O interrogatório passou por significativas alterações no processo penal brasileiro. A doutrina discutia até mesmo sua natureza jurídica, ou seja, se constituía meio de prova, por sua localização topográfica no Título pertinente a provas no CPP, ou se seria um meio de defesa(1). Prevalecia o entendimento conciliatório, que apontava ambas as características, tanto instrutória quanto defensiva, no ato. Atualmente, todavia, seu aspecto de ato de defesa ganha vigor. Nas palavras de Ada Grinover: “segundo a moderna doutrina processual, o interrogatório, muito mais do que meio de prova (embora as afirmações do suspeito ou acusado possam constituir fonte de prova), é considerado meio de defesa”(2).
Assim, com o advento da Lei 10.792/2003, foi realçado o caráter defensivo do interrogatório. Anteriormente, o interrogatório assumia feições de ato nitidamente judicial. Acusação e defesa não tinham participação na oitiva do denunciado. Contudo, a lei inovou, prevendo no artigo 188 do Código de Processo Penal a possibilidade de pedido de esclarecimentos ao interrogando. E mais, no artigo 185, caput do CPP, estabeleceu a imprescindibilidade da defesa técnica na realização do ato, e no § 2º do mesmo artigo, estatuiu a necessidade de entrevista prévia do acusado com seu defensor, além de expressamente consagrar, no artigo 186 do CPP, o direito ao silêncio, já decorrente, ainda que implicitamente, de imperativo constitucional.
Porém, em termos procedimentais, o caráter defensivo do interrogatório não era em plenitude atendido. A regra era que o interrogatório inaugurava a instrução criminal. Primeiramente, ouvia-se o acusado, e depois eram colhidas as demais provas. Nas palavras de Fauzi Hassan Choukr: “A partir da compreensão que se tenha do ato de interrogatório inúmeras conseqüências advirão. Uma delas é a colocação tópica do ato. Não por acaso, entendido pelo Código de Processo Penal como meio de prova, aloca-se no Título VII do Livro I do Código, exatamente do que trata da prova e, no desenvolvimento do procedimento ordinário é ele o primeiro ato de ‘instrução’ quebrando, assim, a clássica idéia que a defesa tem a palavras por último. Ao concebê-lo como meio de defesa — melhor acepção dentro da estrutura acusatória — o interrogatório deveria encerrar o procedimento”(3).
No Direito brasileiro, a única exceção que se conhecia, em que o interrogatório encerrava a instrução em audiência, era o rito sumaríssimo da Lei 9.099/95, conforme a previsão de seu artigo 81. Tal sistemática sempre foi aplaudida pela doutrina, apontada como medida de garantia da ampla defesa(4). Afinal, o acusado teria ciência de toda a prova contra si foi produzida, podendo ao final rebatê-la.
Em franco avanço político-criminal, a recente reforma do Código de Processo Penal estatuiu, como padrão procedimental, a alocação do interrogatório no final da audiência de instrução e julgamento. Tanto a Lei 11.689/2008, reformadora do procedimento especial do Tribunal do Júri, quanto a Lei 11.719/2008, que, dentre outros assuntos, trata da reforma dos procedimentos, densificaram no CPP a marca defensiva do interrogatório, como verdadeiro instrumento de autodefesa do acusado. Como observa Eugênio Pacelli de Oliveira: “Como ele, agora, será o último a ser ouvido, poderá, livremente, escolher a estratégia de autodefesa que melhor consulte aos seus interesses”(5).
Assim, no procedimento especial do Tribunal do Júri, e no procedimento comum (ordinário, sumário e sumaríssimo), a regra atualmente é o interrogatório no fim da instrução. E, como o procedimento comum serve de standard para os demais, mesmo os procedimentos tidos como especiais, como é o caso do procedimento de crimes funcionais e dos delitos contra a propriedade imaterial, e ainda de algumas leis especiais, como a Lei de Falências, se amoldam, em certa fase do procedimento, ao rito comum, seguindo esse mesmo regramento.
É certo que ainda se encontram em vigor procedimentos em que, destoando de tal sistemática, o interrogatório se situa no início da instrução. É o caso, por exemplo, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que, apesar de relativamente recente, no seu artigo 57 estruturou seu procedimento nos moldes de outrora, com o interrogatório inaugurando a instrução oral. Nada mais fez do que seguir o modelo que dominava quando de sua entrada em vigor. O mesmo ocorre, ainda exemplificativamente, no procedimento criminal previsto na Lei de Imprensa e também no procedimento criminal disciplinado no Código Eleitoral, em que, até dezembro de 2003, sequer havia a previsão de interrogatório. Nos delitos de competência originária dos tribunais, igualmente, o interrogatório é no início do processo, nos termos da Lei 8.038/90.
Espera-se que, em homenagem à ampla defesa e seu significado político-criminal em um Estado Democrático de Direito(6), no futuro torne-se imperativa, para todos os procedimentos, a instalação do interrogatório no encerramento da instrução. Contudo, uma questão que pode suscitar controvérsias é se, mesmo no caso de procedimentos em que hoje se tem a previsão legal do interrogatório no início da instrução, como no caso da Lei 11.343/2006, poderia o juiz proceder ao interrogatório no final da audiência. A princípio, nada impede, mas ao contrário, até parece conveniente, que nestes casos também o magistrado, ainda que em interpretação contra legem, possa interrogar o acusado no final instrução. Afinal, assim estará homenageando o ditame constitucional da ampla defesa, além de estar afinado à nova percepção do legislador acerca do locus adequado do interrogatório em uma estrutura procedimental comprometida com a reafirmação dos valores constitucionais. Contudo, não faltariam aqueles que, em nome da observância do procedimento firmado em lei, questionariam a medida.
Notas
(1) José Frederico Marques, considerando a localização do interrogatório no Código de Processo Penal, era categórico ao afirmar que: “O interrogatório é, atualmente, meio probatório, pois que, entre as provas, o arrolou o Código de Processo Penal” (MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. 02. 2ª ed., Campinas: Millennium, 2000, p. 386). Entendendo tratar-se de meio de prova, que pode, eventualmente servir à defesa: TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. v. 01. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 359-360.
(2) GRINOVER, Ada Pellegrini. “A Reforma do Processo Penal”. In: WUNDERLICH, Alexandre (org.). Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 08. Em sentido semelhante: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. v. 01. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 598.
(3) CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 343.
(4) Nesse sentido: JARDIM, Afrânio Silva. “Juizados Especiais Criminais (Lei 9099/95)”. In: Direito Processual Penal: Estudos e Pareceres. 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 366.
(5) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 326.
(6) Acerca do significado da ampla defesa para um Estado de Direito, conferir: ROXIN, Claus. “Presente y futuro de la defensa en el proceso penal del estado de derecho”. In: Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. Traducción de Oscar Julián Guerrero Peralva. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2007, pp. 39-70.
Reinaldo Daniel Moreira, Advogado; professor de Direito Processual Penal na especialização em Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora; professor de Direito Processual Penal e Direito Penal na Faculdade Metodista Granbery, de Juiz de Fora; Mestre em Direito Público pela UERJ.
Boletim IBCCRIM nº 194 - Janeiro / 2009
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