Acontece com mais frequência do que se poderia esperar que médicos, das mais variadas especialidades, sejam acusados por pacientes da prática de abusos sexuais cometidos no consultório. Segundo perfil desses profissionais, traçado pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) e publicado no "Jornal da Tarde" de 4/1, são, em geral, homens, casados e com discurso religioso.
Ao Cremesp compete apurar administrativamente os casos, podendo ser aplicadas penas de suspensão temporária ou cassação do registro que permite exercer a profissão.
Com relação à Justiça, a apuração dos fatos começa na polícia e termina com uma sentença judicial que pode condenar ou absolver o acusado por crime sexual.
Recentemente, veio a público o caso de um renomado médico que está sendo acusado por várias de suas pacientes da prática de abusos sexuais cometidos durante procedimentos de fertilização. Ele nega. Esses possíveis atos libidinosos, em termos técnicos legais, são chamados de atentado violento ao pudor ou estupro, dependendo da conduta do agressor.
Podemos lembrar, ainda, o caso de outro médico que foi condenado por molestar pacientes sedados no consultório, em geral crianças. Alguns relatos são chocantes, mas as providências judiciais e administrativas que se conseguem alcançar nesses casos ficam aquém da gravidade dos delitos.
O Cremesp informou que, desde 2002, 65% das reclamações foram arquivadas, em geral por falta de provas, mesmo se sabendo que, nesses casos, a palavra da vítima tem especial relevância e deve prevalecer sobre a versão do acusado. Na Justiça, existe um entrave ainda maior.
Nos crimes contra a liberdade sexual previstos no Código Penal, dentre os quais o assédio sexual, o atentado violento ao pudor e o estupro, somente se procede mediante queixa da(o) ofendida(o) (artigo 225 do Código Penal), ou seja, em regra, a ação penal é privada. Se a vítima não for pobre e o crime não tiver sido praticado pelo genitor, padrasto, tutor ou curador e se não houver violência real, ela terá que pagar um advogado para processar seu agressor -e deve fazê-lo no prazo de seis meses subsequentes à ocorrência dos fatos.
O Ministério Público fica impedido de atuar na proteção à sociedade e em favor das vítimas, propondo a ação penal, como acontece na maioria esmagadora dos demais tipos de delito.
É claro que essas pessoas que foram prejudicadas pela inadequação da lei penal podem entrar no Juízo cível para pedir indenização por dano moral. No entanto, o que importa reiterar aqui é a urgência da reforma do estatuto penal no que se refere a esse inaceitável resquício de patriarcalismo, gerador de numerosas injustiças.
Há muito tempo que se debate a necessidade de eliminação do artigo 225 do Código Penal. Os crimes sexuais, antigamente cercados de preconceitos e pudores que desembocavam na impunidade, hoje são compreendidos como conduta inaceitável que atinge, no mais das vezes, mulheres.
A determinação de que a ação penal seja de natureza privada resultou de um entendimento do início do século passado de que a sexualidade constrangia, estigmatizava, conspurcava a mulher, mesmo quando ela fosse vítima de uma agressão e o ato sexual ocorresse sem o seu consentimento, mediante violência ou grave ameaça.
Assim, só ela poderia decidir punir seu agressor, trazendo a público atos tidos como vexatórios para si mesma. Como se não bastasse, teria de pagar por uma assistência jurídica que, na realidade, o Estado está obrigado a prestar. Além disso, estabeleceu-se um prazo exíguo de seis meses, período nem sempre suficiente para tomar uma decisão. No mais das vezes, a vítima precisa de tempo para absorver os efeitos devastadores das agressões sofridas e, com certeza, apenas se sentirá em condições de patrocinar a ação penal após angariar recursos necessários e se refazer emocionalmente.
O resultado é esse que estamos presenciando: mulheres sofrendo ataques sexuais em consultórios médicos, bem como em outros ambientes, e o Ministério Público de mãos atadas. Quantas vítimas teriam sido poupadas se a Justiça pudesse ter sido acionada nas primeiras ocorrências? O Código Penal é obsoleto e precisa ser alterado agora. De nada adianta a tipificação de uma série de condutas em que as vítimas, em geral, são mulheres se não há meios eficazes de punir o agressor.
Luiza Nagib Eluf, 53, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e autora de "A Paixão no Banco dos Réus", entre outros livros. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo FHC)
Folha de S.Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro.
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