quarta-feira, 12 de maio de 2010

Artigo: Em busca das mortes perdidas: letalidade da polícia e política criminal

Em dezembro de 2009, a Human Rights Watch (HRW) divulgou um detalhado relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro e em São Paulo(1). Intitulado Lethal Force – Police Violence in Rio de Janeiro and São Paulo, o relatório evidencia o já conhecido alto índice de letalidade das polícias paulista e carioca, associado às equivocadas políticas de segurança pública adotadas em ambos os Estados. Ainda que não explicitamente formuladas e publicizadas em todos os seus detalhes estratégicos, tais políticas se apoiaram largamente, até o presente, na ideologia da guerra ao crime, que preconiza o enfrentamento militarizado e tem por efeito o aprofundamento, por meio de ações discriminatórias, da violência em determinadas regiões das cidades. O relatório aponta, outrossim, que os responsáveis por homicídios cometidos por policiais raramente são levados à Justiça e constata que muitos dos mortos em supostos confrontos com a polícia foram, de fato, executados. A dificuldade em levar os casos à justiça deriva, em parte, da dificuldade em se produzir provas, já que o local do suposto confronto raramente é adequadamente periciado. A inadequada investigação da polícia e o desinteresse do Ministério Público (que poderia, por exemplo, requisitar novas diligências) e do Judiciário levam o caso, em regra, a um inevitável arquivamento. Soma-se, assim, às políticas repressivas elaboradas pelo Executivo, a transigência e a cumplicidade das demais agências do sistema penal.
Os homicídios cometidos por policiais em serviço, a princípio, poderiam estar acobertados por excludentes de ilicitude, algo completamente irrelevante enquanto estes casos sequer são levados ao Judiciário. De fato, normalmente, as ocorrências são registradas como resistência seguida de morte, uma aberração jurídica que faz parte do cotidiano da polícia e que dá ares de legitimidade e legalidade, a partir de um registro administrativo, a todo e qualquer homicídio cometido pela polícia. Tais homicídios são em regra registrados como mera conseqüência secundária do crime que originou a ação do policial, o qual se torna sujeito passivo do crime (de resistência?)que, eventualmente, ocasionou uma morte. O registro tendencioso da ocorrência poderia ser minimizado se o Poder Judiciário e as autoridades de segurança pública estivessem comprometidos com uma política criminal menos excludente. Não estão.
Segundo Ferrajoli, “pouco importa que não exista pena de morte em um país se a morte se aplica ilegalmente, caso de muitos regimes ditatoriais, ou extra-legalmente, como ocorre em muitos países avançados em confrontos armados, não raro injustificados, entre polícia e delinqüentes”(2). No Brasil, as execuções sumárias são uma realidade pretensamente legitimada por uma população amedrontada e irresponsavelmente apoiada por autoridades sem disposição para incorporar, efetivamente, pautas de direitos humanos à segurança pública. Os confrontos armados entre polícia e delinquentes são uma realidade cotidiana e fazem parte de uma estratégia de enfrentamento militarizado, associada a uma suposta necessidade do recurso à violência letal. Esta é vendida como parte de um pensamento básico a respeito do combate ao crime organizado e à violência sistemática(3). Tais práticas são injustificáveis e de sucesso bastante duvidoso, exigindo uma radical alteração das estratégias de segurança pública. As execuções sumárias, que nada mais são que penas de morte de fato, legitimadas por meio de manipulações administrativas, jurídicas, políticas e midiáticas, aplicadas sistematicamente, devem ser uma preocupação central nesta alteração de rumos.
O relatório da HRW se baseia na premissa de que a segurança pública e os direitos humanos não são incompatíveis. De fato, assegurar os direitos humanos daqueles que cometem crimes e das pessoas que vivem em regiões sujeitas à violência, em especial nas periferias e favelas das grandes cidades, deve ser a prioridade de uma política criminal alternativa à política de enfrentamento bélico. As políticas de segurança pública repressivas aprofundam a desigualdade social em razão da seletividade própria do sistema penal. As violações de direitos humanos perpetradas pelo próprio Estado na atividade da segurança pública não são aleatoriamente distribuídas, concentrando-se, em seus aspectos mais graves, entre jovens, negros e pobres, com incidência regionalizada, razão de um complexo processo de estigmatização e discriminação. Daí, por exemplo, o tráfico de drogas ser combatido sob tiros e confrontos diretos entre polícia e pretensos criminosos nos morros cariocas, mas não nos bairros de classe média em que se desenvolve o mercado de entorpecentes.
Uma política criminal alternativa deve incorporar pautas amplas de direitos humanos, em duas frentes principais: a) Aqueles que cometem crimes devem ter seus direitos assegurados, em especial o direito mais básico à vida. Neste sentido, o uso da violência letal pela polícia deve ser excepcional(4), pautado pelos princípios da necessidade – segundo o qual só se deve atirar, com a finalidade de matar, em último caso, quando seja imprescindível para assegurar a própria vida ou a de terceiros – e da proporcionalidade – segundo o qual o policial deve atirar prioritariamente em regiões não vitais, preservando a vida do perseguido. Tais parâmetros devem ser incorporados ao treinamento policial e servir de base para o controle administrativo e judicial dos casos concretos de homicídios cometidos por policiais.
A atividade policial escapa, muitas vezes, dos controles estritamente legais, atuando com grande discricionariedade. Zaffaroni considera absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o princípio da legalidade quando se sabe que, estruturalmente, tais sistemas estão preparados para violá-lo. O que se pode pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais o número e a intensidade dessas violações, operando internamente em nível de contradição com o próprio sistema, visando obter mais elevados níveis reais de realização de princípios como o da legalidade(5). Tal exame está centrado na aplicação do direito penal em sede judicial, cujo horizonte de projeção é distinto daquele do direito aplicável a outras agências(6). Entretanto, estas agências, na medida em que se encarregam do controle do crime, devem subordinar-se, também, ao direito, a regras e princípios garantidores de direitos contra arbitrariedades decorrentes do exercício do poder punitivo.
b) Uma política de segurança pública de enfrentamento paga o preço caro e incontornável de tirar vidas de terceiros em decorrência dos confrontos e gera uma sensação permanente de insegurança nas pessoas que vivem em regiões violentas. Homens e mulheres que vivem nessas regiões devem ter uma atenção prioritária do poder público na busca pela superação da situação de vulnerabilidade de direitos e insegurança.
A ideia de que o recurso à violência letal seja um meio adequado de combate à criminalidade é equivocada do ponto de vista valorativo e insustentável do ponto de vista jurídico. Políticas radicais e intransigentes tendem a intensificar a pobreza, sendo, por isso, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, tanto mais quando são objetivos fundamentais da República construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização (CF, art. 3º, incisos I e III)(7). Uma alternativa a tais políticas preconiza que a atuação da polícia esteja pautada em parâmetros legais, submetida a controle interno e externo e que a segurança pública seja elaborada com base na universalidade (subjetiva) e amplitude (objetiva) do próprio direito à segurança.
A segurança pública apoiada primacialmente no enfrentamento bélico está fadada reproduzir a insegurança e a desigualdade social. Os mortos em decorrência deste tipo de atuação da polícia não vivem em condomínios fechados ou em bairros seguros, mas convivem com a sistemática ineficácia dos seus direitos e sobrevivem com privações nos mais diversos sentidos. Aqueles historicamente excluídos, ao se tornarem os alvos preferenciais da segurança pública repressiva, se transformam na cereja do bolo da desigualdade social no Brasil. A incorporação de uma visão de direitos humanos na formulação de políticas e no controle administrativo e judicial fundamenta uma estratégia adequada para lidar com o problema do direito à segurança de toda a população, com a finalidade mais urgente de reduzir para níveis razoáveis a letalidade das políticas atuais.

NOTAS

(1) A íntegra do relatório esta disponível no Portal do IBCCRIM, em http://www.ibccrim.org.br/upload/le_force.pdf.
(2) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria del Garantismo Penal. Madrid: Trotta, 1995, p. 763
(3) A ideia de que “bandido bom é bandido morto”, mais do que da opinião pública, é expressão da opinião publicada, isto é, de interesses pretensamente uniformes que são veiculados pela mídia com o efeito de legitimação da política de segurança pública (pública?) repressiva e discriminatória.
(4) A realidade hoje é completamente distinta: segundo o relatório da HRW, a ROTA, de 2004 a 2008 matou 305 pessoas, deixando apenas 20 feridos. Já a polícia de Duque de Caxias matou, em 2008, 103 pessoas, enquanto apenas 1 policial foi morto no mesmo ano. Estes exemplos indicam, por um lado, que a estratégia de segurança pública é, ao menos em determinadas situações, usar violência letal, isto é, “atirar para matar” e, por outro lado, que não há confrontos em muitas das ocorrências de mortes causadas por policiais.
(5) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das Penas Perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 235.
(6) Idem, p. 185 e 186.
(7) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Pena e Política Criminal. A experiência brasileira. In: Alvino Augusto de Sá; Sérgio Salomão Shecaira. (Org.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 321-334.

Rafael de Sá Menezes
Estudante de Direito e membro do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM.

MENEZES, Rafael de Sá. Em busca das mortes perdidas: letalidade da polícia e política criminal. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 18, abr., 2010.
 

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