Em razão de algumas leis municipais que, em boa hora, previram o pagamento, pela municipalidade, de profissionais médicos que realizem a chamada ligação das trompas de Falópio, popularmente conhecida como laqueadura, em mulheres carentes que já tenham outros filhos, levantou-se a posição equivocada e preconceituosa de alguns Conselhos Regionais de Medicina, no sentido de que referida operação cirúrgica configuraria o crime de lesões corporais dolosas, previsto no artigo 129 do Código Penal, especificamente como lesão gravíssima, prevista no § 2º, inciso III, do citado artigo, pela perda da função procriadora da mulher. Claro está que, para quem pensa assim, e pelos mesmos motivos, também a vasectomia será crime, já aí pela perda da função procriadora do homem.
Nada mais falso, porém. O artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, afirma que "fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas" (grifo nosso).
Ora, a não ser que se considere como letra morta o dispositivo constitucional retro, tem-se que a decisão da mulher, ou do homem, de se esterilizar cirurgicamente, para evitar filhos que não terá meios para criar com dignidade, insere-se perfeitamente no conceito de planejamento familiar, e a contracepção por meio cirúrgico é um recurso científico comum e ao alcance do casal, tanto quanto as pílulas anticoncepcionais ou a camisinha.
O que não se pode admitir é que a laqueadura, ou a vasectomia, sejam feitas sem o consentimento do paciente, pois é a própria Constituição que veda "qualquer forma coercitiva" de planejamento familiar. Se, porém, houver o consentimento do paciente, a hipótese não difere, substancialmente, de se permitir o corte das unhas ou dos cabelos (os quais, se feitos à força, também configuram crime de lesões corporais), ou mesmo a extração de um rim para efeito de transplante, nas hipótese reguladas pela Lei nº 8.489/92, mesmo porque a integridade física do indivíduo é direito disponível em inúmeras circunstâncias, sendo de toda justiça que o seja para efeito de se planejar uma vida digna, sem os atropelos e o desespero gerados pela miséria econômica, agravada pelo número excessivo de filhos não desejados.
É preciso dar um basta na hipocrisia social, que privilegia o atendimento cirúrgico de quem pode pagar por essa cirurgia, extremamente comum e freqüente, para permitir que também os desvalidos possam utilizar-se desse recurso científico, cujo acesso cabe ao Estado garantir, acima de dogmatismos de toda espécie que cercam a análise da matéria.
Cláudio Antônio Soares Levada
LEVADA, Cláudio Antônio Soares. Laqueadura não é crime. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.31, p. 08, jul. 1995.
Nenhum comentário:
Postar um comentário