terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Artigo: A publicidade no processo penal e a democracia

A democracia capitalista deve ser vista com desconfiança. É possível afirmar, com espeque em Weber(1), que a democracia capitalista é a engrenagem mais aperfeiçoada do Poder. Ou seja, esta espécie de democracia permite a dominação perfeita, vez que incute no dominado a ideologia de igualdade de participação no Poder e da liberdade social. Afinal, o mais perfeito dos Poderes é aquele que não é percebido(2).

O dominado toma como sua a ideologia do dominador(3).

Mais que isso, a democracia capitalista desconsidera a irracionalidade humana(4), irracionalidade que é amplificada e fomentada no exercício do Poder. Nesse sentido, então, a democracia capitalista é uma emboscada, uma estratégia anestésica do Poder(5). A armadilha dos ingênuos, a estratégia do Capital e o discurso dos "homens de boa vontade". Mas quem nos protege da bondade dos bons?

Em suma, a democracia capitalista pressupõe a exclusão. Como bem nos lembra Aristóteles, somente os homens livres exercem a liberdade política, participam da polis e, para isso, faz-se necessário que possuam escravos, de sorte que estes possam proporcionar àqueles a liberdade do discurso(6), o desapego à necessidade de sobrevivência. Quem tem fome não é livre. Por tudo isso, a democracia capitalista deve ser compreendida com um objeto de fé ou, para ser otimista (ou seria utilitarista?), como um valor ideal que supostamente poderia ser perseguido.

II

É neste cenário "democrático" que o princípio da publicidade no processo penal está inserido. O princípio da publicidade no processo penal de hoje não é o mesmo de ontem. Parece está ocorrendo uma revolução silenciosa. Já não se sabe mais onde termina o limite de tal princípio e onde começa o território da liberdade de imprensa. Qual é a linha que demarca a fronteira entre o princípio da publicidade no processo penal e a liberdade de acesso à informação? O que resulta dessa confusão de direitos e princípio é a impressão de que os seus limites se diluíram. Foram dragados por um novo modelo de sociedade, que se estabelece pouco a pouco, de forma rápida e silenciosa, uma sociedade pós-moderna. Neste palco, os direitos e princípios alternam seus papéis, e disso resulta um único e ideológico conceito(7), o de publicidade. Mas este conceito, ao contrário dos demais, não encontra limites.

A publicidade invade os lares, devassa a intimidade, fragiliza os valores e redesenha, através da tecnologia (tecnocracia), a sociedade fluida, heterogênea, complexa, paradoxal e consumerista atual. Mas a embalagem não adverte: "cuidado, a publicidade faz mal à saúde"! Não seria a ingenuidade a verdadeira enfermidade?(8)

Quando a redoma da segurança está rachada, a escolha torna-se a ilusão de liberdade. O homem se vê perdido, desnorteado entre dúvidas, atordoado entre aparências de escolha.

Lacaio da desconfiança, servo da conspiração. A moral, pouco a pouco, se dilui, e a ética é re-programada(9). A luz do flash queima e a sombra se torna o melhor esconderijo. O dissimulado torna-se contagioso.

Enquanto isso, os estudiosos do Direito dedicam páginas e mais páginas para precisar os limites do que venha a ser o princípio da publicidade. Uns afirmam se tratar de princípio(10). Outros, por sua vez, sustentam que se trata de uma regra. Outros, ainda, afirmam que, em verdade, se trata de uma norma(11). Quando o Direito se divorciou da Filosofia, da Sociologia, da Psicanálise...? Seria a proporcionalidade a solução para o drama provocado pela publicidade? Eis a mais nova tábua de salvação! Não seria a proporcionalidade o mais novo e badalado mito do mundo arrogante jurídico? Para onde foram as certezas?(12) Tudo de repente ficou tão inseguro.

Constata-se, então, a necessidade de um novo olhar sobre o princípio da publicidade no processo penal. Um olhar que contextualize tal princípio numa sociedade contemporânea e que o analise a partir de uma perspectiva transdisciplinar. É neste teatro de tendências que a publicidade, este ser mutante (re)configurado na sociedade pós-moderna(13), é amplificada pelas ondas do rádio, artificializada por meio dos sinais da televisão e "globalizada" através da internet, a qual insere o homem no "ciberespaço", cria a aparência de inclusão para o excluído; constrói, destrói e reconstrói o significado de (demo)cracia; adapta, versatiliza e fluidifica a dose necessária e cotidiana de anestesia.

Esta mesma publicidade que administra o torpor do Vulnerável para evitar a sua crise de abstinência incontrolável, que transforma o homem em produto descartável.

Afinal, quem não tem presente se conforma com o futuro. Eis, então, que a overdose de publi-demo-cracia transforma o consumidor-cidadão em mercadoria(14). A epidemia depressiva é sintoma dessa agonia. Quanto mais o estranho se esconde, mais o nome dele é alardeado. Nunca antes a sociedade sofreu tanto de esquizofrenia.

Mas a publicidade não é a apenas um artigo de consumo, é também uma ferramenta do poder. Mais que isso, é um valor caro ao Poder. A publicidade cria uma realidade virtual mais real do que a real. O criptográfico é colocado à venda na prateleira. E, neste cenário de angústias, a democracia capitalista entra crise, ou será que é o Poder que está em crise? Ou melhor, não será que quem agoniza é o Capital? Não seria a hegemonia da democracia capitalista a engrenagem perfeita de dominação a serviço do Capital? Quem disse que o Estado detém todo o poder? Afinal, o mais perfeito dos poderes é aquele que não é percebido. O Eu, então, encobre o Outro e este se torna um segundo Eu. Afinal, quanto maior a liberdade de escolha do Ego, maior a capacidade de domínio do Alter.

Notas:

(1) WEBER, Max. Economia e Sociedade. Volume I. Brasília: Unb, 2004, p. 76-87.
(2) FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade e a Justiça. São Paulo: Atlas, 2002, p. 15.
(3) GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. passim.
(4) HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 83-92.
(5) LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo- Fase superior do Capitalismo. São Paulo: Centauro, 1990., p. 15-25.
(6) ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martin Claret, 2002. passim.
(7) MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 3ª edição, 1969. passim.
(8) LYOTARD, Jean-François. A Condição-Pós Moderna. Tradução: Wilmar do Valle Barbosa. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2006, p. 80.
(9) ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. passim.
(10) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Jéferson Luiz Camargo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. passim.
(11) ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos e Constitucionales, 2002. passim.
(12) PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 7-16.
(13) BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 52.
(14) BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: 70 Arte & Comunicação, 2007. passim


Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo é mestrando em Direito Público na linha de Limites à Validade do Discurso Jurídico na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Ciências Criminais na Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Penal e Processo penal da Universidade Católica do Salvador, professor de Direito Penal na Universidade Salvador (Unifacs). Analista previdenciário do INSS-BA na Procuradoria Federal Especializada.

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 25/01/2009.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog