sábado, 24 de janeiro de 2009

Artigo: Ofensividade funciona como legitimador de ilícito

A realidade contemporânea deixa cada vez mais à evidência a necessidade de refletir acerca do conteúdo material do ilícito penal, precisamente, a saber, o que pode ou deve ter dignidade de persecução penal. Enfatiza-se o ponto-de-vista do órgão titular da ação penal em vista de nele residir o impulso inicial para qualquer modalidade de discussão acerca da compreensão do ilícito penal, seja por se contentar ou não com a primeira decisão porventura emitida na persecução penal, fazendo criar, dessa forma, alguma jurisprudência.

A estrutura constitucional do Ministério Público como titular da ação penal pública, acrescido das variadas possibilidades instrumentais e materiais de evitação do manuseio da ação penal, permite compreender a queda de mais um mito, dentre vários outros, ainda apregoado como vigente nos bancos universitários, qual seja, da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública. Contudo, registre-se que esse não é o eixo da discussão no presente ensaio, mas sim uma mera contribuição acerca do limite material extraído da situação de fato considerada apta a legitimar a persecução penal.

1 — Modelo de crime como ofensa a bem jurídico

Adotando a compreensão de crime somente o fato que resulte “dano ou perigo a bens dotados de dignidade penal”,[1] questão problemática é saber a medida e a necessidade da intervenção jurídico-penal em certos fatos da vida. Daí surgem novos desafios de como tratar a ofensividade não apenas como elemento de garantia, mas também como núcleo (re)legitimante da persecução penal, permitindo uma revisitação ao ilícito-típico.

Importante anotar, inicialmente, a necessária distinção entre pecado e crime como a gênese do direito penal moderno, já outrora delineada por Cesare Beccaria no Do Delito e das Penas. Esse apontamento ganha relevo, pois durante tempos o ilícito penal mostrava-se como dimensão do pecado.

Não diferente foi a percepção de Ferrajoli distinguindo entre “quia prohibita” e “quia peccata”, o que, segundo referido autor, somente foi possível após a cisão entre Estado e Igreja,[2] malgrado ainda nos tempos atuais perdurar resquício dessa importante conquista secular.

Ainda nessa marcha, nos primeiros passos do Estado moderno o direito penal, ainda confuso, pautava-se na noção de direito subjetivo, por meio do qual promovia os princípios da liberdade e da igualdade, propiciando mínimas condições da vida em sociedade. A invocação do direito subjetivo de cada um, frente ao outro, demarcava a fronteira do lícito e do ilícito, de modo que crime seria “a violação do direito subjetivo”.[3]

O contributo da noção de crime como violação de direito subjetivo, em determinadas situações (crimes contra a religião e a moral sexual), na verdade, dificultava em muito sua constatação. Mais ainda, a ofensividade não se situa(va) na violação de um direito subjetivo, mas sim no objeto do direito (a vida, a honra, a integridade física, o patrimônio etc.). Surge, assim, um modelo de crime como ofensa a bens jurídicos, cujo marco teórico partiu de Birnbaum, em 1834, tendo o crime como a “lesão ou pôr-em-perigo, atribuível à vontade humana, de um bem a todos garantido igualmente pelo poder do Estado”.[4]

Sintetizando, Birnbaum contesta a abstração teórica do crime como violação de direitos subjetivos propugnando que “os comportamentos delitivos não afetavam direitos senão bens; o objeto jurídico da tutela jurídico-penal corresponderia, portanto, à ofensa de um bem e não à violação do direito subjetivo de outrem”.[5]

É certo que a ofensividade pode sofrer avaria no seu conteúdo de garantia a depender do valor atribuído à noção de bem jurídico pela função legislativa. Assim foi na experiência jurídico-penal da Alemanha nacional-socialista, ocasião em que o crime, modo autoritário, reduz-se à “desobediência aos deveres impostos pelo Estado”, sem desprezar a noção de bem jurídico que, pelos valores da Alemanha nazista, revelava uma concepção supra-individual.[6] Essa perspectiva mostra que a noção de crime está em correspondência ao modelo de Estado e que o princípio da ofensividade deve refletir, no Estado democrático e social de direito, maior compromisso com os direitos e garantias fundamentais.

2 — Fundamento constitucional da ofensividade

É sabido que princípios e regras são normas cuja distinção se dá em termos de conteúdo. Os princípios, normas prima facie, constituem exigência de otimização em uma convivência conflitual, vale dizer, admite balanceamento de valores e interesses; as regras estão submetidas à lógica do tudo ou nada, em convivência antinômica. O princípio do Estado de direito, estruturante de todo o sistema, sustenta a proposição de uma “ordem de paz” garantida pelo ordenamento jurídico, tendo por tarefa fundamental a tutela de bens.[7]

Do princípio do Estado de direito são oriundos dois princípios constitucionais de direito penal a serem considerados: a) o princípio constitucional de garantia, representado na necessária ofensa e fundado na necessidade de tutela do bem jurídico-constitucional (em especial da liberdade) sobre o qual incide a norma penal incriminadora; b) o princípio constitucional impositivo, representado pela intervenção penal necessária e fundado na necessidade de tutela de bens reconhecidos pela ordem jurídico-penal.[8] Há uma convivência conflitual entre esses dois princípios: um atuando como garantia da liberdade; o outro como dimensão objetiva dos direitos fundamentais (dever de proteção estatal ou imperativo de tutela penal). Nesse último aspecto há ampla análise por Vieira de Andrade[9], Alexy,[10] Feldens[11] e Sarlet,[12] os últimos dando destaque na proporcionalidade como proibição de excesso e proibição de insuficiência.

Retomando à ofensividade, da relação conflitual entre o princípio constitucional da garantia individual e o princípio constitucional impositivo da intervenção penal necessária vinga um princípio conformador que assegure um resultado prático de modo a não extrapolar os limites da tutela de bens jurídicos: o princípio da ofensividade.

Acentue-se o caráter dúplice das normas de direitos fundamentais que podem ser, simultaneamente, princípio e regra. Da inviolabilidade do direito de liberdade decorre o princípio da liberdade e a regra da liberdade. Enquanto princípio admite ponderação; enquanto regra, submetida ao duro regime da validade. Mesmo na condição de regra o conteúdo essencial da liberdade não pode ser violado, eis que enquanto direito fundamental sua restrição é submetida à ponderação de valores. Assim ocorre, concretamente, na hipótese de restrição da liberdade de alguém para realçar o valor de outros bens fundamentais, como a vida, integridade física, patrimônio etc.[13]

Dessa ponderação é possível excluir interesse que não seja bem jurídico-penal em face do direito constitucional à liberdade, eis que a dignidade da pessoa humana veda a instrumentalização do homem.

3 — Ofensividade e as modalidades de ilícito penal

Dado o assento constitucional da ofensividade, instrumento de legitimação do ilícito penal, cabe estabelecer as bases da noção de bem jurídico frente à política criminal sem que se relativize a ofensa como regra geral a todas as formas de ilícito penal.

Nessa direção, digna de registro é a posição de D’Ávila contestando a proposta de Mantovani que, mesmo reconhecendo a recepção constitucional do princípio da ofensividade, admite a derroga desse princípio diante da existência de crimes desprovidos desse atributo pela necessidade político-criminal de prevenção geral. Para D’Ávila, tal proposição conduz a uma inversão metodológica que não resgata o “conteúdo material do ilícito mediante a restrição do âmbito do tipo”, além de negar a ofensividade como norma constitucional de caráter duplo (regra e princípio) onde se conciliam as normas constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana como limites ao processo legislativo.[14]

A relevância da compreensão objetiva do ilícito penal como ofensa a bem jurídico está na capacidade de delimitar o conteúdo material do ilícito em suas variadas modalidades. Assim, de todo insustentável alegar a necessidade de crimes sem ofensa a bem jurídico como medida de prevenção geral a evitar ofensa a bem jurídico.[15]

Digna de registro é a avaliação do ilícito penal a partir da compreensão onto-antropológica do direito penal, proposta por Faria Costa na “precisa relação de cuidado-de-perigo do ‘eu’ para com o ‘outro’”.[16] Nessa compreensão, a ofensividade atua como critério de aferição do desvalor do resultado que expressa ofensa a bens jurídicos. Por sua vez, o bem jurídico expressa não apenas um valor positivo normativo, mas essencialmente o valor da ofensividade a partir do desvalor do fato.

Essa construção não se restringe aos crimes de dano ou de perigo concreto,[17] como possa parecer, mas alcança também os crimes de perigo abstrato. Esses últimos, apesar de receberem sérias críticas, não se mostram desprovidos de ofensividade, tanto que cada vez mais presentes como ocorre nas hipóteses de condução de veículo automotor, nas relações de informática, do meio ambiente e na tutela de outros bens coletivos e difusos, pautando-se na situação fática de probabilidade de perigo concreto.

Considerações finais

O modelo de crime como ofensa a bem jurídico vincula-se ao princípio constitucional da garantia de direitos fundamentais e ao princípio impositivo que legitima a intervenção penal como incremento de tutela aos mencionados direitos.

Nessa meta, afastam-se as perspectivas subjetivistas que consideram meramente a personalidade, a vontade ou atitudes interiores do agente, assentando-se no modelo de crime que tenha como função a tutela de bens jurídicos e cujo resultado jurídico se concretize no fato que expresse ofensa ou perigo de ofensa a bem jurídico.

O princípio da ofensividade realiza significativa função de legitimação do ilícito-tipo e orienta a atuação legislativa na política criminal, abarcando todas as modalidades de ilícito penal que redundem na ofensa ou no perigo de ofensa concreta a bem jurídico, sem os quais a persecução penal restará deslegitimada.

Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva, 5. ed. alemã, São Paulo: Malheiros, 2008. 669 p.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed., Coimbra: Almedina, 2004. 424 p.

COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (fragmenta iuris poenalis). Coimbra: Coimbra Editora, [s.d.]. p. 13-26.

D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios (contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Coimbra: Coimbra Editora, 2005. 444 p.

_____. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder (Coord.). Direito Penal Secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 71-96.

FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Editora dos Advogados, 2005. 223 p.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 766 p.

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais, ITEC e PPGCC da PUCRS, Porto Alegre, n. 12, p. 86-120, mar./abr. 2003.

SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem Jurídico-Penal e Engenharia Genética Humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. 438 p.

[1] D’ÁVILA, Fábio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de (Coords.). Direito Penal Secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 71-96.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 298.

[3] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 76.

[4] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 78-80.

[5] SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem Jurídico-Penal e Engenharia Genética Humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 49.

[6] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 82.

[7] D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios (contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica 85, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 65.

[8] D’ÁVILA, 2005, loc. cit., p. 66.

[9] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 245-281.

[10] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva, 5. ed. alemã, São Paulo: Malheiros, 2008, p. 450-461.

[11] FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Editora dos Advogados, 2005. 223 p.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais, ITEC e PPGCC da PUCRS, Porto Alegre, n. 12, p. 86-120, mar./abr. 2003.

[13] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 87.

[14] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 89-90.

[15] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 90.

[16] COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (fragmenta iuris poenalis). Coimbra: Coimbra Editora, [s.d.], p. 13-25.

[17] D’ÁVILA, 2006, loc. cit., p. 94-95.


Por Edimar Carmo da Silva é promotor de Justiça no Distrito Federal e mestrando em Ciências Criminais na PUC-RS.

Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2009

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