quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Artigo: O princípio da irretroatividade da lei processual penal material como garantia fundamental

É cediço, em doutrina e jurisprudência pátrias, que o princípio da irretroatividade da lei penal mais severa tem inteira aplicação no âmbito do Direito Penal, pois “lei posterior que de qualquer modo vier a prejudicar o agente não terá aplicação retroativa, ou seja, não poderá alcançar os fatos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor”(1). Até aqui nenhuma novidade, muito menos dificuldade de compreensão.

“CF: Art. 5º XL – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

O problema é quando nos deparamos com uma modificação processual penal. Até porque toda a doutrina, quando trata do princípio, o analisa apenas no âmbito do Direito Penal, como se o processo penal não fosse lei penal ou como se o princípio da aplicabilidade imediata, com sede infraconstitucional (art. 2º do CPP), se sobrepusesse à Constituição da República. E pior: como se o tal tempus regit actum tivesse a força normativa da Constituição. Ledo engano.

Tourinho(2) nos define o que são normas penais: “Todas aquelas que atribuem virtualmente ao Estado o poder punitivo, ou também, aos órgãos do mesmo Estado ou a particulares o poder de disposição do conteúdo material do processo, vale dizer da pretensão punitiva.”

Destarte, podemos asseverar que existem normas processuais penais materiais(3) que são amparadas pelo princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, por se tratar da garantia política do cidadão contra o exercício arbitrário do Estado e da sua mínima intervenção na esfera das liberdades públicas. Isso é viver em um Estado Democrático de Direito. É o preço que pagamos por viver em uma democracia.

Se o conteúdo do texto legal for de Direito Processual Penal material devemos submetê-lo à Constituição da República, sob pena do princípio da aplicabilidade imediata (art. 2º do CPP) se sobrepor ao da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, XL da CF). Em nenhum momento a Constituição diz que o referido princípio, ou que a expressão “lei penal”, somente se aplica ao Direito Penal material. Disso se ocupam os inimigos da Constituição, os que pensam ser ela apenas uma folha de papel.

Não há conflito entre os dois princípios, nem poderia haver. O que há é um “mal-estar hermenêutico”, ausência de interpretação constitucional.

Trata-se de (re)afirmação dos direitos e garantias fundamentais. Quer-se dizer: normas que fundam, que servem de alicerce, que dão início a uma construção, que tem caráter essencial e determinante e, por isso, dão origem ao Estado Democrático de Direito.

Logo, pergunta-se: a Lei 11.689/08 quando suprime o recurso de protesto por novo júri e transforma o seu procedimento especial escalonado em procedimento sumário, encurtando-o e diminuindo a oportunidade de defesa, dentre outras modificações, aplica-se aos fatos (crimes) anteriores a sua vigência?

Entendemos que não. Vejamos.

O recurso de protesto por novo júri tem sua origem no Império, quando o réu era condenado a pena de cinco anos de degredo ou desterro, três de galés ou prisão, ou pena de morte (art. 308 do Código de Processo Criminal de Primeira Instância), dando ao acusado a oportunidade de ser levado a novo julgamento a fim de que eventual erro judiciário pudesse ser revisto e reparado.

Ingressando na República mudamos sua fundamentação: será admissível sempre que a pena for igual ou superior a 20 anos de reclusão. Trata-se de matéria, exclusivamente, de Direito Penal benéfica ao réu que, uma vez excluída do Código, tem ultra atividade aos fatos que foram cometidos antes da vigência da Lei 11.689/08. Em outras palavras: a lei em comento é mais gravosa não podendo retroagir para alcançar os fatos que lhe são pretéritos.

Trata-se de aplicação do princípio constitucional da irretroatividade da lei processual penal mais severa (art. 5º, XL), sob pena de criarmos uma instabilidade jurídica. A lei nova, se benéfica, retroage. Do contrário, irá regular os fatos futuros. O princípio da aplicabilidade imediata da lei processual penal (art. 2º do CPP) tem que passar no filtro axiológico da Constituição, ou seja, se for benéfica a lei processual penal nova aplica-se, desde logo, aos fatos sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Do contrário, não.

No caso em tela, a revogação do protesto por novo júri é prejudicial ao réu que, quando na data do fato, tinha direito ao novo julgamento, caso fosse condenado ao quantum de pena igual ou superior a 20 anos de reclusão, em primeiro julgamento. As regras dos arts. 607 e 608 revogadas são de Direito Processual Penal material. Envolvem pena e o direito amplo de defesa.

Quanto ao rito sumário adotado houve diminuição do direito de defesa, coar­c­tando-o. Antes, o réu tinha direito a um rito bifásico com maior oportunidade de defesa. Agora, a lei nova restringe colocando-o em contato com seu defensor público (não o advogado) pela primeira vez na AIJ quando já será interrogado, sem que antes possa ter dito ao defensor público quais seriam suas testemunhas (§ 3º do art. 406).

Ora, como o defensor irá arrolar testemunhas e fazer uma resposta prévia a altura do fato imputado se sequer esteve com o réu, anteriormente? Como iremos ouvir as testemunhas de defesa, em um único ato, se o defensor público sequer sabe quem é o réu e quando souber já será na AIJ? A lei nova é boa para os advogados, mas não para a Defensoria Pública que é quem defende a maioria dos réus no júri. Os juízes, ao determinarem a citação do réu, desprovido de advogado, deverão determinar sua vinda ao fórum para se entrevistar com o defensor público a fim de que este possa oferecer a resposta prévia. É o mínimo.

Destarte, para os fatos cometidos anteriormente a vigência da lei o rito a ser seguido será o escalonado pela irretroatividade da lei processual penal material mais gravosa.

Somos contra a revogação do protesto por novo júri. Na democracia não se luta para perder direitos, mas para conquistá-los e preservá-los. Melhor seria mudar a fundamentação do recurso. Caberia sempre que a decisão dos jurados fosse por 4x3, condenando ou absolvendo. Ou se aumentássemos o número de jurados para 12, exigindo decisão por maioria, quando houvesse empate adotaríamos o resultado mais favorável ao réu.

Vamos aguardar o que a doutrina e os tribunais irão dizer.

Notas

(1) Greco, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 9ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 119, v.1.

(2) Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 29ª ed., Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 117, v. 1.

(3) Cf. Carvalho, Américo Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 2ª ed., Coimbra: Coimbra, 1997, p. 263.

Paulo Rangel
Doutor em Direito pela UFPR e promotor de Justiça, titular do II Tribunal do Júri

Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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