sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Artigo: Adesão civil e “dano moral coletivo” no projeto do novo CPP

Roger de Melo Rodrigues

Seguindo a tendência mundial de redescobrimento da vítima no processo penal(1), especificamente no que concerne à tutela de seu interesse de reparação de danos decorrentes da prática da infração penal, o ordenamento jurídico brasileiro, pela Constituição Federal de 1988, reconheceu expressamente a obrigação de reparação de danos ex delicto, (art. 5º, XLV), conferindo-lhe, assim, status constitucional, além de prever a instituição de fundo público em prol de herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos (art. 245). A legislação infraconstitucional acompanhou o passo, incorporando institutos reparatórios. Assim, pode-se citar a composição civil de danos (Lei n. 9.099/95), a pena de multa reparatória para danos patrimoniais (Lei n. 9.503/97, art. 297), a prestação pecuniária como pena restritiva de direitos (Lei n. 9.714/98) e o polêmico(2) sistema de reparação de danos ex officio (Lei n. 11.719/2008).
Nesse contexto, desponta o Projeto n. 156/09, em tramitação no Senado, que traz um novo Código de Processo Penal. Da tutela jurídica conferida à vítima, destaca-se o novo instituto da adesão, que se dá pela formulação, no processo penal, de um pedido de recomposição civil do dano moral pela própria vítima. Talvez ainda não se tenha dado a devida atenção para esse instituto, embora ele importe grande modificação no ordenamento jurídico brasileiro, afastando o tradicional sistema de reparação de danos da separação (já um tanto combalido, é verdade) e abraçando o sistema da adesão, presente em países como a França, a Itália e Portugal(3).
Deve-se registrar que a adesão, no Código projetado, tem por objeto exclusivo os danos morais, excluindo-se os danos patrimoniais em nome da preocupação, externada pela própria comissão(4), de se retardar a marcha do procedimento, não obstante o referido Projeto já contemple, no parágrafo único do art. 79(5), um mecanismo de remessa da adesão ao juízo cível em caso de possibilidade de transtorno ao regular desenvolvimento do procedimento.
Deixando de lado outras interessantes questões relacionadas à incorporação desse instituto, impõe-se uma observação: a “recomposição civil do dano moral” projetada, se por um lado tem o mérito de dar uma resposta mais efetiva à constitucional obrigação de reparação de danos civis ex delicto, por outro peca em dimensionar esse instituto para a satisfação de danos morais meramente individuais, olvidando por completo os danos morais metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos).
Ao discorrer sobre uma proteção mais ampla do ser humano, Xisto Tiago de Medeiros Neto menciona que a extensão da tutela jurídica da pessoa, de uma esfera meramente patrimonial para uma esfera extrapatrimonial (moral), e a expansão da destinação de referida tutela, do campo individual para o campo coletivo ou social, representam destacado e necessário passo no processo de valorização e tutela dos direitos fundamentais, evolução que significa uma resposta às demandas da cidadania(6).
Desponta, assim, o “dano moral coletivo” (expressão terminológica já consagrada, não obstante o melhor aprumo técnico de “dano extrapatrimonial metaindividual”(7)), já ganha reconhecimento na jurisprudência nacional: “administrativo - transporte - passe livre - idosos - dano moral coletivo - desnecessidade de comprovação da dor e de sofrimento - aplicação exclusiva ao dano moral individual - cadastramento de idosos para usufruto de direito - ilegalidade da exigência pela empresa de transporte - art. 39, § 1º do estatuto do idoso - lei 10.741/2003 viação não prequestionado. 1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos. 3. Na espécie, o dano coletivo apontado foi a submissão dos idosos aprocedimento de cadastramento para o gozo do benefício do passe livre, cujo deslocamento foi custeado pelos interessados, quando o Estatuto do Idoso, art. 39, § 1º exige apenas a apresentação de documento de identidade. [...]. 6. Recurso especial parcialmente provido.” (STJ - 2ª T., - rel. Min. Eliana Calmon - REsp 1057274/RS - j. 01.12.2009 - DJe 26/02/2010)(8)
Cumpre consignar que essa espécie de dano pode decorrer igualmente de ilícitos penais, não permanecendo como resultado exclusivo do ilícito civil. Assim, exemplificativamente, pode-se vislumbrar tal situação quando um estabelecimento industrial, no desempenho de suas atividades, provoca a poluição de um rio ou de seus afluentes, de modo que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade (Lei n. 9.605/98, art. 54, §2º, III), ou quando no âmbito de empresas privadas, cujas atividades se desenvolvam em grandes centros urbanos do país, sejam engendradas e executadas políticas ou práticas que venham a obstar o emprego para pessoas em razão de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei n. 7.716/89, art. 4º).
Sob essa ótica, o instituto da adesão no Código projetado fica devendo. Se não, vejamos: seu art. 78 prevê, após o oferecimento da denúncia, a notificação da vítima para, se assim o quiser e no prazo de 10 (dez) dias, requerer a “recomposição civil do dano moral”. Tal procedimento pressupõe a prévia identificação da vítima (individual), olvidando-se situações que possam envolver vítimas difusas ou coletivas, as quais, sem a ciência necessária, perderão uma ótima oportunidade de ingressar no processo e obter a reparação por dano extrapatrimonial.
A inclusão do dano extrapatrimonial metaindividual no processo penal só traria benefício, já que a adesão no processo penal serviria, não somente como um instrumento de satisfação de interesses meramente individuais, como se propõe, mas também como instrumento de satisfação de interesse difusos ou coletivos e mesmo individuais homogêneos, no que se acentua a maior relação de compatibilidade existente entre a pretensão acusatória, de cunho público, e a pretensão reparatória de cunho metaindividual, se comparada com a relação entre a pretensão acusatória pública e uma pretensão reparatória meramente individual.
Talvez se argumente que o exame de uma pretensão reparatória metaindividual pode envolver demasiada complexidade, atrasando a marcha do procedimento penal. Mas exatamente para isso é que serve o disposto no parágrafo único do art. 79 do Projeto. Por certo, haverá situações em que a apreciação de um dano moral individual se mostre de análise mais complexa. A mera análise casuística não pode servir de argumento. O mecanismo de remessa à via ordinária cível se mostra, nessa ótica, de vital importância, utilizável tanto em caso de danos individuais quanto em caso de danos metaindividuais.
Em face de tal panorama, propõe-se, em caso de incorporação efetiva do sistema da adesão e em se tratando de interesses metaindividuais, que após o oferecimento da denúncia, seja concedida oportunidade para a adesão a entidades que tenham por finalidade institucional a satisfação de tais interesses, sugerindo-se a notificação de entidades eventualmente interessadas, por meio da publicação de editais na imprensa oficial e em jornais de grande circulação.
A participação de aludidas associações poderia dar-se sem prejuízo da atuação do próprio Ministério Público, que além de titular da ação penal (CF, art. 129, inciso I), também exerce uma legitimação extraordinária em defesa dos interesses sociais (CF, art. 127), como verdadeiro defensor societatis(9), de modo que, quando do oferecimento da denúncia, o membro do Parquet poderia deduzir ambas as pretensões, a acusatória (penal) e a reparatória metaindividual (civil).
Como se vê, o tema poderá despertar polêmica, mas servirá principalmente para lançar um questionamento sobre o modelo da reparação de danos projetado e seu dimensionamento em face das demandas da cidadania.


Notas
(1) Conferir as fases do status da vítima no processo penal, a saber, protagonismo, neutralização e redescoberta: BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 3-8.
(2) CÂMARA, Alexandre Freitas. Efeitos civis e processuais da sentença condenatória criminal - reflexões sobre a Lei n. 11.719/2008. In: RDPP, n. 56, junho-julho, 2009.
(3) ABREU E SILVA, Roberto de. Efeitos civis e processuais da sentença criminal. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/
direi_pro_penal/efeitos_civeis.pdf
> Acesso em: 05-10-2010.
(4) Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/58503.pdf>. Acesso em: 22-10-2010.
(5) “Art. 79. [...]. Parágrafo único. Quando o arbitramento do dano moral depender da prova de fatos ou circunstâncias não contidas na peça acusatória ou a sua comprovação puder causar transtornos ao regular desenvolvimento do processo penal, a questão deverá ser remetida ao juízo cível, [...].”
(6) MEDEIROS NETO. Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 2ª ed. São Paulo: LTR, 2007.p.121.
(7) MEDEIROS NETO. Op. cit. p. 123-125.
(9) MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do Ministério Público no processo civil à luz da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 40-43

Roger de Melo Rodrigues

Especialista em Processo Penal pela FESMP/RN. Mestrando em Direito Processual (Processo Penal) pela USP. Promotor de Justiça (MP-RN). 

Como citar este artigo: RODRIGUES, Roger de Melo.  Adesão civil e “dano moral coletivo” no projeto do novo CPP. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 216, p. 16-17, nov., 2010.

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