Seguramente, muitos operadores do Direito sonham com o dia em que as partes e testemunhas colocarão um equipamento que permitirá que todos os fatos controvertidos, sujeitos à produção de prova, sejam apresentados em uma tela em forma de vídeo e áudio, viabilizando a valoração probatória de forma fiel à realidade, e com um custo operacional bem menor do que o atual, em termos de tempo e desgaste inerente a interrogatórios.
No entanto, independentemente de haver condições ou não no momento de sonhar com a mencionada possibilidade, existem importantes avanços da neurociência que podem contribuir com o Direito Processual, especificamente no tocante à produção e valoração da prova testemunhal.
Um primeiro aspecto relevante, relacionado à presente abordagem interdisciplinar, consiste na compreensão da relação entre o relato da testemunha e a realidade do fato que esta teria presenciado e vem relatar em juízo. Muitos autores do Direito Processual Civil, dos tradicionais aos mais contemporâneos, sustentam e definem a testemunha como aquele que “...reproduz apenas os acontecimentos passados que ficam retidos em sua memória...”.[1]
Esta noção tem como premissa básica a ideia de que tais fatos teriam efetivamente ocorrido da forma como relatados. No entanto, sabe-se hoje, a partir da compreensão da neurociência, que as memórias não são necessariamente espelhos da realidade.
Em texto sobre o tema, Daniel Schacter, da Universidade Harvard, e Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, Irvine, líderes mundiais em pesquisas sobre memória, alertam para o fato de que a memória humana não funciona como um vídeo gravado, o qual basta ser repetido para reproduzir acuradamente o evento anteriormente testemunhado. A memória humana é muito mais complexa, sujeita não só ao esquecimento, mas também a distorções.[2]
Apesar de ser fato amplamente aceito por especialistas, grande parcela do público leigo não atenta para essas limitações inerentes à memória humana.[3] Por exemplo, mais da metade das pessoas pesquisadas em uma amostra representativa nos EUA acredita que, uma vez formada, uma memória não muda com o tempo, embora se saiba hoje que isso não é verdade.
Com vistas a evitar erros em condenações e baseados nas evidências mais recentes de pesquisas, a Suprema Corte de New Jersey, nos EUA, implementou um projeto inovador segundo o qual os jurados recebem noções sobre os limites da memória humana como forma de orientar e subsidiar a valoração da prova testemunhal. Uma destas orientações envolve exatamente a ideia de que a informação retida pode sofrer interferências, não sendo, portanto, um espelho fiel da realidade vivenciada.
Outro aspecto relevante, também decorrente da relação entre o Direito Processual e neurociência, consiste no alerta de que ainda estamos longe de possuir técnicas de leitura cerebral que permitam determinar se a testemunha falta ou não com a verdade.
Estudos com técnicas de imageamento cerebral, como a ressonância magnética funcional, permitem associar a atividade de determinadas áreas do cérebro ao caráter verdadeiro ou falso de algumas memórias. Resultados como esse poderiam sugerir que, em breve, será possível determinar se um testemunho representa ou não a verdade dos fatos. Porém, esse tipo de resultado só se aplica à atividade cerebral média para várias memórias, não para uma memória específica, e para conjuntos de estímulos simples, como listas de palavras ou listas de figuras, não para estímulos complexos, como eventos autobiográficos estendidos ao longo do tempo. Ainda falta muito para que seja possível dizer, com alto grau de confiança, se uma memória específica relatada por uma testemunha é verdadeira ou falsa baseado-se apenas em imagens de atividade cerebral.[4]
Os exemplos acima mostram que existem muitos espaços para um rico e relevante diálogo interdisciplinar entre Direito Processual e neurociências. O caminho é longo, mas uma possível trilha para esse intercâmbio já foi aberta.
[1] THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Vol I. Rio de Janeiro: Forense, 20ª Ed., pág. 465.
[2] LOFTUS, Elizabeth F. e SCHACTER, Daniel L. Memory and law: what can cognitive neuroscience contribute?. In: Nature Neuroscience, Vol. 16, no. 02, 2013, pag. 119.
[3] SIMONS, Daniel J. e CHABRIS, Christopher F. What people believe about how memory works: A representative survey of the U.S. population. In: PLoS ONE, 6(8), 2011, e22757.
[4] Ibidem, pag. 120.
Rogério Neiva Pinheiro é juiz do Trabalho da 10ª Região e mestrando em ciências do comportamento pelo Departamento de Processos Psicológicos Básicos, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
Luciano G. Buratto é professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário