sábado, 29 de setembro de 2012

Assegurar o direito ao voto do preso provisório é ter democracia plena, afirma desembargadora

As eleições municipais se aproximam e uma porcentagem mínima de presos provisórios e de adolescentes internados poderão votar, apesar da Constituição Federal garantir este direito a todos. Em 2010, as eleições chegaram a 424 estabelecimentos prisionais do país. Apenas 12% dos presos provisórios votaram nas eleições daquele ano. Em outubro de 2012, no Estado de São Paulo, por exemplo, apenas 4,9 mil detentos provisórios e adolescentes, de 87 unidades de detenção, estarão aptos a votar.


Em entrevista ao Última Instância, a desembargadora do TJ-SP (Tribunal de Justiça) e co-fundadora da AJD (Associação Juízes para a Democracia), Kenarik Boujikian Felippe, falou dos avanços e das dificuldades em assegurar o direito ao voto da população carcerária. Ela também destacou a importância da questão para democracia brasileira. "É indispensável que as pessoas com restrições de liberdade tenham quem fale legitimamente por elas, como reconhecido na nossa Constituição, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Americana de Direitos Humanos", afirmou.
 — Há quanto tempo o direito ao voto de presos provisórios é garantido?
Kenarik Boujikian Felippe — Este direito político ficou estabelecido na Constituição Federal há 24 anos. Não existe restrição para que os adolescentes internados votem. Todos os presos provisórios têm este direito e dever e eles são cerca de 40% de todos os presos do Brasil. Em alguns estados, o percentual chega a 75%.
 — Nestes últimos anos como tem se dado a garantia deste direito?
Kenarik Boujikian Felippe — Houve episódios esparsos, por iniciativa de alguns juízes. Em 2002, por exemplo, quatro estados da federação garantiram o direito ao voto, de forma parcial. Em 2008, os presos votaram em onze estados. Existe forte preconceito em relação à eles. Em sessão administrativa do TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral) foi negado o pedido apresentado pela PRE-SP (Procuradoria Regional Eleitoral). Disseram: “estamos querendo, é na verdade, é dar direito aos piores da sociedade, aos que estão presos”. Todo o preconceito que sabemos existir contra os presos e contra os jovens internados estão atestados nestas palavras.
Depois houve uma mobilização muito significativa. Preparou-se o “Manifesto pela Cidadania” que foi entregue ao presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Ministro Ayres Britto. Ele formou uma comissão para tratar do tema. Foi realizada audiência púbica muito concorrida em Brasília que, por fim, redundou na edição de resolução do TSE para as eleições de 2010, para que fossem providenciadas as medidas de concretização do voto e dando  coordenadas aos TREs que facilitariam a implementação pelos Estados. Apenas um não implementou a decisão e os demais Estados o fizeram de forma restrita.
 — Mudaria substancialmente a relação do Estado com os presos com o direito ao voto assegurado?
Kenarik Boujikian Felippe — Um dos graves problemas do sistema prisional diz respeito à invisibilidade de todas as violações que ocorrem em seu interior. Penso que o quadro seria outro se todos os presos votassem, pois obrigaria o Estado a tratá-los com os atributos próprios de cidadãos, ou seja, como sujeitos de direitos. O mesmo ocorre em relação aos jovens internados.
 — Há diferenças em como os presos escolhem os seus candidatos?
Kenarik Boujikian Felippe — A escolha dos candidatos se dá da mesma forma. Através de entrevistas realizadas com presos do Rio de Janeiro, o resultado mostrou que os critérios que balizam os que não estão presos são os mesmos. Naquela eleição, candidatos estiveram nos presídios e os presos informaram as razões de escolha: naquele que investiria em educação; atuaria no sistema prisional;  porque  demonstrara comprometimento com sua comunidade; porque os familiares falaram que era o melhor candidato etc.
 — Candidaturas podem fazer campanha nos presídios e Fundações Casas?
Kenarik Boujikian Felippe — As candidaturas podem fazer campanha dentro dos estabelecimentos. Os diálogos com os candidatos é uma maneira pela qual aqueles que estão dentro dos muros possam participar do exercício cidadão. As demais formas (como TV e rádio) também devem ser garantidas. A idéia é que o sistema seja o mais próximo do que ocorre fora dos muros.
Um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro é a cidadania, no sentido de qualificação dos participantes da vida do Estado, cujo exercício fornece a noção de pertencimento das pessoas em relação à sociedade em que vivem, o que ainda não foi incorporado integralmente pela Justiça Eleitoral e pelos demais envolvidos neste sistema.
 — Em 2010 apenas 12% dos presos provisórios votaram nas eleições, qual a dificuldade dos TREs e TSE em organizar secções eleitorais para garantir esse direito?
Kenarik Boujikian Felippe — A alegação de dificuldade é variada, mas a realidade e o histórico de realização de votações nos presídios demonstraram que eventuais dificuldades são superáveis. A experiência comprova que quando se quer, existem urnas eletrônicas, os documentos são providenciados a tempo, há fiscais, existe propaganda eleitoral, etc. Assim, é inaceitável o irrisório percentual de eleitores presos ou internados.
 — A competência para assegurar o direito dos presos provisórios e adolescentes é de quem?
Kenarik Boujikian Felippe — Todas as instituições de Estado têm obrigação de atuar para que este direito seja assegurado. O Ministério Público e a Defensoria deveriam requerer, assim que o preso entra no sistema, que a Lei de Execução Criminal seja cumprida, ou seja, a documentação necessária para realizar o pleito deve ser providenciada. Uma das razões alegadas é falta de documentação. O poder  executivo deveriam providenciar, mas como falha, cabe a atuação das instituições que existem para a defesa dos direitos.
Outra questão diz respeito à educação em direitos. Isto também deve ser feito em relação a todos os detidos. Saber de seus direitos e deveres é condição de cidadania. Por exemplo, é necessário que não sejam realizadas transferências dos presos no período eleitoral.
 — Seria seguro para a população garantir este direito para os presos provisórios?
Kenarik Boujikian Felippe — Uma das alegações é a falta de segurança, mas se aceitarmos esta alegação, genericamente, estamos dizendo "o Estado faliu". É uma alegação inaceitável e despida de transparência. É obrigação do Estado informar à população qual o estabelecimento que é “inseguro”  e porque é inseguro. Enfim, há uma série de medidas e a experiência brasileira revela que é possível que todos os presos provisórios e jovens não tenham este direito subtraído.
 — Por que a garantia deste direito se faz necessária na sociedade?
Kenarik Boujikian Felippe — Se queremos democracia, é indispensável que as pessoas com restrições de liberdade tenham quem fale legitimamente por elas, como reconhecido na nossa Constituição, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Americana de Direitos Humanos, que exigem a participação das pessoas no governo de seu país, na condução dos assuntos políticos, garantindo-se a livre expressão da vontade dos eleitores. A ausência de interlocutores legítimos cria núcleos de poder dentro do sistema penitenciário, negociatas com facções, tudo de modo indesejável para a democracia.

Luka Franca - 22/09/2012. Última Instância.

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