Uma coisa é a verdade histórica, que deve sempre ser reafirmada: a ditadura militar brasileira torturou. Outra coisa é a responsabilização criminal dos torturadores, que não tem lugar se for inconciliável com a democracia.
Na era contemporânea, só os democratas ficam bem no retrato da História. As ditaduras têm sido temporárias e, quando o vigor da democracia, cedo ou tarde, as acua, é natural a busca pela plena verdade histórica e pela responsabilização dos ditadores e seus agentes. Neste momento, porém, é importante perceber (e respeitar) os limites estabelecidos pela própria democracia.
Veja-se o que aconteceu na Espanha no ano passado. Após intensos debates no Parlamento, na imprensa e na sociedade, foi aprovada a Lei da Memória Histórica. Nela se declarou o "caráter radicalmente injusto" das decisões judiciais adotadas durante a guerra civil e a ditadura franquista, fundadas em perseguição política ou com base em procedimentos sumaríssimos. Declarou-se também a "ilegitimidade" dos órgãos judiciários que as proferiram.
A Lei da Memória Histórica espanhola, no entanto, apenas assegura a reparação moral, por meio da expedição de um certificado pelo governo. Ela expressamente exclui qualquer direito a indenização, vale dizer, não acarreta nenhuma responsabilidade para o Estado pelos atos reconhecidos como radicalmente injustos.
A discussão da Lei da Memória Histórica foi intensa, principalmente porque diversos movimentos políticos, espanhóis e internacionais, e alguns intelectuais de prestígio queriam que fosse decretada a nulidade de todas as decisões dos juízos e tribunais franquistas, e não simplesmente a declaração de sua "injustiça" ou "ilegitimidade". Os juristas espanhóis, contudo, mostraram as dificuldades dessa solução. Só o Poder Judiciário, por intermédio dos tribunais competentes, pode anular qualquer pronunciamento de seus juízes. A lei, ato do Poder Legislativo, não pode nunca interferir na autonomia essencial à Justiça. Trata-se de importante pilar do sistema democrático. Mesmo reconhecendo, para afirmar a memória histórica, a impropriedade das condenações judiciais da ditadura franquista, o Legislativo não pode declará-las nulas sem atingir a independência constitucional dos Poderes do Estado.
A lição que vem da Espanha mostra que, se a democracia (e só ela) propicia a afirmação da verdade histórica, nem sempre permite a responsabilização jurídica dos ditadores e seus agentes. A lei espanhola não pôde ir além de algumas fórmulas retóricas um tanto imprecisas e assegurar apenas a reparação exclusivamente moral. Não pôde repor ao devido lugar o que a ditadura corrompera.
A democracia impõe seus próprios limites, quando vista como um fim em si mesmo, e não apenas como momento transitório numa luta revolucionária. Se a anulação das condenações dos tribunais franquistas é incompatível com a repartição constitucional dos Poderes, valor caríssimo ao Estado Democrático de Direito, decretar aquela anulação por lei seria afrontar a democracia.
No Brasil, discute-se atualmente se a tortura seria crime político ou comum, porque só na primeira hipótese (e também na de ser conexo a crime político) os torturadores estão anistiados.
Por ironia da História, a tortura é crime comum quando classificada de acordo com o entulho autoritário. Pela Lei de Segurança Nacional (LSN), o crime, para ser político, além da motivação, deve implicar risco à integridade territorial, à soberania nacional, à Federação, etc. Por este conceito específico da LSN, decididamente, a tortura é crime comum.
Mas não é o caso de discutir a questão por um enfoque tão estreito, centrando-a no que diz a lei baixada antes da redemocratização. É óbvio que não se conseguiria enquadrar o ato do torturador a serviço da ditadura militar em qualquer conceito legal de crime político por ela mesma cunhado.
A motivação deve ser o critério único para definir se certa ação criminosa é política ou não. Devemos abstrair o "elemento objetivo" do tipo legal do crime político (risco à soberania, à integridade territorial, à Federação, etc.) e centrar a discussão unicamente no "elemento subjetivo", que é a motivação do criminoso. O crime político é sempre um meio (de moralidade posta ao lado) para se alcançar um objetivo (que se pretende moralmente sustentável), qualquer que seja o lado em que luta ou lutou o criminoso.
Se alguém procura a prevalência de determinada ordem para a sociedade praticando atos que atentam contra a pessoa ou o patrimônio, é político o crime. Não interessa qual é a organização política defendida pelo criminoso porque não tem sentido, na democracia, hierarquizar ideologias para tratar como crime político apenas o cometido por quem defende uma delas.
O roubo a banco é crime político quando praticado com o objetivo de financiar a luta por certa ordem social. Se busca o enriquecimento pessoal, é crime comum. O homicídio e o seqüestro também podem ser ou não crimes políticos, dependendo dos objetivos do criminoso.
Então, a tortura pode ser um crime político. Os torturadores da ditadura militar queriam obter informações sobre atividades contrárias ao regime de exceção ou, por vezes, forjar confissões. A motivação extrapolava a busca por benefícios pessoais diretos, tanto quanto no caso dos roubos a bancos perpetrados pelas organizações dedicadas à luta armada. Quem torturou para defender a ordem social que acreditava ser a melhor para o Brasil cometeu um crime, sem dúvida bárbaro e hediondo, mas um crime político.
Como não tem sentido, na democracia, hierarquizar ideologias, os crimes praticados na defesa da ditadura militar não devem ser despolitizados. A despolitização dos casos de tortura assim contextualizados é inconciliável com a democracia.
Fábio Ulhoa Coelho, jurista, é professor da PUC-SP
Estadão.
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