sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Artigo: Regressão nova, velha barbárie

O debate sobre as parcerias público-privadas no sistema penitenciário envolve questões de natureza jurídica, econômica e política. Ao analisá-lo, tomo como referência principal o caso norte-americano, o mais antigo, abrangente e representativo e, nessa medida, o que mais tem influenciado formuladores de políticas mundo afora.
Do ponto de vista jurídico, discute-se a legalidade da transferência da administração penitenciária a agentes privados. O contencioso envolve desde a questão da natureza jurídica da execução da pena de prisão, passando pelo monopólio estatal do uso legítimo da força e pela regulamentação do trabalho do preso, até o estatuto da responsabilidade civil do Estado e da iniciativa privada em processos envolvendo superpopulação, maus-tratos e rebeliões.
Vale a pena mencionar a conhecida afirmação de um agente correcional de uma prisão privada dos EUA: “em meu estabelecimento, eu sou a Suprema Corte”. Como se sabe, a apuração de infrações e a aplicação de punições disciplinares aos detentos influenciam diretamente o processo de concessão de benefícios estipulados em lei. Seria o caso de lembrar também que, no âmbito de instituições totais como a prisão, o limite entre discricionariedade e arbítrio é sempre movediço.
Do lado econômico, a polêmica não é menos intensa. Num cenário de superpopulação e intervenção judicial no sistema, a redução dos custos do encarceramento constituiu uma das principais razões invocadas pelo governo para justificar a privatização. No entanto, as prisões privadas não têm prestado serviços necessariamente mais baratos nem tampouco mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessam o setor público. Uma longa lista de práticas gerenciais ineptas pode ser detectada na experiência correcional privada estadunidense, englobando violência de funcionários contra detentos, corrupção, presença de drogas nos estabelecimentos e fugas reiteradas.
Nota-se ainda uma série de tensões entre o móvel da lucratividade e os objetivos da política penitenciária. O modelo de parceria prevalecente nos EUA é o da remuneração das empresas com base no número de presos custodiados. Cadeias superlotadas propiciam taxas de retorno mais generosas a seus administradores. A corrida em direção ao corte de custos tem levado à contratação de pessoal sem o mínimo preparo, aumentando a possibilidade de conflitos. Outro ponto é o do trabalho prisional, realizado em condições de extrema precariedade e exploração; por conta da pressão que exerce sobre a massa salarial, ele tem esbarrado no movimento organizado de trabalhadores livres.
Em termos políticos, a privatização de prisões coincide, não por acaso, com a emergência do fenômeno do encarceramento em massa, uma espécie de rebarba keynesiana na ponta punitiva do Estado que sobrevive ao fordismo. Configurando-se em ritmo acelerado como a meca do Gulag global, a democracia norte-americana encabeça o ranking do encarceramento, com mais de dois milhões de detentos e uma acachapante taxa de mais de 700 presos por 100 mil habitantes, desbancando afiados contendores da “corrida carcerária”, como a Federação Russa (635), as Ilhas Cayman (600) e a África do Sul pós-apartheid (405).
Os principais efeitos do encarceramento em massa nos EUA são: o agravamento do déficit público (248% de aumento em prisões na primeira década de experimento privado); a realocação do fundo público da área social para o sistema de justiça criminal; a colonização da cultura comunitária pela cultura da prisão; o aumento relativo do crime, tendo em vista as altas taxas de reincidência; a destituição do direito de voto de parcela significativa da população; o aprofundamento das divisões sociais (dada a tremenda disparidade no encarceramento de negros e latinos em relação a brancos, já há quem veja na política penal norte-americana uma autêntica “ação afirmativa carcerária”).
A experiência norte-americana concreta no campo dos novos negócios correcionais tem se revelado bastante desigual e seletiva: (a) a face mais ousada do processo, o nec plus ultra da administração privada total de estabelecimentos penitenciários, tem sido bem menos utilizada que outras modalidades de privatização; (b) ela vem se concentrando na “ponta leve” do sistema, sobretudo nos setores de imigrantes e de jovens criminosos, em que a parafernália securitária habitual pode ser dispensada; (c) no que diz respeito ao alojamento de adultos, ela privilegia o chamado “setor secundário” (halfway houses etc.) por oposição ao “primário” (prisões propriamente ditas); (d) a privatização tende a prevalecer nos Estados do Sul, tradicionalmente mais conservadores e com movimento sindical menos organizado do que os Estados do Norte; (e) as prisões privadas são mais comuns na esfera local do que na esfera estadual, entre outras razões, porque as autoridades locais são mais permeáveis à pressão política.
Os defensores da privatização têm frequentemente manifestado o wishful thinking de que uma “fertilização cruzada” entre os setores público e privado poderia propiciar uma sinergia ótima capaz de fazer que uma esfera aprendesse e se beneficiasse com a incorporação dos métodos e técnicas de gestão da outra. O que se observa na prática, porém, à medida que gradualmente a privatização se aproxima do “núcleo duro” do sistema prisional - o encarceramento de adultos -, é uma espécie de “fertilização cruzada” às avessas, em que mais e mais as prisões privadas se vêem às voltas com os mesmos problemas dos estabelecimentos públicos, notadamente a superpopulação, um regime disciplinar desumano e um contexto avesso às estratégias de reabilitação dos condenados, minando assim a promessa privatizante nos exatos termos em que vem sendo advogada.
Vanguarda do atraso
A participação da iniciativa privada na gestão de presídios integra um conjunto impressionante de mudanças que, a partir de fins dos 70 e início dos 80 do século XX, redesenham o discurso criminológico, as estratégias punitivas e as práticas de controle penal de alguns dos principais Estados do centro da sociedade contemporânea.
Um dos indícios mais significativos de ruptura com a penalidade da época anterior estaria exatamente no crescimento avassalador das taxas de encarceramento na Europa e nos EUA durante os anos 80 e 90. Há quem veja o retorno, em fins do século XX, de um fenômeno só comparável, em extensão e intensidade, àquele que Foucault descreveu como “o grande encarceramento”, próprio dos seiscentos europeu. Ontem, como hoje, esse fenômeno assumiria inequivocamente “dimensões européias”.
Segundo inúmeros analistas, essas transformações abrem um tempo histórico específico de Regressão Penal, cujo alcance e sentido últimos seriam dados por uma guinada punitiva que tende a deitar por terra muitas das estratégias clássicas de controle do crime e de aplicação da pena próprias da era do Welfare State.
Assim é que a relativa “anorexia punitiva” da era de ouro estaria cedendo o passo à “bulimia punitiva” sans phrase de hoje, indicando, entre outros aspectos, que neste início de milênio a questão social volta a ser um caso de polícia.
Na era da informação e da sociedade do conhecimento, a polícia é inteligente. Técnicas atuariais sofisticadas e bancos de dados complexos permitem a gestão cada vez mais eficiente da população de náufragos e sobressalentes sociais.
O lugar dos que não têm lugar no admirável mundo novo do capitalismo global é a prisão. Bem entendido, nos países e regiões que podem financiar a política de encarceramento em massa, mitigando numa ponta (o extermínio no ambiente) e reforçando noutra (a guerra entre os detentos), a seleção natural e a autofagia no interior da mais-população.
O cárcere apresenta-se como meio privilegiado de inclusão forçada, no sistema de justiça criminal, dos excluídos dos sistemas econômico, político, educacional, sanitário etc. Desempregados estruturais, migrantes ilegais, trabalhadores do mercado informal de drogas, consumidores falhos configuram a prisão como uma espécie de microcosmo da ralé estrutural produzida pela sociedade contemporânea(1).
A prisão da era penal regressiva constitui uma janela de oportunidade. A política de privatização dos sistemas penitenciários alimenta-se, em grande medida, da conversão dos detentos em consumidores cativos dos produtos da indústria do controle do crime e da aplicação da pena.
Se parece certo que o sistema de justiça criminal se abre numa ponta para a incorporação explícita da racionalidade econômica, na outra ele tende a ser cada vez mais condicionado pela racionalidade do sistema político, que não por acaso passa a girar na dinâmica do governo pelo crime. Inflação normativa, conceitos jurídicos indeterminados e políticas draconianas para polícia, tribunais e prisões reforçam-se mutuamente como mecanismos de captação de dividendos eleitorais e figuram no centro do novo senso comum criminológico. Pela via do populismo penal, o governo pelo crime converte-se em arena de voca­li­zação de medo, insegurança e ressentimento em tempos de violência-espetáculo e apartheid social.
Note-se que o bode expiatório da “guerra ao crime” e da hiperpunição confere uma espécie de sobrevida irracional a sistemas políticos crescentemente esvaziados pela unidimensionalidade dos discursos e programas partidários, pela volatilidade indiferente que marca o intercâmbio das agendas e práticas institucionais entre administrações distintas, pelo circuito fechado dos arranjos neocorporativos entre os donos do dinheiro e os do poder, pela gansterização dos partidos, pela desterritorialização das arenas decisórias, pelo paradoxo da regulação da desregulação e pela substituição da gramática dos direitos do cidadão pelo melhor interesse do consumidor.
O direito penal seletivamente mínimo da época anterior tende a assumir cada vez mais a forma de um contradireito penal máximo, que normaliza práticas punitivas incompatíveis com princípios elementares do Estado de Direito, na lógica de um direito penal do inimigo que se expressa emblematicamente na legalização da tortura, mas também na introdução de categorias jurídicas indeterminadas nos ordenamentos e no afrouxamento de garantias processuais em nome de um ideal de eficiência punitiva.
Inserida nessa constelação de mudanças de largo alcance, a política de privatização do sistema penitenciário revela-se como uma figura central do estado de não-direito contemporâneo, em que a velha barbárie punitiva da periferia parece se realizar cada vez mais na novíssima regressão penal do centro.
NOTA
(1) Ralé estrutural é a expressão cunhada pelo sociólogo Jessé de Souza a partir do clássico trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Os Homens Livres na Ordem Escravocrata. Nos termos da formulação original da autora, trata-se de uma ralé que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos de história brasileira, “homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” (1974, p. 14).


Laurindo Dias Minhoto
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
Professor de sociologia jurídica da Direito GV




MINHOTO, Laurindo Dias. Regressão nova, velha barbárie. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 11-12, set. 2009.

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