Tem largo curso, no Brasil, a obtenção de certos direitos creditícios, por ato direto dos próprios credores.
Refiro-me, por exemplo, ao corte de energia elétrica e à suspensão do serviço telefônico, em desfavor do usuário do serviço que não paga sua conta no vencimento.
A ameaça de suspensão, que se sabe será seguida do efetivo bloqueio do serviço, constitui, por si só, um instrumento de pressão que coloca as empresas de energia e de telefonia em situação absolutamente privilegiada, dentro do sistema jurídico nacional.
Quando o corte de serviço se realiza – o fornecimento de energia elétrica é suspenso, a linha telefônica fica muda – tem-se, insofismavelmente, a justiça feita com as próprias mãos, autorizada por lei e já chancelada pelo Poder Judiciário, em algumas decisões, a meu ver, extremamente infelizes.
Creio que esses procedimentos ferem a Constituição Federal.
No mundo moderno, ficar sem luz e sem telefone significa estar privado de bens essenciais. A prestação de tais serviços está ligada ao respeito que é devido à família e à pessoa humana. Tanto a família, quanto a pessoa humana, são titulares de direitos que traçam o perfil da sociedade democrática de direito.
A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República (artigo 1º, inciso III, da Constituição).
A família, base da sociedade, tem direito à especial proteção do Estado (art. 226).
Os cortes assumem o caráter de brutalidade revoltante quando atingem pessoas idosas, doentes e crianças.
Autorizar que se faça justiça com as próprias mãos agride o estado democrático de direito, por cuja implantação tantos lutaram e morreram em tempos recentes de Brasil.
A conquista, que resultou da luta do povo, está expressa no artigo que abre nossa Constituição:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito.”
Não estamos afirmando que as empresas fornecedoras de energia elétrica e serviço telefônico têm de oferecer gratuitamente esses bens. Nem estamos negando que sejam titulares de crédito, em face do devedor.
Contudo, que as empresas cobrem seus créditos, como os demais credores, já que todos são iguais perante a lei. (Art. 5º da Constituição Federal). Recorram à cobrança judicial, se a cobrança amigável e a composição falharem. As empresas, como os particulares, estão amparadas pelo princípio da ubiquidade da Justiça. (Artigo 5º, inciso 35, da Constituição). Em razão desse princípio, têm direito de acesso aos tribunais para a busca de seus direitos. Inadmissível é facultar-se a empresas o arbítrio de suspender serviços de primeira necessidade, ao arrepio da Justiça, colocando pessoas e famílias numa situação aflitiva.
Isso, além de afrontar a Constituição, pelos motivos apresentados, é incompatível com um padrão mínimo de civilização.
João Baptista Herkenhoff, 74 anos, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor. Autor de Escritos de um jurista marginal (Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre).
E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br
Homepage: www.jbherkenhoff.com.br
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