Considerando o altíssimo grau de atuação do Estado na esfera de liberdade das pessoas acarretada pela execução da pena, tornam-se imprescindíveis os limites impostos pelos princípios da execução inseridos no contexto do Estado Democrático de Direito. De fato, nesse modelo de Estado, não faz sentido a idéia de “relação jurídica especial de poder” supostamente existente na execução, na qual o condenado, dada a sua condição de submissão extrema ao poder estatal, não teria a sua esfera de direitos devidamente protegida como qualquer cidadão; idéia essa que, no passado, justificou oficialmente inúmeras violações de direitos humanos fundamentais. Em suma, de acordo com o magistério de Anabela Miranda Rodrigues(1), “ficou para trás o tempo em que o condenado à pena privativa de liberdade era despojado de todos os direitos, transformando-se em um objeto de uma relação especial de poder criada e mantida num espaço de não direito”.
Contudo, a efetividade dos princípios limitadores não é sentida na prática. Conforme relata criticamente Gustavo Octaviano Diniz Junqueira(2), “exatamente no momento em que a esfera de liberdades do indivíduo é concretamente vulnerada, suas garantias parecem diminuir, os instrumentos de proteção mais difíceis de acessar e a legislação menos clara, com pouco respaldo de construções dogmáticas”. O autor continua sua exposição sustentando, com razão, que “depois da condenação, a fragilidade do indivíduo mediante o poder do Estado é evidente; daí a necessidade de instrumentos de proteção. Não se busca com isso a impunidade, mas sim a racionalidade da execução penal, bem como sua adequação ao espírito democrático que, mais que uma convicção doutrinária, é imperativo constitucional”.
Por outro lado, é de se convir que o Estado, até mesmo para que possa exigir o cumprimento de suas normas e o respeito das pessoas aos direitos dos demais, deve antes dar o exemplo de respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos submetidos ao seu jugo punitivo, sob pena de se desmoralizar por completo diante da sociedade(3). Como se não bastasse, é sabido que o desrespeito aos direitos fundamentais dos apenados, por exemplo aplicando-se uma pena mais grave ou em condições mais severas do que a lei permite, gera motivada revolta, fazendo com que eles, outrora “vitimizadores”, se transformem em “vítimas” do Estado, numa clara inversão de valores com nefasto efeito para a credibilidade do poder estatal e com alto poder criminógeno(4).
De toda forma, estamos convictos de que a realidade da falta de aplicação efetiva dos princípios limitadores da execução não pode obstar uma análise atenta de tais princípios, mas sim deve encorajar uma construção dogmática comprometida com os mesmos. Todavia, antes de abordar os princípios limitadores da execução, cumpre esclarecer que os princípios penais gerais, como o da legalidade, isonomia, devido processo legal, presunção de inocência, proporcionalidade e individualização da pena são plenamente aplicáveis à fase executiva. Lembramos que, de acordo com os artigos 3º da LEP e 38 do CP, ao condenado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença condenatória e pela lei, sempre nos estritos limites impostos pela Constituição Federal.
Existem também princípios específicos referentes à execução penal democrática, os chamados princípios limitadores, objeto do presente estudo, que passamos a expor esquematicamente: humanidade das penas, vedação ao excesso de execução e personalidade ou intranscendência.
O princípio da humanidade das penas deriva do sentimento comum aos seres humanos de “boa formação ética”, que observam o apenado como um igual que apenas cometeu um crime, não tendo por conta disso negada a sua inerente natureza humana. Conforme explica René Ariel Dotti(5), “embora se admita a necessidade de punição, repugna à consciência de todos a inflicção de castigos cruéis e ofensivos à dignidade humana que sempre permanece, em maior ou menor escala, até no pior delinqüente”. No mesmo sentido, ponderam Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Correa Júnior(6) que “é através da forma de punir que se verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo pois, nos tempos atuais, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do Homem, sujeito de direitos fundamentais invioláveis”.
A humanidade das penas é expressamente prevista na Constituição Federal que proíbe, no art. 5º, inc. XLVII, as penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de trabalhos forçados, de banimento e cruéis de todo gênero (penas corporais, infamantes etc.). No mais, a CF também garante, ao menos no plano abstrato (art. 5º, inc. XLIX) o respeito à integridade física e moral dos submetidos à pena privativa de liberdade. Por fim, o respeito à dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, exposto de maneira incondicional no art. 1º, inc. III, da CF, também resguarda o princípio da humanidade das penas.
Não podemos nos olvidar que no conceito de pena cruel, expressamente proibido pela Constituição em respeito à humanidade das penas, sem dúvida alguma se encaixa a pena privativa de liberdade cumprida em condições de superlotação, sem o mínimo de higiene, salubridade, segurança ou qualquer dos requisitos mínimos de sobrevivência digna. Os cárceres nessas condições, extremamente comuns no Brasil, com sua existência, indubitavelmente desrespeitam a Constituição Federal e põe por terra o princípio da humanidade das penas(7).
O princípio da vedação ao excesso de execução é decorrente do princípio do respeito à coisa julgada, que possui assento constitucional (art. 5º, inciso XXXVI, da CF). De fato, conforme dispõe o art. 1º da LEP, a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal, não podendo dela se distanciar sob pena de ofender o título executivo revestido da autoridade da coisa julgada. A LEP ainda dispõe, no art. 185, que haverá excesso de execução sempre que algum ato realizado no bojo do processo executivo for praticado fora dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares. Em consonância com o art. 3º da LEP, percebe-se que haverá excesso de execução sempre que for atingido algum direito do condenado não restringido pela sentença condenatória ou pela lei.
Interessante constatação sobre o princípio em questão é feita por Gustavo Octaviano Diniz Junqueira(8): “as conseqüências de tal princípio são óbvias na teoria geral do processo, mas mais eficazes no processo civil, quando a execução a maior causa escândalo e, invariavelmente, é afastada desde logo pela totalidade dos tribunais. Incrível que o panorama não seja o mesmo na seara criminal, quando o cumprimento de pena em regime mais grave que aquele autorizado pela sentença não causa o mesmo escândalo, e subsistam ainda posições jurisprudenciais (já minoritárias) ratificando que a violência estatal efetivada seja maior que a disposta na sentença”.
Assim sendo, sempre que a execução for além do permitido pelo título executivo corporificado pela sentença, vulnerando com isso a coisa julgada e gerando excesso de execução, deve ela ser imediatamente corrigida pela atuação do Judiciário. Contudo, a jurisprudência ainda não considera como excesso de execução a pena de privação de liberdade cumprida em condições desumanas; que, como já visto, viola também o princípio da humanidade das penas. Apenas quando a privação de liberdade, assim como qualquer outra modalidade de pena, respeitar estritamente os limites de restrição de direitos imposta na sentença, que deve necessariamente espelhar os limites da lei (princípio da legalidade das penas), poderemos falar em efetivo respeito ao princípio da vedação ao excesso de execução.
O princípio da personalidade ou intranscendência é aquele pelo qual a pena só pode ser dirigida contra o infrator, não podendo transbordar suas fronteiras aflitivas para qualquer outra pessoa. Segundo explica René Ariel Dotti(9), “sendo a pena o efeito de uma causa determinada e consistente no delito censurável na pessoa de seu autor, somente contra este deve recair a sanção”. Justifica-se tal princípio pela idéia de responsabilidade pessoal do autor pelo seu fato típico, ilícito e culpável. A personalidade da pena possui guarida na Constituição Federal que, em seu art. 5º, XLV, afirma que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
Trata-se de um princípio simples de ser explicado e abstratamente aplicado. Qualquer regime democrático repudia as antigas sanções de infâmia ou confisco contra a família do criminoso. No entanto, é sabido que qualquer pena e, em especial, a de prisão, afeta o círculo de pessoas próximas ao condenado. Famílias ficam privadas de pais e de mães que, encarcerados, não podem provê-las, ocorrendo uma verdadeira “transferência da pena.” Raúl Cervini(10) ainda adverte sobre o sério problema de “generalização” e “contágio de rótulos”, pelo qual a sociedade tende a discriminar a família do apenado pelo simples fato de um familiar ter cometido um crime, numa espécie de “pena de infâmia” sem previsão legal.
Dessa forma, medidas devem ser tomadas para diminuir os reflexos que a punição penal gera sobre círculo de pessoas que circundam o apenado. No nosso ordenamento está previsto o auxílio-reclusão como benefício previdenciário com essa finalidade (art. 80 da Lei nº 8.213/91). No plano da execução penal, o direito à visita (direito do preso e das pessoas de seu círculo afetivo), assim como as medidas relacionadas à mulher presidiária gestante ou lactante, a quem devem ser destinados direitos específicos em prol do desenvolvimento sadio dos seus filhos (direitos das mães e de seus filhos), também podem ser citados.
Concluindo, destaca-se o caráter vinculante dos princípios expostos. Tais princípios devem orientar a interpretação e aplicação de todas as normas da execução penal, sejam administrativas ou legislativas, assim como afastar aquelas que são contrárias. Tudo isso com vistas a concretizar os postulados da Constituição Federal, fornecendo-lhe a mais ampla efetividade possível.
Notas
(1) Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária. São Paulo: RT, 2001, p. 65.
(2) Legislação Penal Especial. V. 1, 3ª ed., São Paulo: Premier Máxima, 2006, p. 27.
(3) Cf. MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho. Barcelona: Ariel, 1999, p. 147.
(4) Segundo afirma Erwin Goffman (Manicômios, Prisões e Conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 56), “depois de um delinqüente ter sido submetido a castigo injusto ou excessivo, bem como a tratamento mais degradante do que o previsto em lei, passa a justificar o seu ato — o que não podia fazer quando cometeu. Decide “descontar” o tratamento injusto na prisão, e a vingar-se, na primeira oportunidade, através de outros crimes”.
(5) Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. 2ª ed., São Paulo: RT, 1998, p. 222.
(6) Teoria da Pena. São Paulo: RT, 2002, p. 87.
(7) NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2ª ed., São Paulo: RT, 2007, p. 400.
(8) Op. cit., p. 31.
(9) Op. cit., p. 218.
(10) Os Processos de Descriminalização. 2ª ed., trad. Eliana Granja et al., São Paulo: RT, 2002, p. 51.
Fernando Vernice dos Anjos, Defensor público e mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.
Boletim IBCCRIM nº 194 - Janeiro / 2009
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