Isso porque, explica, o Judiciário terá de intimar as vítimas, que, às vezes, decidem mudar de região por conta do que aconteceu. Como o prazo para a representação ao Ministério Público sobre a vontade de mover a ação é de seis meses a partir da revelação da identidade do autor da agressão, o procurador disse que, com a nova regra, a vítima deverá se manifestar no prazo de seis meses a partir do momento em que a lei entrou em vigor.
Para o professor da FGV Direito Rio, Thiago Bottino, se for considerado apenas o texto da lei, a situação da vítima melhora em parte. “Em vez de contratar advogado, basta representar para que o MP promova a ação penal”, diz. A advogada Kátia Tavares, do Instituto dos Advogados Brasileiros, concorda. “Muitas pessoas sem recursos não conseguiam apresentar a queixa-crime no prazo. Com a nova regra, isso acaba. A vítima não precisa ter advogado, basta entrar com representação”, afirma.
Thiago Bottino acredita que a lei também piorou em parte a situação das vítimas. “A lei passou a exigir representação para aquelas vítimas pobres e também nos casos em que o crime foi cometido com abuso de pátrio poder e figuras equiparadas”, explica.
"Os casos de violência sexual que resultem lesão de natureza grave ou a morte da vítima, deveriam continuar sendo processados em ação penal pública incondicionada, dada a gravidade do resultado", disse Sergio Pita. Entretanto, ele entende que nos casos de vítimas menor de 18 anos ou pessoa vunerável, a ação deveria ser condicionada à representação. "Os crimes sexuais estão ligados a intimidade da vítima, dessa forma, não vejo, com bons olhos, a possibilidade do Ministério Público promover ação penal quando não está respaldado expressamente pela vítima ou por seus representantes legais", afirmou.
Interpretação constitucional
O professor Bottino explica, que além da lei, já há uma interpretação jurisprudencial sobre o assunto. “O Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacificado que o estupro é crime de ação penal pública incondicionada quando praticado com violência real”, afirma. Ele citou o Verbete 608, da Súmula do STF, e que violência real é o efetivo emprego de força sem a qual o crime de estupro não se consumaria.
O professor também entende que as vítimas que não se enquadrarem nas hipóteses do verbete 608 deverão ser intimadas para manifestar o interesse de que o autor do crime continue sendo processado. “Aconteceu um processo semelhante nos crimes de lesão corporal culposa quando da edição da Lei 9.099/95.”
“Vai dar um certo trabalho cartorário, mas não é algo tão complicado considerando que o volume de casos de estupro não é tão grande como os de tráfico, furto, roubo, estelionato ou homicídio. Talvez, o maior problema fique concentrado nos casos que ainda estão na delegacia, mas uma campanha de informação ajudaria bastante”, afirmou Bottino.
O promotor de Justiça do Rio de Janeiro Paulo Rangel considera a mudança uma “monstruosidade jurídica”. “Se a vítima, maior e capaz, morrer, quem vai representá-la? O crime ficaria impune”, disse. Para o promotor, a interpretação que deve ser dada à lei é a de que a ação pública é condicionada, salvo se resultar em lesão grave, morte ou a vítima for menor. Se a lei veio para punir casos que são gritantes, diz, não há porque entender de forma diferente.
Para Rangel, não seria necessário uma representação sustentando a inconstitucionalidade do dispositivo. “Basta aproveitar o máximo do texto legal e interpretá-lo conforme a Constituição.”
Clique aqui para ler a representação.
Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2009
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