segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Justiça decide punir com mais rigor quem mata ao volante

A justiça decidiu levar a júri popular o motorista de um carro de luxo que, em setembro do ano passado, provocou uma série de acidentes em São Paulo e matou uma pessoa.





Nesta semana, a Justiça decidiu levar a júri popular o motorista de um carro de luxo que, em setembro do ano passado, provocou uma série de acidentes em São Paulo e matou uma pessoa. Segundo a perícia, Felipe Arenzon saía de uma casa noturna embriagado e estava a mais de 120 quilômetros por hora num lugar onde a velocidade máxima é de 60 quilômetros por hora. A decisão de punir com mais rigor quem mata ao volante é uma nova tendência entre os juízes brasileiros, como mostra a reportagem especial de Sônia Bridi e Paulo Zero. 


“A Izabella foi feliz durante os 11 anos de vida dela. Se existiu alguém feliz foi ela”, lembra Argélia Gauto, mãe de Izabella. 


“A gente saía, e tinha aquelas máquinas de tirar fotografia. A última foi essa que eu peguei o cabelo dela e fiz como se fosse o bigode”, mostra Chico Caruso, pai de Izabella. 


As imagens feitas por Argélia deveriam ser de uma breve despedida. Izabella, a filha dela com o cartunista Chico Caruso, ia passar o ano novo na praia com a família da amiguinha. Mônica, a motorista, com a babá no banco da frente. Izabella atrás, entre os filhos de Mônica. Eles nunca chegaram ao destino. 


“Eu falei: 'Não é possível, a morte não combina com ela, a morte não combina com ela'. Mas era verdade”, diz Chico. 


O acidente foi bem perto da Praia de Búzios, no litoral do Rio. O policial militar André Luiz Fernandez vinha dirigindo na direção contrária à de Mônica. Foi jogado para fora da estrada por uma camionete que forçou uma ultrapassagem. 


“O ônibus jogou pra lá também, porque não tinha muita pista pra jogar, por causa do poste. E eu vim parar no mato. Fui atrás dele para poder fazer o que eu tinha que fazer, entendeu? Dar voz de prisão”, conta Fernandez. 


Mas era impossível seguir a camionete a mais de 140 quilômetros por hora na estrada cheia de curvas. Ele só ouviu a batida. 


“Como se tivesse botado uma bomba. Foi um barulho seco, seco”, lembra o policial. 


Na camionete o motorista levava a filha pequena no banco da frente, sem cinto de segurança. Ele perdeu o controle na curva e bateu em cheio na Scenic dirigida por Mônica. Ela e Izabella morreram na hora. O motorista da camionete se feriu levemente. A filha dele teve traumatismo craniano, mas sobreviveu. 


“Não me lembro de nada, graças a Deus”. Três meses em coma, e seis anos de vai e vem a hospitais. A babá Rita de Cássia Antônio ficou cega de um olho. Tem um implante no quadril. E ainda precisa de uma cirurgia para corrigir a fratura no pulso. 


“Eu fazia faxina a semana toda. Cada dia numa casa, de subir, descer escada, limpar parede, lavar cozinha, hoje em dia não tenho mais condições de fazer isso”, lamenta a babá. 


Rita passa roupa para fora para complementar a aposentadoria de um salário mínimo por invalidez. 


“Quando minha prima Argélia perguntou: 'O que vai acontecer com ele?'. Eu disse: 'Vai pagar uma cesta básica ou um trabalho comunitário, só isso'”, conta a advogada Jussara Gauto. 


“No momento que eu entendi tudo, fui buscar a Justiça. Porque eu não aceitava. Ninguém ia me dar cesta básica”, relata Argélia. 


A prima advogada foi buscar a pena de prisão para o motorista. “Eu havia dito para a Argélia: 'É uma tese que ainda não foi usada'. Em 2006, isso aí era como um tiro na Lua”, conta a prima. 



Historicamente no Brasil, a morte no trânsito é tratada como homicídio culposo. É quando o acidente é provocado por descuido, imperícia, imprudência, ou o motorista não previu o risco, mesmo dirigindo embriagado ou em alta velocidade. A pena máxima é de quatro anos e pode ser convertida em serviços comunitários. Na maioria dos casos, o condenado escapa da cadeia doando cestas básicas. 


Já no dolo eventual, ou homicídio doloso, a Justiça entende que o motorista assumiu o risco de matar ao andar em alta velocidade, embriagado ou participando de um racha, por exemplo. Nesse caso, o acusado vai para o banco dos réus e é o júri popular que determina se ele é culpado. A pena vai de seis a 20 anos de prisão. E foi essa a interpretação da Justiça no caso da morte de Izabella. 


No mês passado, Juamir Dias Nogueira Junior foi condenado a oito anos de cadeia pelas mortes de Izabella e Mônica. Procurado pelo Fantástico, se recusou a comentar a sentença. 


“No fundo, há uma luta entre o bem e o mal, e o que resultou disso? A aprovação do crime doloso para crime de trânsito”, conta Chico Caruso. 


A luta é também no campo das ideias. Uma corrente jurídica considera que dolo não se aplica a crimes de trânsito. 


“Em geral, os crimes de trânsito são culposos. No dolo, o agente afirma pra si mesmo: 'Aconteça o que acontecer, vou continuar dirigindo em excesso de velocidade'. E na culpa: 'Eu dirijo em excesso de velocidade porque sou um exímio motorista e posso evitar o acidente', explica o jurista Juarez Tavares.


“Se ele participa de um racha, de um pega, se ele dirige o veículo embriagado a meu ver, em tese, ele está assumindo. Ele pode não querer matar ninguém. Até presume-se que não queira, mas ele está assumindo um risco”, avalia o desembargador José Muiños Piñero. 


Essa é a interpretação que está ganhando força. 


A Justiça gaúcha quer botar no banco dos réus, por 17 tentativas de homicídio doloso, o motorista que em uma esquina de Porto Alegre se envolveu em uma disputa com ciclistas que faziam uma manifestação. E produziu cenas de violência que chocaram o país e correram o mundo. 


A Justiça entendeu que ao acelerar pra cima dos ciclistas, o economista Ricardo José Neis assumiu o risco de matar ou machucar. Ele se defende dizendo que estava cercado e ameaçado pelos ciclistas e que, diante disso, teve que fugir. 



Fantástico: O senhor se arrepende de ter acelerado? 
Ricardo José Neis: É a mesma coisa que você perguntar se eu me arrependo de estar vivo, de ter preservado a vida do meu filho. Se eu quisesse eu teria machucado eles realmente, se fosse a minha intenção. 



“Eu acho que nós tivemos muita sorte nisso e ele também. Porque eu não queria estar na consciência desse cara hoje”, diz o técnico de palco Marcos Rodrigues. 


A maioria dos réus que a Justiça manda para o júri popular recorre para ser julgado por culpa, não por dolo. Os processos se arrastam durante anos. 


A nova tendência da Justiça, de mandar para a cadeia quem mata no trânsito, é uma reação a números assustadores. Só em 2010, quase 43 mil pessoas foram mortas nas ruas e estradas do Brasil. Se continuar nesse ritmo, até 2015, vai ter mais gente morta por carros, ônibus, motos, e caminhões no país, do que a tiros, facadas, pancadas, ou seja, todas as outras formas de homicídio. 


“O Brasil tem uma guerra nacional decorrente de acidentes de trânsito. Isso tem que ser de certa forma tolhido, diminuído ou erradicado”, observa o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp. 


O ministro Gilson Dipp foi o presidente da comissão de juristas que elaborou a proposta do novo Código Penal, que está sendo analisada no Senado. 


Para facilitar a punição no trânsito, foi criado um novo tipo de culpa, a gravíssima ou temerária. 
É para quando não for comprovado que o agente quis matar, nem assumiu o risco, mas agiu com temeridade. A pena passa para quatro a oito anos de prisão. 



A proposta de lei enquadra como culpa gravíssima dirigir embriagado ou participar de racha. O racha seria punido com dois a quatro anos de prisão. E embriaguez, de um a três anos. 


Assim, quem mata no trânsito poderia pegar penas maiores, e ir para a cadeia, sem passar pelo júri popular - o que ainda encontra resistência entre muitos juízes. 


No Rio, o juiz mudou o processo contra Rafael Bussamra, que atropelou e matou Rafael Mascarenhas, o filho da atriz Cissa Guimarães. Em vez de júri popular, ele vai responder por homicídio culposo. 


Segundo testemunhas, Bussamra e o amigo Gabriel de Souza Ribeiro entraram num túnel fechado para obras para fazer um racha. Rafael andava de skate com amigos na boca do túnel e foi arremessado a 60 metros de distância. 


O juiz alegou que o atropelador não agiu com indiferença, porque ligou para a polícia e a ambulância. 


“ Os pais, o pai e o irmão foram lá para corromper essa polícia que eles chamaram para ajudar?”, afirma Cissa Guimarães, mãe de Rafael. 


Pouco depois do acidente, Rafael Bussamra, o irmão e o pai foram flagrados por câmeras de segurança corrompendo policiais militares para esconder as provas do crime. 


Os policiais já foram condenados a cinco anos de prisão, em regime semi-aberto, por corrupção passiva. Mais do que a pena máxima a que Bussamra está sujeito por homicídio culposo. 


Rafael Bussamra, o pai, o irmão, e o advogado deles não quiseram falar ao Fantástico. 


Cissa recorreu: “Eu vou até o final, pela memória do meu filho. Mas acima de tudo para acabar com essa impunidade que me dá enjoo. Que me dói”. 


Há 12 anos, o advogado Luiz Felizardo Barroso tenta mandar para a cadeia os homens que ele considera responsáveis pela morte do filho. 


“Toda justiça que tarda é a negação da própria justiça. E a nossa, no Brasil, infelizmente, tarda muito”, diz Barroso. 


No escritório, o neto, que tinha oito anos quando ficou órfão, ocupa a mesa do pai, Ricardo de Camargo Barroso. 


Amanhecia na véspera de Natal no ano 2000. Ricardo ia surfar. À sua frente, em outro carro, um amigo surfista, que nunca esqueceu daquela manhã. 


Tinha um carro tombado no meio da pista. Ele e Ricardo deixaram os carros no acostamento, com o pisca alerta ligado. Ricardo tentava tirar o motorista preso nas ferragens. 


“Nisso, o Peugeot começou a pegar fogo. Quando eu estou abaixado pegando o extintor de incêndio, eu escuto um barulho de freada forte e uma batida. Tinha um carro que tinha batido, com a frente toda levantada. E 'cadê o Ricardo? Cadê o Ricardo?', aquela confusão, poeirada danada”. 


Ricardo, outro voluntário que ajudava no socorro do primeiro acidente e a vítima, que até então estava apenas ferida, morreram na hora. 


Na denúncia à Justiça, o Ministério Público diz que o carro que matou Ricardo e mais duas pessoas corria a mais de 110 quilômetros por hora, dentro da cidade, e participava de um pega. 


Os dois acusados - André Garcia Neumayer, que dirigia o carro que bateu, e Juliano Bataglia Ferreira, que participava do pega - foram mandados a júri popular, mas recorreram até o Superior Tribunal de Justiça, que confirmou a decisão. 


O advogado dos acusados ainda vai pedir embargo no Supremo Tribunal Federal. 


“Não houve pega, em primeiro lugar. E segundo, nós vamos ter que considerar que esses garotos são suicidas, eles assumiram o risco de ceifar suas próprias vidas a partir do momento que eles batem no outro carro”, defende o advogado. 


Se conseguirem impedir o júri popular, os dois acusados não serão julgados por nada. Depois de 12 anos nos corredores da Justiça, a acusação por homicídio culposo já está prescrita. 


Araçatuba, interior de São Paulo. Dois casos, duas decisões distintas. O carro em alta velocidade, fazendo pega, avança o sinal, provoca o acidente e deixa com sequelas um universitário brilhante. 


O motorista, filho de um fazendeiro, é indiciado por homicídio doloso, foge, e é capturado numa fazenda no Mato Grosso. 


Mas a sensação de que a Justiça de Araçatuba seria mais rigorosa com os crimes do trânsito durou pouco. Menos de três meses depois, o promotor encarregado da acusação se envolveu em um acidente numa rodovia que dá acesso à cidade. Provocou a morte de três pessoas. Mas ele não vai a júri popular. Alessandro, Alessandra e o filho dela, Adriel, de sete anos, morreram na hora. Na camionete do promotor foram encontradas bebidas. Na delegacia, um médico atestou a embriaguez, mas ele se negou a colher material para exame. 


“Se fosse eu, estaria preso. Como ele é promotor e tem dinheiro,está lá”, lamenta Alberto dos Santos, pai de Alessandro. 


O Ministério Público transferiu o promotor Wagner Rossi para São Paulo e o denunciou por homicídio culposo. Cinco anos depois do acidente, o foro especial do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o promotor a quatro anos de prisão, convertidos em serviços comunitários, suspensão da carteira de motorista por quatro anos e indenização de R$ 15 mil às famílias das vítimas. O advogado dele vai recorrer. 


Fantástico: O senhor considera que essa pena foi dura? 
Advogado: Claro que foi. Foi duríssima, foi duríssima. A palavra acidente existe porque acidentes acontecem. 



Ao distinguir entre um acidente inevitável, e o comportamento arriscado e violento que mata no trânsito - a Justiça brasileira não só vai punir, mas prevenir tragédias. 

“A vida da minha filha não tem preço. A gente não quer isso. A gente quer um mundo melhor, onde as pessoas possam sair se divertir, passear, brincar, e voltar pra casa”, pede Argélia.


Fonte: Fantástico - Rede Globo. http://tinyurl.com/9s3nwn3

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