sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Artigo: Transexual: cirurgia não é lesão

No sentido do título, é o que se sustenta no Projeto de Lei nº 70/95, de autoria do Deputado Federal José Coimbra , cujo texto - favorável à legalização da cirurgia para mudança do sexo - foi objeto de apreciação, na Câmara, pela Comissão de Constituição e Justiça, onde, na sessão de 10 de maio último, aprovou-se o parecer do relator, Deputado Regis Fernandes de Oliveira , propício à recomendada descriminação dessa intervenção cirúrgica como delito de lesão corporal e, mais, à alteração do sexo também nos documentos de identificação.

Em seguida, a transcrição desse parecer - cujo autor prevê a apresentação do Projeto ao Plenário da Câmara Federal (com provável submissão prévia `a Comissão de Seguridade e Justiça) para outubro ou novembro deste ano:

"Projeto de Lei nº 70, de 1995 (do Sr. José Coimbra) - Dispõe sobre intervenções cirúrgicas que visem `a alteração de sexo e dá outras providências.

Relatórios - Cuida o projeto de acrescentar um parágrafo ao art. 129 do Código Penal, de forma a permitir a intervenção cirúrgica destinada `a alteração do sexo. Da mesma maneira, propõe-se a alteração da Lei de Registros Públicos, para possibilitar a adaptação da transformação física `a realidade registral. É o relatório.

Voto do Relator - O problema apresentado no projeto é de profunda discussão e desperta sensibilidade dos que o conhecem. A leitura de casos reais mostra as dificuldades por que passam os transexuais, desajustados com a rejeição do sexo biológico. Insatisfeitos, buscam viver de determinada maneira, em desconexão com sua realidade biológica. São homens físicos, mas rejeitam, psicologicamente, a conformação de seu corpo, passando a viver como mulher.

O rigor do padrão moral de outrora, cede espaço, hoje, `as novas realidades, aos novos costumes e a hipocrisia de então não mais encontra eco na vida e na ciência hodiernas.

Daí ter a questão que ser enfrentada sem preconceitos, uma vez que a ciência não os tem nem pode tê-los. Já vai de há muito o tempo dos preconceitos religiosos que viam a sexualidade apenas para fins de procriação. As mudanças sociais, com apelo na mídia, tranformam a sociedade, sem embargo da tendência conservadora que objetiva a proteção da família, bons costumes, etc.

De outro lado, surge a grande realidade empírica. Os costumes alteram-se, os comportamentos mudam, as condutas ficam mais flexíveis, fruto das informações de massa. Em conseqüência, as regras jurídicas não podem imobilizar-se. Ao contrário, devem adaptar-se aos novos tempos. Os comandos normativos dirigem-se a deteminada sociedade, a determinada comunidade. Não são conceitos desapegados de qualquer conteúdo, como se o mundo jurídico pudesse ser um mundo alheio ao que se passa na comunidade a que se dirige. Os comandos tendem a se alterar, na medida em que muda a realidade.

O homossexual tem preferência por pessoas do mesmo sexo. O bissexual tem satisfação indistinta com ambos os sexos. O transexual é o que rejeita sua conformação física, rejeita seu sexo biológico e identifica-se psicologicamente com o sexo oposto, embora não seja portador de qualquer anomalia. Sente-se alheio a seu meio social passando a assumir o sexo oposto. O organismo não rejeita; ao contrário, acompanha o desejo psicológico de comportamento de acordo com o sexo oposto.

A Associação Paulista de Medicina definiu o transexual como "o indivíduo com identidade psicossexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de mudança dos mesmos".

O transexual não se confunde com outras anomalias. Nem tem a tendência de comportamento vistoso ou anti-social, como os "travestis". Ao contrário, por assumir comportamento rejeitado pela sociedade, tende a tê-lo conflituoso, mas na sua intimidade. Não tem tendência de agredir a sociedade; tende a adaptar-se a ela, porque quer dela participar. Assim, sendo firma-se um primeira posição que é a de necessidade que têm os transexuais de adaptação, seja do corpo, seja da parte registral, do enfoque psicológico, com o que se farão seres sociais, novamente e plenamente neles encartados.

Diante da circunstância de se ter instaurado discussão sobre se comete crime o médico que efetua ablação de órgãos do corpo humano, impõe-se que se discipline o comportamento, tornado-o juridicamente permitido.

O que se propõe, no campo do Direito Penal, é que a operação médica não constitua fato típico do delito de lesão corporal. Ao contrário, que a conduta médica seja lícita e jurídica.

O projeto atende, então, `as reais necessidades de pessoas portadoras da anomalia conflituosa entre o corpo e a mente.

Como conseqüência evidente da descriminação do comportamento médico, resulta a alteração que deve ser efetuada na parte registral, uma vez que, mudando o sexo, troca-se o documento, para que a pessoa se sinta plenamente adaptada a sua nova situação e personalidade.

A operação e a mudança do registro muda, efetivamente, o sexo da pessoa.

Em conseqüência, torna-se indiscutível que o operado habilita-se a ter vida social normal, embora, em tese e por ora decorrente dos avanços da ciência, ainda não possa prociar. Evidente, todavia que poderá contituir família. Como já se observou, "la majorité de la doctrine n'admit que les trois cas suivante: défaut absolu de formes et incompétence du célébrants" (Planiol & Ripert , "Traité Pratique de Droit Civil Français", Paris, tomo 2, nº 252). No caso enfocado, não mais haverá identidade de sexo, diante da transformação científica e psicológica operada.

Eventualmente, poder-se-à ensejar a nulidade do casamento, em face do erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, caso não tenha sido este advertido ou cientificado do problema básico da procriação. Eventualmente, poder-se-ia sustentar a "impotência coeundi" (Silvio Rodrigues , "Ciclo de conferências sobre o Projeto de Código Civil", Revista do Advogado, nº 19, págs. 57/8). Quiçá, enganado o cônjuge, torne a vida insuportável. Entretanto, tais problemas serão melhor resolvidos pela jurisprudência caso a caso.

É tranqüilo na doutrina e na jurisprudência que a impotência "generandi" não tem o condão de invalidar o casamento. Sem embargo de não haver necessidade de adentrarmos a discussão, o problema será resolvido posteriormente, `a edição do diploma legal hoje apreciado.

A possibilidade do casamento foi bem analisada por Antonio Chaves ("Revista dos Tribunais", vol. 542/18 e seguintes).

Evidente resulta, da transformação operada, que todos os papéis deverão ser alterados, evitando, em conseqüência, que seja o operado alcançado pelo disposto nos arts. 304 e 307, ambos do Código Penal. Haverá uma nova qualificação, inclusive no âmbito da identificação civil, a fim de que seja outra a pessoa anterior.

Reforçando o entendimento de que não há crime no comportamento médico, afirma Heleno Claudio Frangoso que "não há dúvida de que na intervenção cirúrgica realizada com o consentimento expresso ou tácito, em caso de interesse médico, não há crime. A doutrina, entre nós resolve, geralmente, a hipótese como exercício regular de direito. Assim por todos os autores, veja-se a lição de Nelson Hungria " ("Comentários", I, 1/310).

Vê-se, do que se vem dizendo, que o projeto é apropriado, constitucional, jurídico e vem vasando em boa técnica legislativa. Uma única ressalva: o § 3º não pode subsistir, na forma em que está redigido. É que a determinação de averbação de ser a pessoa transexual quebra tudo que se vem dizendo até agora. A mácula seguirá a pessoa toda a vida e estará ela, sempre, sujeita a ser ridicularizada, caso não se guarde o sigilo da alteração proposta e realizada

Assim sendo, propõe-se que seja "cancelado" o registro anterior, lavrando-se outro, com os novos nomes e sexo e que a certidão seja apenas expedida mediante requerimento do próprio interessado ou determinação judicial. É o que ocorre hoje com a denominada adoção plena.

Sugere-se a seguinte redação:

"§ 3º - no caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro.

"§ 4º - é vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial."

Com tal providência, protege-se o transexual, que busca uma nova vida, livre de qualquer invasão em sua intimidade jurídica. Evidente que o Judiciário não pode ficar impedido de acesso ao documento, em face de problemas jurídicos que possam ocorrer. Em determinada causa, pode ser relevante a apresentação do documento, tornando-se possível sua exibição em juízo.

Impõem-se tais cautelas, para evitar a exposição do operado a ridículo ou que a operação seja utilizada como agressão `a privacidade da pessoa, em cumprimento ao inciso X do art. 5º da Constituição da República.

Deputado Regis de Oliveira
Relator

OLIVEIRA, Regis de. Transexual : cirurgia não é lesão. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.30, p. 06, jun. 1995.

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