De quantos males afligem de presente a Humanidade, nenhum disputa primazia à terrível. Aids, que arrrebata ao indivíduo aquilo que tem em maior preço: a vida. Mensageira da morte, sobre todos exerce implacável sua jurisdição. Poderosos e desvalidos, celebridades e obscuros, bons e maus; ninguém está seguro contra os efeitos de sua formidável tirania.
Uma casta e pessoas, contudo, existe que merece, por mui particulares circunstancias, especial atenção dos espíritos bem formados, notadamente dos constituídos em dignidade. Compõe-se daqueles que, havendo decaído (ainda mal!) de seu estado de liberdade, foram por isso excluídos do convívio social. Esses (os encarcerados) inspiraram sempre alguns acentos de compaixão no peito dos homens livres, ou porque, carecedores do sumo bem da liberdade, a própria vida lhes não devera parecer digna dos cuidados que lhe reservamos, ou porque, postos em regime de segregação, não lhes houveram de esquecer jamais aquelas pungentes palavras com que o divino Dante acrescentou o suplício dos répobros: "Não há dor, que maior seja, do que lembrar o tempo feliz dos dias da desgraça" (Inferno, canto V, trad, Joaquim Pinto de Campos)
Se a pena de prisão, ao aviso dos sujeitos eminentes em ciências e letras, é já um mal, "porque inútil como método penal e como fator de recuperação" (Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980, pág. 265, Outro tanto in Revista Forense: "A repressão pela expiação no cárcere não traz cura. Amontoa desespero sobre desespero", vol. 155, pág. 414), com maioria de razão o será quando associado a castigo corporal ainda mais aflitivo, como é a insidiosa enfermidade que subjuga os portadores do vírus HIV, quebrantando-lhes as energias e fazendo que, pelo comum, de humanos só conservem a figura.
Desses tais é forçoso que se amerceie a Justiça; mantê-los em calabouço, onde aguardem com resignação estóica o sopro frio da morte, não seria só rigor excessivo, que for a também desmarcada impiedade. A mesma legislação penitenciária é a que, nesses casos, ministra aos desgraçados os derradeiros lenitivos, com facultar-lhes o recolhimento à própria residência (cf. Art. 117, nº II da Lei de Execução Penal).
Portanto, uma vez que lhe tenha chegado à notícia que certo preso se ache em adiantado (não terminal somente) estágio de atroz moléstia, dê o Juiz, com a maior brevidade que couber no possível, as providências necessárias para removê-lo ao pé de seus familiares. É que, havendo-se declarado impotente a Medicina para conjurar o mal, for a de preceito que o Estado (que mais se conhece por ente sem entranhas) relaxasse o preso aos desvelos de sua família, a qual, unicamente, lhe poderia acudir com o remédio que serve de atenuar ao mesmo tempos os acharques do corpo e os da alma: o amor.
Tanto que diagnosticamente a doença gravíssima, a direção do presídio, firme em parecer médico oficial, comunicá-la-ia espontaneamente ao Juiz de Direito corregedor. Este, com o arbítrio do varão prudente, e sem fazer caso nem cabedal da pena imposta ao recluso, enviá-lo-ia aos seus, num preito sublime à piedade, considerando apenas no grande alcance do benefício (acaso o último), cuja concessão não encontra as regras do bom –senso nem faz rosto a seu amplo poder discricionário.
Mais que aconselhável, seria verdadeira obra de misericórdia isso de o Magistrado, para melhor aferir as condições físicas do enfermo, proceder a uma inspeção ocular e, de seguida, num generoso impulso de consciência reta, sensível sempre às tragédias humanas, transferi-lo para o domicílio, onde familiares o possam assistir até o doloroso momento em que ao curto dia de sua vida suceda a noite eterna.
Ato será esse que não desacreditará o Judiciário nem recomendará mal o Juiz; bem ao revés, concordará com aquilo do desafortunado Humberto de Campo: "A Justiça tem na mão uma espada, quando devia ter, no lugar desta, um coração" (Sombras que Sofrem, 1954, pág. 12).
Carlos Biasotti
BIASOTTI, Carlos. O preso aidético. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.27, p. 07, mar. 1995.
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