sábado, 22 de agosto de 2009

Artigo: Dos pareceres da comissão técnica de classificação na individualização executória da pena : uma revisão interdisciplinar

O princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF) estabelece que a punição deve se dar na exata medida do crime praticado, de forma justa e sem padronizações. Esta determinação constitucional não se encerra quando a sentença é proferida, exigindo também que sejam feitas adaptações durante o cumprimento da pena. Para tanto, o juízo da execução conta com diversos instrumentos previstos na Lei de Execução Penal, tais como o exame de personalidade, o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação (C.T.C.). Não obstante as discussões, em geral, ficarem circunscritas ao exame criminológico – ora rechaçando-o, ora propugnando por sua aplicação ampla – também merecem destaque os pareceres da C.T.C., que têm grande importância na individualização executória da pena.

Inicialmente, cumpre fazermos considerações sobre a natureza do exame criminológico, bem como sobre a dinâmica das funções da C.T.C. e seu respectivo parecer. O exame criminológico é uma forma de perícia(1). Perícia é elemento de prova, feita em geral para fins jurídicos. Ela consiste numa avaliação, feita por especialistas na área, de circunstâncias que deram causa ou facilitaram a ocorrência de determinado evento. Assim, o exame criminológico, como perícia que é, deve ser feito e assinado unicamente por técnicos (psiquia­tras, psicólogos e assistentes sociais). Visa avaliar as condições pessoais do agente criminoso (mente, corpo, fatores sócio-familiares) e as circunstâncias que o envolveram, condições e circunstâncias essas que, de alguma forma, possam explicar sua conduta criminosa pretérita (diagnóstico criminológico). Esta avaliação, numa primeira hipótese, deve possibilitar uma aferição sobre a adaptação do examinando ao cárcere, oferecendo subsídios para a individualização da execução de sua pena (prognóstico criminológico, em exame criminológico de entrada). Ou, numa segunda hipótese, deve possibilitar uma aferição sobre possíveis desdobramentos futuros de sua conduta, em termos de probabilidade de recidiva (prognóstico criminológico, em exame criminológico feito para fins de concessão de benefício). Por se tratar de perícia, o exame criminológico deveria ser feito unicamente por técnicos que não estejam envolvidos diretamente com a execução da pena do examinando, com seus programas de “tratamento”.

Já o parecer de C.T.C. não é perícia, não está voltado para a avaliação da conduta criminosa do preso(2). Trata-se, isto sim, de uma avaliação interdisciplinar que a equipe faz do histórico prisional do preso, de sua conduta, entendida esta em seu sentido bem complexo, isto é, não restrito às respostas do preso às normas regimentais da casa. Representa uma avaliação das respostas que o preso vem dando às propostas terapêutico-penais que lhe têm sido disponibilizadas. Portanto, para que de fato haja um autêntico parecer de C.T.C., há que se oferecer um mínimo de oportunidade ao preso. O ideal é que essa oportunidade seja minimamente planejada e adequada à sua pessoa, e nela ele possa se encontrar, conhecer-se melhor, conhecer seus interesses, aptidões e pensar melhor em seu futuro. E que ele seja acompanhado, humanamente observado (observação interessada em seu crescimento pessoal) e estimulado. Pois bem, esse trabalho e planejamento de oportunidades adequadas ao perfil dos presos é especificamente a função da C.T.C. Por conseguinte, para que ela possa de fato realizar seu parecer, e para que este não seja elaborado de forma mecânica, estereotipada, padronizada, dois requisitos básicos devem ser satisfeitos pela C.T.C. (e pelo presídio, como um todo): a) elaboração de programas adequados ao perfil (ou perfis) dos presos; b) acompanhamento desses programas, do dia a dia dos presos, através de uma participação ativa, diária nas atividades do presídio. Para que estas exigências sejam satisfeitas, os problemas estruturais existentes devem ser seriamente enfrentados, a fim de que a C.T.C, em cada presídio, atenda à composição mínima preconizada no art. 7º da LEP. Nesse artigo se prevê a presença de, no mínimo (entende-se, pois, que pode ser mais do que esse mínimo), dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social. Além disso, a C.T.C. deve ser presidida pelo Diretor da casa. Vê-se aí seu caráter eminente interdisciplinar, sendo que sua composição vai além do corpo estritamente técnico, justamente por seu parecer não se tratar de perícia. Ao se prever a participação de, no mínino, dois chefes de serviço, cria-se oportunidade para que a equipe se infiltre construtivamente em todo o presídio. Fortalece-se o diálogo entre técnicos e demais profissionais, incluídos aí, com especial destaque, os de segurança (particularmente, os agentes de segurança), mas também os da educação e da laborterapia. Isto enriquece sobremaneira o conhecimento e o trabalho de todos. Para tanto, a C.T.C. é presidida pelo Diretor da casa.

Daí que, enquanto o exame criminológico supõe neutralidade dos que o realizam, por atuarem como peritos, o parecer de C.T.C., ao contrário, supõe, por parte da equipe que o realiza, o envolvimento diário com o presídio e seus programas, supõe uma relação interessada com o dia a dia do cárcere e dos presos. O parecer de C.T.C. não deve ser uma manifestação técnica que se constitua para o preso uma surpresa, ou que os signatários façam pontualmente, quando da instrução de um pedido de benefício. Pelo contrário, ele deveria ser como que construído também no dia a dia, como uma avaliação que um professor de ensino fundamental vai fazendo de seus alunos. E essa avaliação deve ir sendo feita para o preso ao longo da execução, como uma espécie de feed back, sobretudo (para sermos mais objetivos), por exemplo, nos últimos seis meses que antecedem seu pedido. Falando noutros termos, o parecer de C.T.C. deve ser um verdadeiro instrumento pedagógico. Frequentemente, os presos manifestavam sua frustração, perante os próprios técnicos(3), quando se submetiam a exame criminológico, pelo fato de que todo seu esforço no cárcere (na escola, no trabalho, etc.) não era devidamente valorizado nessa hora. Frente à denegação do pedido, por força da conclusão contrária do exame criminológico, advogados e presos diziam-se profundamente frustrados, por não terem sido considerados, em primeiro plano, os esforços do examinado, suas conquistas, seu progresso na escola e no trabalho. Por isso mesmo, o parecer de C.T.C., realizado nos moldes acima sumariamente descritos, atenderá a esses antigos e justos reclamos.

Feitas estas observações, nota-se que, não obstante a importância dos referidos instrumentos – cada qual com finalidades diversas –, o mais adequado e relevante para orientar o juiz em decisões como progressão ou regressão de regime é o parecer da C.T.C. Afinal, quem melhor pode se manifestar sobre o comportamento do preso e, consequentemente, sobre o merecimento ou não de benefícios, é, inegavelmente, quem está em contato com ele no dia a dia. Por isso, a C.T.C. deveria constituir-se na “célula-mater”, na própria “inteligência” para a execução científica e eficaz da pena reclusiva de liberdade. Presos ligados ao crime organizado, por exemplo, podem ser detectados pelos profissionais da C.T.C. que atuam no presídio, ainda que nunca tenham cometido falta grave. Podem possuir prontuário “limpo”, mas desenvolverem atividade sub-reptícia no presídio, sem qualquer merecimento para a progressão(4). O exame criminológico, por seu turno, tem uma abordagem restrita, volta-se, em primeiro plano, para a dinâmica do ato criminoso e, quanto à recuperação, pode, no máximo, oferecer uma “avaliação pontual” de aspectos relativos à mesma.

Como é sabido, a LEP foi modificada pela Lei 10.792/03, que restringiu consideravelmente a atuação da C.T.C. ao condicionar determinados benefícios prisionais apenas a “bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento” (art. 112, caput). Um dos principais motivos alegados para esta alteração foi o fato de que os laudos eram elaborados de forma mecânica, padronizada. Porém, conforme magistério de Guilherme de Souza Nucci, esta mudança foi péssima para o processo de individualização executória da pena, e até mesmo inconstitucional: “Não se pode obrigar o magistrado, como se pretendeu com a edição da Lei 10.792/2003, a conceder ou negar benefícios penais somente com a apresentação do frágil atestado de conduta carcerária. [...] Se os pareceres e os exames eram padronizados em alguns casos, não significa que não mereçam aperfeiçoamento. Sua extinção em nada contribuirá para a riqueza do processo de individualização da pena ao longo da execução. E mais: se os pareceres da Comissão Técnica de Classificação eram tão imprestáveis para a progressão, deveriam ter a mesma avaliação para a inicialização da execução penal. Ora, quem padroniza para a progressão, pode perfeitamente padronizar para o início do cumprimento da pena. A mantença da Comissão para avaliar o condenado no começo da execução, mas a sua abolição para o acompanhamento do preso, durante a execução, é um golpe (inconstitucional) ao princípio da individualização da pena”(5). Este entendimento tem ganhado força nos últimos tempos, tanto que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 1294/2007) que altera mais uma vez a LEP, prevendo que, em casos de condenação por crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, a progressão de regime, o livramento condicional, o indulto e a comutação de pena dependerão de parecer da C.T.C. e do exame criminológico.

Infelizmente, já se tornou fato notório no Brasil a existência de disposições legais que, apesar de regularmente em vigor na ordem jurídica, não desfrutam de efetividade, ou seja, não são vivenciadas na sociedade. Constatada essa triste realidade, a verdade é que a LEP possui grande quantidade de determinações que “não pegaram”. Com relação à individualização executória da pena a situação não é muito diferente, como observa José Antonio Paganella Boschi: “Muito embora as eloqüentes determinações legais, os condenados [...] não são classificados para a individualização da execução, mas recolhidos às penitenciárias para cumprimento de penas em ambientes coletivos, sem infra-estrutura condigna, sem trabalho, ficando na maioria das vezes entregues à própria sorte. A individualização da pena na fase de execução é, no Brasil, ainda uma garantia vaga, indefinida, etérea, que permite afirmar que a reclusão e a detenção não ressocializam, porque não há ressocialização sem tratamento e sem a livre disposição do condenado de tratar-se”(6). Vale citar o caso das C.T.C., que embora contempladas em lei, não existem em muitos Estados, ou, quando existem, operam de forma deficiente.

Nesta esteira, cremos que a má qualidade dos laudos técnicos pode ser atribuída, em boa parte, à estrutura precária das C.T.Cs.. Isto ficou demonstrado no Relatório da Situação do Sistema Penitenciário, elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, no período de outubro de 2007 a abril de 2008. Segundo o documento, uma das principais deficiências do Sistema Penitenciário Brasileiro é justamente a realização do programa individualizador da pena, devido à falta de técnicos e de treinamento dos mesmos para comporem as C.T.Cs.. Apenas o Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Piauí, Paraná e Rio de Janeiro possuem C.T.Cs. instituídas em todos os estabelecimentos penais. O Espírito Santo possui 3 estabelecimentos que dispõem de C.T.Cs., embora em 11 estejam legalmente instituídas por portaria. Maranhão, Paraíba e São Paulo possuem C.T.Cs. instituídas em algumas unidades. As principais dificuldades apontadas pelas Unidades Federativas para a não instituição de C.T.Cs. é a falta de técnicos e de infraestrutura.

Uma observação final. Note-se, no art. 6º da LEP (antiga redação), um “detalhe” importante: a C.T.C. era incumbida da função de propor as progressões! Conclui-se que a C.T.C., diversamente da equipe de perícia (exame criminológico), podia (e até devia) tomar a iniciativa nos procedimentos de progressão de pena, ao constatar a conveniência da mesma. Se isto de fato ocorresse, teríamos uma execução de pena realmente dinâmica e humana, quem sabe até em prol da própria paz na população carcerária, que veria o Estado atento aos seus direitos e interesses. E o maior interesse do preso (arriscaríamos a dizer que até mesmo antes de sua saúde) é este: reconquista gradativa de parcelas de sua liberdade, a qual lhe deveria ser concedida o mais prontamente possível, a partir da constatação de seu direito e seus méritos. Estamos aqui longe, muito longe do tradicionalmente temido exame criminológico. Caso já tivesse sido introduzida, para valer, toda esta dinâmica das C.T.Cs. na execução da pena privativa de liberdade, com seu consequente parecer, arriscamo-nos a dizer que as facções criminosas, se surgissem, talvez não tivessem conquistado tanta força junto à população carcerária. Neste aspecto, as modificações trazidas pela Lei 10.792/03 representaram um retrocesso, pois se os laudos eram ruins, como muitos apontavam, o correto seria buscar seu aprimoramento, não suprimi-los. O resultado é que temos hoje benefícios prisionais lastreados em mero atestado de boa conduta fornecido pelo diretor do presídio. Será esse o avanço que os detratores dos laudos técnicos queriam? Por outro lado, de nada adiantará modificar novamente a lei para restaurar a importância dos pareceres – como agora se defende – se os estabelecimentos prisionais não possuírem C.T.C. com infraestrutura adequada para sua elaboração.

NOTAS

(1) Sobre exame criminológico enquanto perícia e sobre perícia, ver Moraes Pitombo, S. M. de., Ainda o exame criminológico, Jornal do Advogado, ano XII, n. 122, São Paulo, julho de 1985.

(2) Sobre a natureza do parecer de C.T.C. ver Sá, Alvino A., Criminologia Clínica e psicologia criminal, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1987, cap. 8.

(3) Um dos autores do presente artigo, Alvino A. de Sá, tendo atuado muito tempo como perito em exames criminológicos, é testemunha disso.

(4) Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 3ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 410.

(5) op. cit. p. 410. Embora a Lei 10.792/03 tenha restringido sobremaneira a importância das C.T.C. e pretendido abolir o exame criminológico, a jurisprudência chegou a uma solução intermediária: embora o exame não seja obrigatório para a progressão de regime, o magistrado pode solicitá-lo quando entender necessário, desde que o pedido seja devidamente fundamentado.

(6) Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000. p. 63.

Alvino Augusto de Sá
Doutor em Psicologia Clínica,
Professor de Criminologia (Clínica) na Faculdade de Direito da USP

Jamil Chaim Alves
Mestre em Direito Penal e Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Ciências Criminais da PUC/SP. Juiz substituto em SP.

SÁ, Alvino Augusto de. ALVES, Jamil Chaim. Dos pareceres da comissão técnica de classificação na individualização executória da pena: uma revisão interdisciplinar. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 7-9, ago. 2009.

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