Sem nada o que fazer no hospital onde era tratado de sua doença mental, Eddie Joe Lloyd começou a escrever cartas para a polícia de Detroit, Michigan, com sugestões para resolver vários crimes graves. A última carta despertou o interesse dos policiais. Ela explicava como resolver o caso de estupro e assassinato brutal da adolescente MJ, de 16 anos. Policiais foram ao hospital interrogar Lloyd, com o pretexto de se relacionar com ele. E se saíram bem no "relacionamento". Convenceram Lloyd a ajudar a pegar o criminoso, com um plano bem simples: ele confessaria o crime, seria preso e o verdadeiro estuprador e assassino sairia da toca.
Os policiais se encarregaram de fornecer a ele todos os detalhes do crime, como descrição da cena dos crimes, onde o corpo foi encontrado, as roupas, os sapatos e os brincos que ela estava usando, etc. Lloyd foi perfeito na descrição que ofereceu em uma confissão gravada em fita cassete. E assinou uma confissão por escrito, para a "armação" ser bem convincente. Só se deu conta da armadilha no tribunal, quando foi condenado a prisão perpétua. O juiz ainda lamentou não haver pena de morte em Michigan. Lloyd passou 17 anos na prisão. Foi libertado em 2002, dois anos antes de morrer, pelo Projeto Inocência (Innocence Project), que provou sua inocência com base em exames de DNA – e com a valiosa ajuda de estudantes de Direito, que destrincharam todo o caso.
Por que inocentes confessam?
Um levantamento recente do Projeto Inocência revelou que, de todos os prisioneiros libertados nos últimos anos com base em provas de DNA, 25% foram presos porque se incriminaram, fizeram confissões por escrito ou gravadas em fita cassete à polícia ou se declararam culpados. Estudos de casos mostram que essas confissões não derivaram de conhecimento dos réus sobre o caso, mas foram motivadas por influências externas.
Em princípio, é difícil entender por que uma pessoa confessa um crime que não cometeu, diz um artigo do Projeto Inocência. Mas uma pesquisa psicológica forneceu algumas respostas. Uma variedade de fatores pode contribuir para uma confissão falsa, durante o interrogatório policial. Os casos examinados no estudo mostram que há uma combinação dos seguintes fatores: 1) pressão; 2) coerção; 3) embriaguez; 4) capacidade reduzida; 5) deficiência mental; 6) desconhecimento da lei; 7) medo de violência; 8) sofrimento real infligido; 9) ameaça de uma sentença mais dura; 10) falta de compreensão da situação.
Algumas confissões falsas, dizem os especialistas, podem ser explicadas pelo estado mental do réu:
– Confissões obtidas de crianças não são confiáveis, diz o estudo do Projeto Inocência. Crianças são facilmente manipuláveis. E nem sempre têm noção clara do que está acontecendo. Crianças e adolescentes são facilmente convencidas de que poderão "voltar para casa", assim que admitirem a culpa.
– Pessoas com deficiência mental fazem confissões falsas porque, de uma maneira geral, são tentadas a conciliar e a concordar com autoridades, especialmente as policiais. Além disso, os interrogadores policiais não têm qualquer tipo de treinamento para questionar suspeitos com deficiência mental. Qualquer estado mental debilitado, em razão de deficiência mental, drogas, bebidas alcoólicas, pode provocar falsas admissões de culpa.
– Adultos mentalmente capazes também fazem confissões falsas por uma variedade de fatores, tais como excessiva duração do interrogatório, exaustão ou pela falsa ideia de que, se confessarem, podem ser soltos e, mais tarde, provar sua inocência.
Seja qual for a idade, a capacidade ou o estado mental das pessoas que confessam crimes que não cometeram, normalmente elas têm a impressão comum, a um certo ponto do processo de interrogatório, de que a confissão será mais benéfica para elas do que continuar insistindo em suas inocências.
Tortura ou ameaças de tortura
Algumas vezes, investigadores usam "táticas de interrogatório implacável" que, na prática, equivalem à tortura ou chegam à beira da tortura. Mas existem outras táticas, menos abusivas fisicamente, que também podem levar a confissões falsas. Por exemplo, alguns policiais altamente treinados em interrogatório, convencidos da culpa do suspeito, usam táticas tão "persuasivas" que uma pessoa inocente se sente compelida a confessar, diz o artigo do Projeto Inocência.
O estudo mostrou que alguns suspeitos fizeram uma confissão falsa para evitar danos ou desconforto físico. Outros são advertidos de que serão condenados com ou sem uma confissão e que a sentença será muito mais leve se confessarem. Alguns são aconselhados a confessar porque essa seria a única maneira de evitar a pena de morte ou de prisão perpétua.
São muitos os casos de inocentes presos nos EUA. Mas o Projeto Inocência elegeu o de Eddie Joe Lloyd o favorito para sua campanha para aperfeiçoar o sistema penal por duas razões. Primeira, a Promotoria de Detroit foi muito cooperativa com os advogados e com os estudantes de Direito que se empenhavam em provar a inocência de Lloyd, reconhecendo as falhas de processo e se propondo a colaborar para desfazer um erro judicial.
A segunda razão é mais forte. Depois de provada a inocência de Lloyd, condenado graças a armações de policiais para levá-lo a se incriminar, a Polícia de Detroit pediu desculpas formais à família e prometeu que, daí para a frente, todos os interrogatórios policiais, em casos que podem terminar em sentença de prisão perpétua, seriam gravados em vídeo, para serem apresentados nos tribunais. Começou a fazer isso em 2006. Muitas jurisdições nos EUA seguiram o exemplo de Detroit.
Gravação de interrogatórios
O Projeto Inocência fez recomendações específicas para mudar a prática de interrogatórios de suspeitos nos EUA. Uma é tornar obrigatório o uso de gravações eletrônicas (ou de vídeo) nos interrogatórios. Nas jurisdições em que essa medida já foi tomada, a quantidade de confissões falsa diminuiu significativamente, diz o artigo. E em contrapartida, a credibilidade das autoridades policiais e das confissões que obtêm aumentou.
Segundo o artigo do Projeto Inocência, para a gravação dos interrogatórios serem eficazes, tudo tem de ser gravado, desde a prisão do suspeito. Isso atribui autenticidade e confiabilidade às confissões e protege os direitos das pessoas inocentes, mesmo que suspeitas. Algumas vezes, ameaças são feitas a suspeitos em off – isto é, antes de a câmara ser ligada para o interrogatório.
Em alguns casos de confissão, detalhes do crime são inadvertidamente comunicados aos suspeitos pela própria polícia, durante o interrogatório. Muitas vezes, quando o suspeito já é conhecedor desses detalhes, o seu conhecimento é usado contra ele pelos policiais, como prova.
Para os distritos policiais, gravar todas as comunicações com o suspeito pode evitar disputas sobre como o suspeito foi tratado na delegacia, criar um registro limpo e aceitável dos depoimentos dos suspeito e aumentar a confiança da população no sistema de justiça criminal, diz o artigo do Projeto Inocência.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 8 de setembro de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário